«O Militante» Nº 273-Pela despenalização do aborto-Uma luta que continua

14-12-2004
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Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP

Portugal mantém, até aos dias de hoje, um quadro legal muito restritivo no que se refere à possibilidade de realização de uma interrupção voluntária da gravidez em meio hospitalar, não sendo sequer cumprida a lei (Lei 6/84), aprovada já lá vão vinte anos. Uma lei sujeita, ano após ano, a interpretações limitativas por parte dos serviços públicos de saúde, onde continuam a dar entrada mulheres vítimas de complicações de aborto clandestino. Contudo, no debate do passado mês de Março, a maioria PSD/CDS-PP rejeitou as propostas de despenalização do aborto, bem como a realização de novo referendo. Maioria que, no Governo, proibiu a entrada em Portugal do barco “Women on Waves”, significando uma grave violação à liberdade de informação e de expressão. Entretanto, acresce a duplicação de processos de investigação e a realização de julgamentos de mulheres pela prática de aborto clandestino.

Sucessivas gerações de mulheres tiveram de recorrer ao aborto clandestino mesmo sabendo que, face à lei, é considerado crime sujeito a pena de prisão. Mas fizeram-no porque não lhes restavam, ou falharam, alternativas seguras para a sua saúde e para o controle da sua fertilidade.

Assim foi durante o fascismo, que impediu o acesso à pílula contraceptiva – permitindo-a só para fins terapêuticos –, obrigando as mulheres a recorrer ao aborto para evitar gravidezes sucessivas, a enfrentar situações traumáticas, a sofrer danos irreparáveis para a sua saúde (principal causa de morte materna) e para a sua sexualidade.

E foi só com o 25 de Abril que as mulheres puderam aceder às novas alternativas abertas com a institucionalização das consultas de planeamento familiar, a partir dos centros de saúde, e à informação sobre contracepção como meio de planear o número de filhos e de garantir uma vivência sexual saudável, liberta do medo e do trauma de uma gravidez não desejada.

Quando, em 1982, o PCP tomou a iniciativa do primeiro grande debate parlamentar sobre maternidade, planeamento familiar e aborto, o número de abortos clandestinos estimava-se em 100 mil por ano, situando-se actualmente entre os 20 a 40 mil. Números que, muito embora possam pecar por defeito, não deixam de evidenciar que o aborto é sempre um último recurso para a mulher.

Os partidos de direita

Ao longo de mais de duas décadas, o comportamento político das direcções do PSD, do CDS e do PS convergiram, objectivamente, na manutenção da dimensão social e política do aborto clandestino.

Os partidos de direita PSD/CDS-PP e os sectores mais obscurantistas oscilaram sempre, por um lado, entre o silêncio e a inércia no que respeita às graves consequências do aborto clandestino e, por outro, numa activa oposição à despenalização do aborto em todos os momentos em que surgisse, por iniciativa do PCP e pressão social e política, qualquer possibilidade de despoletar alterações ao enquadramento legal vigente. Assim foi em 1982, 1984, 1997, 1998 e 2004.

A partir das eleições legislativas de 2002, a maioria PSD/CDS-PP, que se bateu pelo Referendo de 1998 como forma de travar a decisão da maioria de deputados que aprovou uma lei de despenalização do aborto, assumiu a prioridade, no plano político e em sede de acordo de coligação, de impedir o retomar deste processo alegando respeito pelo resultado do Referendo – pura mistificação já que tal resultado não teve carácter vinculativo.

Tal artimanha, largamente denunciada, obrigou a que a maioria PSD/CDS-PP tivesse de forjar novo argumento, desta feita alegando respeito por um compromisso eleitoral – que no caso do PSD nunca existiu!

Num quadro marcado pela realização de julgamentos de mulheres, o debate parlamentar, realizado em Março, sobre a despenalização do aborto só veio confirmar a intransigência da actual maioria em alterar o actual quadro legal, como ficou demonstrado pela rejeição dos projectos de despenalização do aborto (do PCP, PS, BE e Verdes). Tal como aconteceu em 1982, de novo os partidos de direita ignoraram as causas e as consequências do aborto clandestino.

Ao mesmo tempo, em sintonia com organizações de direita que se opõem à despenalização do aborto, têm vindo a desencadear vários instrumentos a partir do aparelho de Estado, no sentido de aniquilar um importante património de orientações que visavam, a partir da Lei 3/84, a implementação da educação sexual nas escolas; a distorcer os objectivos norteadores da educação sexual, o papel da família e da escola neste processo; e a suscitar dúvidas sobre a idoneidade e o valor da acção desenvolvida pelos professores e pela Associação para o Planeamento Familiar.

Acresce que esta maioria vem desferindo duros golpes na situação e nos direitos das mulheres: na família, no trabalho e nos direitos inerentes à função social da maternidade-paternidade, embora iludidos por uma pretensa campanha em defesa da mãe trabalhadora, das famílias numerosas e da conciliação da vida familiar e profissional.

São criados Centros de Apoio à Vida, regulamentados através de Portaria e de acordo com o previsto na Lei da Segurança Social e nos 100 Compromissos para uma Política de Família. Através da celebração de protocolos, dá-se enquadramento legal à transferência de recursos do Estado para sustentar organizações que se opõem à despenalização do aborto e à contracepção, muitas delas com ligações assumidas a entidades religiosas e que pretendem desenvolver actividades de pretensa resposta às gravidezes indesejadas.

As organizações de direita

Estas organizações e os sectores mais conservadores que as dinamizam, têm vindo a utilizar crescentes meios numa concertada oposição à despenalização do aborto e à contracepção, e a desenvolver, através de diversos sites na Internet, ferozes campanhas de desinformação acerca do uso da pílula do dia seguinte. Há farmácias que, respondendo ao apelo da Associação de Farmacêuticos Católicos, se recusam a vendê-la (o que é ilegal!), apelidando-a de método abortivo, quando a Organização Mundial de Saúde afirma que “as pílulas anticoncepcionais de emergência não interrompem a gravidez e, por conseguinte, não constituem uma forma de aborto”.

Nesta intervenção contra a despenalização do aborto, continua a vir a lume, de forma recorrente, a opinião de técnicos de saúde que se opõem à despenalização do aborto argumentando que os hospitais não terão capacidade de resposta caso este venha a ser despenalizado, servindo-se de exemplos que mostram um fundamento preconceituoso em relação à mulher, bem expresso na afirmação de que muitas deixariam de comprar a pílula do dia seguinte para recorrer, à borla, ao aborto. (1) Ou, ainda, afirmações que ignoram o número de mulheres que chegam aos hospitais devido a complicações provocadas por aborto clandestino, subalternizando as consequências deste grave problema de saúde pública. Não está em causa o direito à objecção de consciência dos médicos. O que está em causa é a transposição para os serviços de saúde de convicções individuais que pretendem impedir a realização de um acto médico essencial à garantia de uma interrupção voluntária da gravidez segura, seja no actual quadro legal, seja no quadro da sua futura despenalização.

A intransigência na manutenção do aborto clandestino e nas penas de prisão até 3 anos continua a ferir a dignidade de todas as mulheres independentemente de alguma vez terem ou não de realizar uma interrupção voluntária da gravidez, já que não lhes é reconhecida a capacidade de tomar decisões responsáveis e de acordo com a sua consciência. Mas esta realidade tem um claro cunho de classe já que são as jovens e as trabalhadoras das camadas mais vulneráveis que, não podendo deslocar-se ao estrangeiro, são atiradas para os circuitos clandestinos mais inseguros do ponto de vista da sua saúde, e correndo riscos acrescidos de serem alvos de processos e de se sentarem no banco dos réus.

Oportunidades perdidas

Os vários debates parlamentares, realizados desde 1982, foram sempre de iniciativa do PCP. E foi sempre a partir de tais debates, associados à forte pressão política do movimento sindical, das organizações de mulheres e de amplos sectores democráticos, que foi possível alguns avanços, ainda que sempre revestidos de novos obstáculos.

As direcções do Partido Socialista, quando em maioria parlamentar – 1984, 1997, 1998 – deixaram-se sempre aprisionar pelas pressões da direita, designadamente por parte do PSD. Recorda-se que, em 1984, só muito tardiamente o PS/Mário Soares apresentou o seu projecto de lei, que viria a ser aprovado, e cujo conteúdo ficou muito aquém do que era necessário e do que o PCP propunha. Na prática, respondeu parcialmente à forte pressão pública a favor da despenalização do aborto e ao mesmo tempo garantiu à direita a manutenção de fortes restrições quanto aos seus fundamentos.

Em 1997, apesar da existência de uma maioria de deputados do PS e do PCP, não foi possível dar novos passos na despenalização do aborto, dado que o próprio projecto de iniciativa PS foi rejeitado por deputados socialistas, não obstante terem criado a expectativa na sociedade de que finalmente se avançaria.

A aprovação de uma lei – um projecto do PS – só foi possível em 1998, com o apoio de uma maioria de deputados PS, dos deputados comunistas e dos Verdes e de três deputados PSD. Só que à margem da Assembleia da República, e numa clara manifestação de desprezo pela legitimidade e soberania da decisão tomada, as direcções do PS de Guterres e do PSD de Marcelo Rebelo de Sousa decidiram-se pela realização de um Referendo. Tratou-se de nova e mais grave cedência da direcção do PS à direita.

Referendo que motivou uma gigantesca escalada das forças mais conservadoras, com deturpações e linhas de argumentação usadas já em momentos anteriores – designadamente em 1982 e 1984. Pelo Não, ao lado da direita, esteve António Guterres, então secretário-geral do PS e Primeiro Ministro, que publicamente assumiu tal posição. O seu resultado tem sido usado, indevidamente, para manter tudo na mesma.

A natureza dos obstáculos que, no momento actual, impedem a alteração à actual lei é a existência de uma maioria parlamentar de direita, que enquanto estiver no poder manterá a mesma intransigência. Assim, o êxito da luta pela despenalização do aborto passa por ampliar a oposição a esta maioria, por afastá-la do Governo e da Assembleia da República, responsabilizando-a politicamente pela continuada perseguição judicial a mulheres, pela manutenção do aborto clandestino e pela subversão do conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos.

A posição assumida pelo actual secretário-geral do PS só vem evidenciar que esta direcção insiste em subalternizar a saúde e a dignidade das mulheres, convergindo com a direita numa opção política que enfraquece o papel e a legitimidade da Assembleia da República, em contraste com a posição assumida por diversos socialistas – Manuel Alegre, Helena Roseta e Sónia Fertuzinhos, entre outros, que defendem a alteração à lei, sem recurso a novo referendo.

Esta situação e as várias oportunidades perdidas ao longo de mais de 20 anos, mostram que a existência de uma diferente correlação de forças na Assembleia da República não será condição bastante para garantir a despenalização do aborto. Esta só será determinada pelo empenho e iniciativa do PCP, associado à força e unidade de amplos sectores democráticos e progressistas na firme exigência de mudança da lei, num futuro próximo e sem recurso ao referendo. É este o sentido da apresentação a 15 de Setembro do seu projecto-lei de despenalização do aborto nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, para garantir o direito à maternidade consciente e responsável. Isto significa que o PCP tudo fará para que a Assembleia da República aprove o mais rápido possível uma lei de despenalização do aborto que reforce o conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como parte integrante do direito à igualdade.

Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP

Portugal mantém, até aos dias de hoje, um quadro legal muito restritivo no que se refere à possibilidade de realização de uma interrupção voluntária da gravidez em meio hospitalar, não sendo sequer cumprida a lei (Lei 6/84), aprovada já lá vão vinte anos. Uma lei sujeita, ano após ano, a interpretações limitativas por parte dos serviços públicos de saúde, onde continuam a dar entrada mulheres vítimas de complicações de aborto clandestino. Contudo, no debate do passado mês de Março, a maioria PSD/CDS-PP rejeitou as propostas de despenalização do aborto, bem como a realização de novo referendo. Maioria que, no Governo, proibiu a entrada em Portugal do barco “Women on Waves”, significando uma grave violação à liberdade de informação e de expressão. Entretanto, acresce a duplicação de processos de investigação e a realização de julgamentos de mulheres pela prática de aborto clandestino.

Sucessivas gerações de mulheres tiveram de recorrer ao aborto clandestino mesmo sabendo que, face à lei, é considerado crime sujeito a pena de prisão. Mas fizeram-no porque não lhes restavam, ou falharam, alternativas seguras para a sua saúde e para o controle da sua fertilidade.

Assim foi durante o fascismo, que impediu o acesso à pílula contraceptiva – permitindo-a só para fins terapêuticos –, obrigando as mulheres a recorrer ao aborto para evitar gravidezes sucessivas, a enfrentar situações traumáticas, a sofrer danos irreparáveis para a sua saúde (principal causa de morte materna) e para a sua sexualidade.

E foi só com o 25 de Abril que as mulheres puderam aceder às novas alternativas abertas com a institucionalização das consultas de planeamento familiar, a partir dos centros de saúde, e à informação sobre contracepção como meio de planear o número de filhos e de garantir uma vivência sexual saudável, liberta do medo e do trauma de uma gravidez não desejada.

Quando, em 1982, o PCP tomou a iniciativa do primeiro grande debate parlamentar sobre maternidade, planeamento familiar e aborto, o número de abortos clandestinos estimava-se em 100 mil por ano, situando-se actualmente entre os 20 a 40 mil. Números que, muito embora possam pecar por defeito, não deixam de evidenciar que o aborto é sempre um último recurso para a mulher.

Os partidos de direita

Ao longo de mais de duas décadas, o comportamento político das direcções do PSD, do CDS e do PS convergiram, objectivamente, na manutenção da dimensão social e política do aborto clandestino.

Os partidos de direita PSD/CDS-PP e os sectores mais obscurantistas oscilaram sempre, por um lado, entre o silêncio e a inércia no que respeita às graves consequências do aborto clandestino e, por outro, numa activa oposição à despenalização do aborto em todos os momentos em que surgisse, por iniciativa do PCP e pressão social e política, qualquer possibilidade de despoletar alterações ao enquadramento legal vigente. Assim foi em 1982, 1984, 1997, 1998 e 2004.

A partir das eleições legislativas de 2002, a maioria PSD/CDS-PP, que se bateu pelo Referendo de 1998 como forma de travar a decisão da maioria de deputados que aprovou uma lei de despenalização do aborto, assumiu a prioridade, no plano político e em sede de acordo de coligação, de impedir o retomar deste processo alegando respeito pelo resultado do Referendo – pura mistificação já que tal resultado não teve carácter vinculativo.

Tal artimanha, largamente denunciada, obrigou a que a maioria PSD/CDS-PP tivesse de forjar novo argumento, desta feita alegando respeito por um compromisso eleitoral – que no caso do PSD nunca existiu!

Num quadro marcado pela realização de julgamentos de mulheres, o debate parlamentar, realizado em Março, sobre a despenalização do aborto só veio confirmar a intransigência da actual maioria em alterar o actual quadro legal, como ficou demonstrado pela rejeição dos projectos de despenalização do aborto (do PCP, PS, BE e Verdes). Tal como aconteceu em 1982, de novo os partidos de direita ignoraram as causas e as consequências do aborto clandestino.

Ao mesmo tempo, em sintonia com organizações de direita que se opõem à despenalização do aborto, têm vindo a desencadear vários instrumentos a partir do aparelho de Estado, no sentido de aniquilar um importante património de orientações que visavam, a partir da Lei 3/84, a implementação da educação sexual nas escolas; a distorcer os objectivos norteadores da educação sexual, o papel da família e da escola neste processo; e a suscitar dúvidas sobre a idoneidade e o valor da acção desenvolvida pelos professores e pela Associação para o Planeamento Familiar.

Acresce que esta maioria vem desferindo duros golpes na situação e nos direitos das mulheres: na família, no trabalho e nos direitos inerentes à função social da maternidade-paternidade, embora iludidos por uma pretensa campanha em defesa da mãe trabalhadora, das famílias numerosas e da conciliação da vida familiar e profissional.

São criados Centros de Apoio à Vida, regulamentados através de Portaria e de acordo com o previsto na Lei da Segurança Social e nos 100 Compromissos para uma Política de Família. Através da celebração de protocolos, dá-se enquadramento legal à transferência de recursos do Estado para sustentar organizações que se opõem à despenalização do aborto e à contracepção, muitas delas com ligações assumidas a entidades religiosas e que pretendem desenvolver actividades de pretensa resposta às gravidezes indesejadas.

As organizações de direita

Estas organizações e os sectores mais conservadores que as dinamizam, têm vindo a utilizar crescentes meios numa concertada oposição à despenalização do aborto e à contracepção, e a desenvolver, através de diversos sites na Internet, ferozes campanhas de desinformação acerca do uso da pílula do dia seguinte. Há farmácias que, respondendo ao apelo da Associação de Farmacêuticos Católicos, se recusam a vendê-la (o que é ilegal!), apelidando-a de método abortivo, quando a Organização Mundial de Saúde afirma que “as pílulas anticoncepcionais de emergência não interrompem a gravidez e, por conseguinte, não constituem uma forma de aborto”.

Nesta intervenção contra a despenalização do aborto, continua a vir a lume, de forma recorrente, a opinião de técnicos de saúde que se opõem à despenalização do aborto argumentando que os hospitais não terão capacidade de resposta caso este venha a ser despenalizado, servindo-se de exemplos que mostram um fundamento preconceituoso em relação à mulher, bem expresso na afirmação de que muitas deixariam de comprar a pílula do dia seguinte para recorrer, à borla, ao aborto. (1) Ou, ainda, afirmações que ignoram o número de mulheres que chegam aos hospitais devido a complicações provocadas por aborto clandestino, subalternizando as consequências deste grave problema de saúde pública. Não está em causa o direito à objecção de consciência dos médicos. O que está em causa é a transposição para os serviços de saúde de convicções individuais que pretendem impedir a realização de um acto médico essencial à garantia de uma interrupção voluntária da gravidez segura, seja no actual quadro legal, seja no quadro da sua futura despenalização.

A intransigência na manutenção do aborto clandestino e nas penas de prisão até 3 anos continua a ferir a dignidade de todas as mulheres independentemente de alguma vez terem ou não de realizar uma interrupção voluntária da gravidez, já que não lhes é reconhecida a capacidade de tomar decisões responsáveis e de acordo com a sua consciência. Mas esta realidade tem um claro cunho de classe já que são as jovens e as trabalhadoras das camadas mais vulneráveis que, não podendo deslocar-se ao estrangeiro, são atiradas para os circuitos clandestinos mais inseguros do ponto de vista da sua saúde, e correndo riscos acrescidos de serem alvos de processos e de se sentarem no banco dos réus.

Oportunidades perdidas

Os vários debates parlamentares, realizados desde 1982, foram sempre de iniciativa do PCP. E foi sempre a partir de tais debates, associados à forte pressão política do movimento sindical, das organizações de mulheres e de amplos sectores democráticos, que foi possível alguns avanços, ainda que sempre revestidos de novos obstáculos.

As direcções do Partido Socialista, quando em maioria parlamentar – 1984, 1997, 1998 – deixaram-se sempre aprisionar pelas pressões da direita, designadamente por parte do PSD. Recorda-se que, em 1984, só muito tardiamente o PS/Mário Soares apresentou o seu projecto de lei, que viria a ser aprovado, e cujo conteúdo ficou muito aquém do que era necessário e do que o PCP propunha. Na prática, respondeu parcialmente à forte pressão pública a favor da despenalização do aborto e ao mesmo tempo garantiu à direita a manutenção de fortes restrições quanto aos seus fundamentos.

Em 1997, apesar da existência de uma maioria de deputados do PS e do PCP, não foi possível dar novos passos na despenalização do aborto, dado que o próprio projecto de iniciativa PS foi rejeitado por deputados socialistas, não obstante terem criado a expectativa na sociedade de que finalmente se avançaria.

A aprovação de uma lei – um projecto do PS – só foi possível em 1998, com o apoio de uma maioria de deputados PS, dos deputados comunistas e dos Verdes e de três deputados PSD. Só que à margem da Assembleia da República, e numa clara manifestação de desprezo pela legitimidade e soberania da decisão tomada, as direcções do PS de Guterres e do PSD de Marcelo Rebelo de Sousa decidiram-se pela realização de um Referendo. Tratou-se de nova e mais grave cedência da direcção do PS à direita.

Referendo que motivou uma gigantesca escalada das forças mais conservadoras, com deturpações e linhas de argumentação usadas já em momentos anteriores – designadamente em 1982 e 1984. Pelo Não, ao lado da direita, esteve António Guterres, então secretário-geral do PS e Primeiro Ministro, que publicamente assumiu tal posição. O seu resultado tem sido usado, indevidamente, para manter tudo na mesma.

A natureza dos obstáculos que, no momento actual, impedem a alteração à actual lei é a existência de uma maioria parlamentar de direita, que enquanto estiver no poder manterá a mesma intransigência. Assim, o êxito da luta pela despenalização do aborto passa por ampliar a oposição a esta maioria, por afastá-la do Governo e da Assembleia da República, responsabilizando-a politicamente pela continuada perseguição judicial a mulheres, pela manutenção do aborto clandestino e pela subversão do conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos.

A posição assumida pelo actual secretário-geral do PS só vem evidenciar que esta direcção insiste em subalternizar a saúde e a dignidade das mulheres, convergindo com a direita numa opção política que enfraquece o papel e a legitimidade da Assembleia da República, em contraste com a posição assumida por diversos socialistas – Manuel Alegre, Helena Roseta e Sónia Fertuzinhos, entre outros, que defendem a alteração à lei, sem recurso a novo referendo.

Esta situação e as várias oportunidades perdidas ao longo de mais de 20 anos, mostram que a existência de uma diferente correlação de forças na Assembleia da República não será condição bastante para garantir a despenalização do aborto. Esta só será determinada pelo empenho e iniciativa do PCP, associado à força e unidade de amplos sectores democráticos e progressistas na firme exigência de mudança da lei, num futuro próximo e sem recurso ao referendo. É este o sentido da apresentação a 15 de Setembro do seu projecto-lei de despenalização do aborto nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, para garantir o direito à maternidade consciente e responsável. Isto significa que o PCP tudo fará para que a Assembleia da República aprove o mais rápido possível uma lei de despenalização do aborto que reforce o conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como parte integrante do direito à igualdade.

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