A festa de um novo começo

28-05-2002
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A Festa de Um Novo Começo

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES, nosso enviado em Díli

Segunda-feira, 20 de Maio de 2002 O sol estava a desaparecer quando se começaram a ouvir os primeiros cânticos da missa campal, e a lua desapareceu por detrás da ilha de Ataúro quando, seis horas passadas, se procedia à troca de bandeiras em Taci Tolo, Díli. Mas os primeiros minutos do mais jovem Estado do mundo, quando os ponteiros do relógio tocaram as zero horas de 20 de Maio de 2002, foram saudados por um céu sem nuvens, cristalino e estrelado. Em breve começaria o fogo de artifício, mas a grande festa não fez esquecer as enormes dificuldades que Timor-Leste independente enfrenta. Kofi Annan esteve lá para recordar algumas delas. Faltam poucos minutos para a meia-noite e um silêncio imenso cai sobre o recinto. A bandeira das Nações Unidas acaba de ser retirada do mastro e entregue a Kofi Annan. Nos nossos ouvidos ainda ressoam as últimas estrofes de "Oh freedom" e "We shall overcome", belissimamente cantado por Barbara Hendricks. A multidão parece suspensa do momento mágico, há tanto tempo esperado, e parece tão paralisada como Xanana Gusmão, perfilado no palco, os écrans gigantes a retransmitirem um rosto onde aflora uma lágrima. Só o ruído de um helicóptero parece perturbar a paz e faz-nos olhar para o céu. As nuvens desapareceram e reparamos que, por detrás dos seis feixes de luz que emanam do palco, está um céu estrelado e puro. Uma meia-lua está a esconder-se por detrás da ilha de Ataúro e o silêncio é quebrado pelo anúncio mais esperado da noite. Seis antigos membros das Falintil dirigem-se para o palco onde vão entregar a bandeira do novo Estado a seis membros das novas Forças de Defesa de Timor-Leste. Xanana continua imóvel, no seu canto do palco, e é a vez de chamarem Francisco Guterres, o Presidente da Assembleia Constituinte, para declarar a nova república - só que ele, de forma algo surpreendente, prefere falar da restauração da República Democrática de Timor Leste, a que foi efemeramente proclamada a 28 de Novembro de 1975, em ambiente de guerra civil e poucos dias antes da invasão indonésia. Falando exclusivamente em português a acentuando por diversas vezes o papel da Fretilin - o partido maioritário no território -, Francisco Guterres só entusiasma a vasta assembleia quando chama Xanana para este tomar posse como Presidente eleito e jurar fidelidade à Constituição. Só depois a bandeira de Timor-Leste será içada, alguns minutos depois da meia-noite. Pouco importava: um novo Estado tinha nascido, o primeiro do novo milénio. Um novo começo "Com o novo dia, vem um novo começo", dissera pouco antes Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas. "Ainda me recordo do dia, há quarenta e cinco anos, quando o meu país alcançou a sua independência - esta noite encontrou-me tão comovido como então". Não era o único. Entre a multidão, mais jovem e menos numerosa do que se esperava, os momentos de intensa celebração alternavam com os de emoção. Rapazes abraçavam raparigas. Dava-se a mão ao companheiro do lado. Acenava-se uma bandeira. Explodia-se em palmas quando se anunciava a presença de uma personalidade internacional - o mais aplaudido foi, sem surpresa, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Ou acompanhava-se as cantigas que foram enchendo uma noite que começou muito cedo, pelas 18 horas, com uma missa campal. Como se os astros se tivessem combinado para emprestar uma magia especial à cerimónia, quando os cânticos religiosos se começaram a fazer ouvir no imenso anfiteatro natural de Taci Tolo, o sol desaparecia por detrás do promontório que fecha a baía, lançando os últimos raios violeta sobre as montanhas que enquadram o imenso terreiro e que serviam de cenário a uma primeira largada de balões brancos. No palco, por essa altura, num altar encimado por uma imagem da Virgem de Fátima, monsenhor Renato Martino, Núncio Apostólico junto das Nações Unidas, recordava que tinha sido neste mesmo cenário que, a 12 de Outubro de 1989, o Papa celebrara uma missa que terminou em confrontos entre jovens timorenses e polícias indonésios. Domingo de Pentecostes, o celebrante aproveitou para citar o apóstolo Paulo e lembrar aos timorenses a importância de serem agora homens livres, mas que como homens livres não devem utilizar a liberdade para cobrir a malícia. Era esse também o conteúdo da mensagem do Papa que leria no final de cerimónia. Um aviso que de certa forma seria retomado por Kofi Annan quanto este lembrou que "a independência não constitui um fim, marca somente o início da autodeterminação, o que requer um espírito de disciplina, de unidade e de firmeza". Mais: "Acima de tudo devem manter-se unidos. A unidade não significa que só se deverá permitir um único conjunto de crenças, ou que só deverá existir uma solução para os problemas. Unidade significa aceitação de uma variedade de pontos de vista e de ideias - que possam ajudar a construir uma sociedade diversificada e criativa". O tempo dos timorenses Se Annan falou de um novo começo, se Sérgio Vieira de Melo sublinhou que "finalmente um novo sol nasceu e semeou bem fundo no coração do povo de Timor Leste a semente da paz, da liberdade e da independência", Ramos-Horta assumiu que aquele era "o nosso momento": o momento dos timorenses. Ontem eles estiveram no centro do mundo - um cartaz em Taci Tolo mostrava mesmo como todos os caminhos do planeta levavam àquele descampado empoeirado -, a partir de hoje estarão muito mais entregues a si mesmos. É certo que a comunidade internacional prometeu continuar a ajudar - "asseguro-lhes que a independência não significará o fim do compromisso do mundo para convosco, os vossos amigos em todo o mundo continuarão a ajudar-vos, trabalharemos todos em conjunto para garantir que os primeiros anos da independência sejam anos de estabilidade e de progresso" - mas a própria festa a que se assistiu mostra os desafios enormes pela frente. Do fundo dos tempos pareciam chegar-nos algumas figuras vindas das regiões mais remotas, rostos curtidos pelo tempo, plumas na cabeça, o manto colorido pela cintura, assim como do fundo dos tempos sentimos terem saído os guerreiros que, montados em pequenos cavalos, velhas espadas empunhadas, desfilaram perante uma multidão entusiasmada. Tudo isto retransmitido em écrans gigantes para jovens que vestiam as suas melhores t-shirts e alternavam os bonés com as cores do novo Estado com outras com o emblema da Ferrari. A diferença evidente entre os jovens que, na multidão, vinham de Díli, e os mais velhos que davam sinais de terem descido da montanha para a ocasião, assim como a tensão evidente no momento da posse de Xanana entre este e o Presidente da Assembleia Constituinte, mostram que há problemas que apenas começam a mostrar-se. Mesmo num momento de alegria e comoção. Mesmo assim se houve imagens marcantes desta festa foram as dos rostos felizes das meninas vestidas de branco, com velas na mão, que acompanharam os padres na missa. O branco das vestes ressaltava o escuro da pele, os olhos negros reflectiam as luzes das velas, e eram olhos de confiança e felicidade. Que diferença quando nos lembramos dos olhos assustados das crianças que fugiam de Díli após o referendo e o saque. Lembramo-nos desses rostos assustados como se ainda os tivéssemos visto ontem - mas o que vimos ontem foram os rostos felizes dos jovens de um país em que 45 por cento da população tem menos de 15 anos. Por isso a parte final da festa foi delas - assumindo que elas são o futuro. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE A festa de um novo começo

A AGENDA

EDITORIAL As incertezas do futuro

Histórias das últimas horas antes da independência

Clinton feliz, Sampaio impressionado, Durão orgulhoso

Megawati bem recebida em Taci Tolo

Refugiados em devem optar até Agosto

A independência vista do lado da solidariedade

O dia em que eles proclamaram a primeira independência

Lisboa festeja Timor independente

A Festa de Um Novo Começo

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES, nosso enviado em Díli

Segunda-feira, 20 de Maio de 2002 O sol estava a desaparecer quando se começaram a ouvir os primeiros cânticos da missa campal, e a lua desapareceu por detrás da ilha de Ataúro quando, seis horas passadas, se procedia à troca de bandeiras em Taci Tolo, Díli. Mas os primeiros minutos do mais jovem Estado do mundo, quando os ponteiros do relógio tocaram as zero horas de 20 de Maio de 2002, foram saudados por um céu sem nuvens, cristalino e estrelado. Em breve começaria o fogo de artifício, mas a grande festa não fez esquecer as enormes dificuldades que Timor-Leste independente enfrenta. Kofi Annan esteve lá para recordar algumas delas. Faltam poucos minutos para a meia-noite e um silêncio imenso cai sobre o recinto. A bandeira das Nações Unidas acaba de ser retirada do mastro e entregue a Kofi Annan. Nos nossos ouvidos ainda ressoam as últimas estrofes de "Oh freedom" e "We shall overcome", belissimamente cantado por Barbara Hendricks. A multidão parece suspensa do momento mágico, há tanto tempo esperado, e parece tão paralisada como Xanana Gusmão, perfilado no palco, os écrans gigantes a retransmitirem um rosto onde aflora uma lágrima. Só o ruído de um helicóptero parece perturbar a paz e faz-nos olhar para o céu. As nuvens desapareceram e reparamos que, por detrás dos seis feixes de luz que emanam do palco, está um céu estrelado e puro. Uma meia-lua está a esconder-se por detrás da ilha de Ataúro e o silêncio é quebrado pelo anúncio mais esperado da noite. Seis antigos membros das Falintil dirigem-se para o palco onde vão entregar a bandeira do novo Estado a seis membros das novas Forças de Defesa de Timor-Leste. Xanana continua imóvel, no seu canto do palco, e é a vez de chamarem Francisco Guterres, o Presidente da Assembleia Constituinte, para declarar a nova república - só que ele, de forma algo surpreendente, prefere falar da restauração da República Democrática de Timor Leste, a que foi efemeramente proclamada a 28 de Novembro de 1975, em ambiente de guerra civil e poucos dias antes da invasão indonésia. Falando exclusivamente em português a acentuando por diversas vezes o papel da Fretilin - o partido maioritário no território -, Francisco Guterres só entusiasma a vasta assembleia quando chama Xanana para este tomar posse como Presidente eleito e jurar fidelidade à Constituição. Só depois a bandeira de Timor-Leste será içada, alguns minutos depois da meia-noite. Pouco importava: um novo Estado tinha nascido, o primeiro do novo milénio. Um novo começo "Com o novo dia, vem um novo começo", dissera pouco antes Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas. "Ainda me recordo do dia, há quarenta e cinco anos, quando o meu país alcançou a sua independência - esta noite encontrou-me tão comovido como então". Não era o único. Entre a multidão, mais jovem e menos numerosa do que se esperava, os momentos de intensa celebração alternavam com os de emoção. Rapazes abraçavam raparigas. Dava-se a mão ao companheiro do lado. Acenava-se uma bandeira. Explodia-se em palmas quando se anunciava a presença de uma personalidade internacional - o mais aplaudido foi, sem surpresa, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Ou acompanhava-se as cantigas que foram enchendo uma noite que começou muito cedo, pelas 18 horas, com uma missa campal. Como se os astros se tivessem combinado para emprestar uma magia especial à cerimónia, quando os cânticos religiosos se começaram a fazer ouvir no imenso anfiteatro natural de Taci Tolo, o sol desaparecia por detrás do promontório que fecha a baía, lançando os últimos raios violeta sobre as montanhas que enquadram o imenso terreiro e que serviam de cenário a uma primeira largada de balões brancos. No palco, por essa altura, num altar encimado por uma imagem da Virgem de Fátima, monsenhor Renato Martino, Núncio Apostólico junto das Nações Unidas, recordava que tinha sido neste mesmo cenário que, a 12 de Outubro de 1989, o Papa celebrara uma missa que terminou em confrontos entre jovens timorenses e polícias indonésios. Domingo de Pentecostes, o celebrante aproveitou para citar o apóstolo Paulo e lembrar aos timorenses a importância de serem agora homens livres, mas que como homens livres não devem utilizar a liberdade para cobrir a malícia. Era esse também o conteúdo da mensagem do Papa que leria no final de cerimónia. Um aviso que de certa forma seria retomado por Kofi Annan quanto este lembrou que "a independência não constitui um fim, marca somente o início da autodeterminação, o que requer um espírito de disciplina, de unidade e de firmeza". Mais: "Acima de tudo devem manter-se unidos. A unidade não significa que só se deverá permitir um único conjunto de crenças, ou que só deverá existir uma solução para os problemas. Unidade significa aceitação de uma variedade de pontos de vista e de ideias - que possam ajudar a construir uma sociedade diversificada e criativa". O tempo dos timorenses Se Annan falou de um novo começo, se Sérgio Vieira de Melo sublinhou que "finalmente um novo sol nasceu e semeou bem fundo no coração do povo de Timor Leste a semente da paz, da liberdade e da independência", Ramos-Horta assumiu que aquele era "o nosso momento": o momento dos timorenses. Ontem eles estiveram no centro do mundo - um cartaz em Taci Tolo mostrava mesmo como todos os caminhos do planeta levavam àquele descampado empoeirado -, a partir de hoje estarão muito mais entregues a si mesmos. É certo que a comunidade internacional prometeu continuar a ajudar - "asseguro-lhes que a independência não significará o fim do compromisso do mundo para convosco, os vossos amigos em todo o mundo continuarão a ajudar-vos, trabalharemos todos em conjunto para garantir que os primeiros anos da independência sejam anos de estabilidade e de progresso" - mas a própria festa a que se assistiu mostra os desafios enormes pela frente. Do fundo dos tempos pareciam chegar-nos algumas figuras vindas das regiões mais remotas, rostos curtidos pelo tempo, plumas na cabeça, o manto colorido pela cintura, assim como do fundo dos tempos sentimos terem saído os guerreiros que, montados em pequenos cavalos, velhas espadas empunhadas, desfilaram perante uma multidão entusiasmada. Tudo isto retransmitido em écrans gigantes para jovens que vestiam as suas melhores t-shirts e alternavam os bonés com as cores do novo Estado com outras com o emblema da Ferrari. A diferença evidente entre os jovens que, na multidão, vinham de Díli, e os mais velhos que davam sinais de terem descido da montanha para a ocasião, assim como a tensão evidente no momento da posse de Xanana entre este e o Presidente da Assembleia Constituinte, mostram que há problemas que apenas começam a mostrar-se. Mesmo num momento de alegria e comoção. Mesmo assim se houve imagens marcantes desta festa foram as dos rostos felizes das meninas vestidas de branco, com velas na mão, que acompanharam os padres na missa. O branco das vestes ressaltava o escuro da pele, os olhos negros reflectiam as luzes das velas, e eram olhos de confiança e felicidade. Que diferença quando nos lembramos dos olhos assustados das crianças que fugiam de Díli após o referendo e o saque. Lembramo-nos desses rostos assustados como se ainda os tivéssemos visto ontem - mas o que vimos ontem foram os rostos felizes dos jovens de um país em que 45 por cento da população tem menos de 15 anos. Por isso a parte final da festa foi delas - assumindo que elas são o futuro. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE A festa de um novo começo

A AGENDA

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Clinton feliz, Sampaio impressionado, Durão orgulhoso

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