O toque que nos está a mudar

26-12-2003
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O Toque Que nos Está a Mudar

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003 %Bárbara Wong Maria, 12 anos, estava mesmo zangada com a mãe e cheia de vontade de lhe chamar "parva". Em vez disso, olhou-a com desdém, semicerrou os lábios e atirou: "És mesmo tecla 3." Luísa, a mãe, não percebeu, mas comentou a frase com várias pessoas, até que uma amiga a esclareceu: "A tecla 3 do telemóvel diz DEF. A miúda chamou-te deficiente." No Japão os jovens já apontam e tocam à campainha com o polegar. Por cá, João Barreiros, da Faculdade de Motricidade Humana, de Lisboa, pretende comprovar que o indicador e o polegar podem estar a mudar de posição. Uma verdadeira revolução nos últimos 200 mil anos. "Depois temos de pensar nas consequências para o cérebro", avança o investigador. Tudo mudou desde que o telemóvel entrou na nossa vida. Seja um tradicional "trim", ou um toque polifónico, os telemóveis estão em todo o lado e ouvem-se onde menos se espera: no cinema na hora de maior "suspense", na igreja durante a missa, num concerto ou mesmo na Assembleia da República enquanto um governante anuncia o Orçamento para 2004. E se há alguns anos ainda se viam uns virar de pescoços, seguidos de olhares reprovadores, hoje, já nem o padre ou o ministro interrompem o seu discurso por causa do toque. O que será estranho é estar em qualquer lado e não se ouvir um telemóvel a tocar. O toque faz parte do barulho da cidade como o autocarro a travar ou a buzinadela do táxi, mas também do campo, na paisagem mais bucólica ou no meio do nada, não se estranha o telefone tocar. Tornou-se um companheiro que quase faz parte do corpo que o transporta. Em Assis (Itália), os novos hábitos dos frades franciscanos têm um bolso adequado ao telemóvel. A moda fez acrescentar nas malas, pastas, camisas e em alguns casacos um compartimento autónomo para o colocar. Mas os que usam outras indumentárias também não se separam dele. Alguns andam pendurados ao pescoço, como um amuleto da sorte ou uma jóia. Mesmo depois de chegar a casa e despir o fato de trabalho, o telemóvel segue o seu dono e assume um lugar de destaque na cozinha, na sala ou no quarto. Até na hora de descanso, está em cima da mesa de cabeceira porque serve de despertador ou porque pode tocar a qualquer momento e ser urgente. Muitos lares portugueses substituíram o telefone fixo pelo móvel. É que, além da função simples para que foi criado - poder comunicar através de um telefone sem fios; o primeiro serviço de telefone celular ficou disponível a 12 de Outubro de 1983 nos Estados Unidos, a verdadeira comercialização começou a 16 de Dezembro -, o aparelho, a pouco e pouco e num curto espaço de tempo, adquiriu multifunções e foi substituindo outros equipamentos. Ele recebe e envia mensagens escritas (SMS, "short message system", em português sistema de mensagens curtas), com imagens (MMS, "multimedia message system", sistema de mensagens multimedia), fotografa, grava, acede à internet, a jogos, substitui o velhinho "organizer" ou o mais recente "palm", mas também o "walkman" ou o "gameboy". No futuro vai ser possível ligar o micro-ondas, "perguntar" ao frigorífico se falta "camembert" ou acender a luz sem estar em casa. Tudo através do telemóvel. E este poderá sofrer ainda uma revolução maior. Uma empresa japonesa está a desenvolver um telefone de pulso, o "finger whisper", um engenho que converte os sinais digitais em vibrações que são transmitidas pelos ossos da mão. Para ouvir, o utilizador terá de pôr um dos dedos no ouvido e falar através de um microfone que está no pulso. "Isso é telepatia", define João Barreiros. "Podemos comunicar através da mente, falando sozinhos em qualquer ponto. É uma evolução incrível, é fabuloso." O "está lá" foi substituído por "onde é que está?" "Estou no carro", "estou a descer as escadas do metro", "estou em Bruxelas", são as respostas de quem está sempre em movimento. Uma informação que é dada não só a quem está do outro lado, como a quem passa. De repente, os transeuntes vão sabendo retalhos da vida das pessoas com quem se cruzam. A senhora que fala de um filho emigrado, o jantar de anos em casa dos pais da namorada, o diagnóstico do médico, à saída do consultório. Episódios suspensos, dos quais não se sabe o desfecho. Para muitos, o incómodo do toque transformou-se no pudor de ouvir a conversa. Tendencialmente, as pessoas falam como se estivessem face-a-face. Se os mais velhos ou os mais reservados ainda sussurram um "eu agora não posso"; os mais novos divertem-se falando alto e, muitas vezes, em grupo. À falta do que muitos classificam de pudor e de algum respeito, os toques e as conversas começam a ser "controlados" pelo legislador. O ano passado, em Nova Iorque (Estados Unidos da América), foi introduzida uma lei para silenciar os toques dos telemóveis em cinemas, teatros, concertos, museus e conferências. O dono do telefone incorre numa multa equivalente a 50 euros. Só os médicos, bombeiros e polícias podem atender o telefone. Contudo, a multa não tem vindo a ser aplicada. Nos restaurantes de Chicago ou do Cairo (Egipto), além das zonas de fumadores e não fumadores, começam a aparecer as áreas onde não é possível atender o telemóvel. Os telemóveis estão a fazer mudar as relações pais-filhos. Os "telepais" dão o telemóvel com a desculpa de não poderem estar sempre presentes e com o argumento da segurança, o "saber onde é que eles estão". Ligar e perguntar onde se está e o que se faz é um descanso para os progenitores, que no futuro até poderão localizar os meninos através do GPS. Algumas escolas já oferecem um serviço aos pais: saber através de SMS as avaliações e o número de faltas que o filho tem. Mas desenganem-se os que acreditam que a criança está "sob controlo". É que, graças ao mesmo aparelho, os miúdos podem ter "vidas paralelas". Foi isso que a investigadora da Universidade de Warwick, Sadie Plant, verificou no estudo "Ao telemóvel - O efeito dos telefones móveis na vida social e individual". Em muitas regiões do planeta, os adolescentes e jovens aproveitam o equipamento para contactar com "aqueles" amigos que os pais desaprovariam. Para muitos adolescentes, o telémovel é "quase essencial" para se viver, confessa Teresa Mateus, 15 anos, de Lisboa, que recebeu o seu primeiro telefone aos oito. "Graças a ele, falo mais com os meus amigos e principalmente com o meu namorado, através de SMS ou mesmo de telefonemas. Com o telemóvel posso comunicar com quem quiser. Daí que nós tenhamos 'aquela' dependência do telemóvel." Os SMS são muito utilizados pelos mais novos, não só porque é mais económico, como, através das palavras, comunicam-se ideias, sonhos, coisas que não se tem coragem de dizer, olhos nos olhos, como "gosto de ti" ou até mensagens mais ousadas. "Pode ser um prólogo para relações mais aprofundadas", aponta o psicólogo Eduardo Sá, que lembra que outras gerações namoraram através de papelinhos ou escrevendo mensagens na carteira da escola. Às vezes, os SMS são substituídos pelo "toque". Lembrar um amigo, marcar o número e deixar tocar uma vez, como quem diz, "lembrei-me de ti" e desligar. "O telemóvel é um poder de comunicação ambulante, é uma varinha de condão, com a qual eles [os adolescentes] dão toques. De repente sentem uma paixão e dão um toque, as coisas são muito mais rápidas e velozes, mas isso também torna a relação mais distante porque deixa de haver tempo para reflectir, para sedimentar, deixar crescer ou definhar", diz a professora de Literatura Portuguesa Ana Paula Guimarães, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tal como a varinha de condão, o telefone também dá acesso ao baile. É com ele que se combinam as saídas com os amigos. É através dele que se espera que a carruagem não se transforme em abóbora, pois também se tem de combinar tudo com os pais, acrescenta a professora de Literatura Portuguesa. "De quem foram as últimas dez chamadas, de amigos ou de familiares? Quantos números tens na agenda? As mensagens que guardas são 'cool'?", estas são algumas das maneiras de os miúdos fazerem "bullying" por causa dos telemóveis detectadas por Sadie Plant. Entre os jovens, o telemóvel não é sinónimo de luxo (só tem quem tem dinheiro), mas serve para mostrar "grandes qualidades comunicativas" - só o usa quem tem uma enorme rede de amigos -, avança a professora de Sociologia da Comunicação na Universidade Católica Portuguesa, Rita Figueiras. Quem recebe muitas chamadas da mãe ou tem poucos números na agenda pode estar "out". E a pressão não se fica por aqui: o último modelo, as tampas, os toques polifónicos, as imagens no visor, são outros meios de os adolescentes se classificarem entre si, como os ténis, as calças ou as camisolas de marca. Os que não têm telefone estão completamente "out". São os excluídos. E é com esses que Eduardo Sá está preocupado. "Normalmente não têm, não porque os pais não possam, mas porque estes assumem uma atitude fundamentalista", acredita. Os pais esquecem que o telefone funciona como "passaporte de integração nos grupos", diz. E a integração faz-se também através da linguagem. Graças aos SMS, a escrita tornou-se rápida e diferente. Inicialmente, os SMS não estavam pensados para ter mensagens tão grandes, nem para estar em contacto com rádios, televisões, participar em concursos e inquéritos. O seu uso generalizou-se e os fabricantes tiveram de se adaptar, recorda Gustavo Cardoso, do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa. Tal como nos "chats" da internet, escreve-se quase como se fala e os "que" deram lugar aos "k". Volta e meia, na escola, surge um teste para corrigir em "linguagem SMS". Os puristas da língua preocupam-se com a má preparação dos jovens, os mais moderados falam em evolução. Mas não é só a língua que está a mudar. As mãos que martelam as teclas, respondendo em tempo real às perguntas ou recados que chegam ao telefone, também. Ana Barroso, jornalista, 36 anos, ficou com um polegar deformado de tanto enviar mensagens escritas. Durante três anos, muito do namoro fez-se por SMS. "Ficamos completamente viciados." Era uma forma diferente de comunicar. "A conversa tem outros tempos e desenvolvimentos. Apesar de o envio da mensagem ser rápido, dá para pensar no que se vai dizer e dizem-se coisas que não viriam a propósito numa conversa", argumenta. Ana descobriu que as mensagens também trazem privacidade: estar num grupo de amigos e mandar um SMS, para recordar um segredo que não se quer partilhar com os outros, por exemplo. Mesmo em trabalho, os SMS podem ser úteis, quando se está numa reunião e não se pode falar ao telemóvel, mas é preciso resolver assuntos no exterior, acrescenta. Os dedos estão mais rápidos e as funções do indicador estão a ser substituídas pelo polegar. Estas mudanças não têm só a ver com os SMS, mas com as Playstation, Nintendo e Gameboy. João Barreiros e Carlos Neto, também da Faculdade de Motricidade Humana, estão preocupados com a perda da componente não verbal da linguagem. "Deixamos de precisar da expressão facial, do gesticular das mãos e a interacção directa começa a desaparecer... É diferente, não sabemos se bom, se mau, mas estaremos a substituir as pessoas pela voz? A voz já é presença?", questiona Barreiros. O uso do telemóvel interfere também com a mobilidade do corpo. A pessoa deixa de ir, telefona. "Há menos corpo a corpo, menos visão e contacto não verbal. Preocupa-me o aumento da timidez, do comportamento social mais bloqueado", refere Carlos Neto. A falta de contacto físico provoca um "resfriamento nos modos de comunicação", acredita. Além disso, o tempo passado ao telemóvel "rouba tempo a um estilo de vida saudável". Essa inactividade física vai projectar-se numa "saúde paupérrima", alerta. Enquanto professor de Educação Física, Carlos Neto espanta-se com a quantidade de miúdos que se cansa durante as aulas. "É óbvio que a emergência de utilização de telemóveis em crianças significa mais imobilidade corporal e, como consequência, menos autonomia de mobilidade e de actividade física". Ana Paula Guimarães conclui: "As teclas estão minadas, essas mãos têm de estar noutras coisas: a bordar, em vasos de terra. A relação com o mundo é mais do que o 'toque', é tocar mesmo nas coisas." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA Os alfaiates de Deus

Pequeno dicionário

A Bagdad de Frank Lloyd Wright

Da recusa de Niemeyer ao pavilhão Saddam Hussein

O toque que nos está a mudar

Controlar parceiros infiéis

O meu pai ficará na História como a esquerda de um regime autoritário de direita

Rita Hayworth e Jean Louis

Conversa com vista para... Rui Vieira Nery

"Vai à Janela" no Porto

Existe uma hora perfeita para fazer exercício?

Desfrutar de olhos fechados

As escravas do "kawaii"

Investir em Planos de Poupança-Reforma

O que comer entre as refeições?

Pato de bons fígados

CRÓNICAS

O Índex da Publica 21 Dez 03

Natal na Província

O Toque Que nos Está a Mudar

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003 %Bárbara Wong Maria, 12 anos, estava mesmo zangada com a mãe e cheia de vontade de lhe chamar "parva". Em vez disso, olhou-a com desdém, semicerrou os lábios e atirou: "És mesmo tecla 3." Luísa, a mãe, não percebeu, mas comentou a frase com várias pessoas, até que uma amiga a esclareceu: "A tecla 3 do telemóvel diz DEF. A miúda chamou-te deficiente." No Japão os jovens já apontam e tocam à campainha com o polegar. Por cá, João Barreiros, da Faculdade de Motricidade Humana, de Lisboa, pretende comprovar que o indicador e o polegar podem estar a mudar de posição. Uma verdadeira revolução nos últimos 200 mil anos. "Depois temos de pensar nas consequências para o cérebro", avança o investigador. Tudo mudou desde que o telemóvel entrou na nossa vida. Seja um tradicional "trim", ou um toque polifónico, os telemóveis estão em todo o lado e ouvem-se onde menos se espera: no cinema na hora de maior "suspense", na igreja durante a missa, num concerto ou mesmo na Assembleia da República enquanto um governante anuncia o Orçamento para 2004. E se há alguns anos ainda se viam uns virar de pescoços, seguidos de olhares reprovadores, hoje, já nem o padre ou o ministro interrompem o seu discurso por causa do toque. O que será estranho é estar em qualquer lado e não se ouvir um telemóvel a tocar. O toque faz parte do barulho da cidade como o autocarro a travar ou a buzinadela do táxi, mas também do campo, na paisagem mais bucólica ou no meio do nada, não se estranha o telefone tocar. Tornou-se um companheiro que quase faz parte do corpo que o transporta. Em Assis (Itália), os novos hábitos dos frades franciscanos têm um bolso adequado ao telemóvel. A moda fez acrescentar nas malas, pastas, camisas e em alguns casacos um compartimento autónomo para o colocar. Mas os que usam outras indumentárias também não se separam dele. Alguns andam pendurados ao pescoço, como um amuleto da sorte ou uma jóia. Mesmo depois de chegar a casa e despir o fato de trabalho, o telemóvel segue o seu dono e assume um lugar de destaque na cozinha, na sala ou no quarto. Até na hora de descanso, está em cima da mesa de cabeceira porque serve de despertador ou porque pode tocar a qualquer momento e ser urgente. Muitos lares portugueses substituíram o telefone fixo pelo móvel. É que, além da função simples para que foi criado - poder comunicar através de um telefone sem fios; o primeiro serviço de telefone celular ficou disponível a 12 de Outubro de 1983 nos Estados Unidos, a verdadeira comercialização começou a 16 de Dezembro -, o aparelho, a pouco e pouco e num curto espaço de tempo, adquiriu multifunções e foi substituindo outros equipamentos. Ele recebe e envia mensagens escritas (SMS, "short message system", em português sistema de mensagens curtas), com imagens (MMS, "multimedia message system", sistema de mensagens multimedia), fotografa, grava, acede à internet, a jogos, substitui o velhinho "organizer" ou o mais recente "palm", mas também o "walkman" ou o "gameboy". No futuro vai ser possível ligar o micro-ondas, "perguntar" ao frigorífico se falta "camembert" ou acender a luz sem estar em casa. Tudo através do telemóvel. E este poderá sofrer ainda uma revolução maior. Uma empresa japonesa está a desenvolver um telefone de pulso, o "finger whisper", um engenho que converte os sinais digitais em vibrações que são transmitidas pelos ossos da mão. Para ouvir, o utilizador terá de pôr um dos dedos no ouvido e falar através de um microfone que está no pulso. "Isso é telepatia", define João Barreiros. "Podemos comunicar através da mente, falando sozinhos em qualquer ponto. É uma evolução incrível, é fabuloso." O "está lá" foi substituído por "onde é que está?" "Estou no carro", "estou a descer as escadas do metro", "estou em Bruxelas", são as respostas de quem está sempre em movimento. Uma informação que é dada não só a quem está do outro lado, como a quem passa. De repente, os transeuntes vão sabendo retalhos da vida das pessoas com quem se cruzam. A senhora que fala de um filho emigrado, o jantar de anos em casa dos pais da namorada, o diagnóstico do médico, à saída do consultório. Episódios suspensos, dos quais não se sabe o desfecho. Para muitos, o incómodo do toque transformou-se no pudor de ouvir a conversa. Tendencialmente, as pessoas falam como se estivessem face-a-face. Se os mais velhos ou os mais reservados ainda sussurram um "eu agora não posso"; os mais novos divertem-se falando alto e, muitas vezes, em grupo. À falta do que muitos classificam de pudor e de algum respeito, os toques e as conversas começam a ser "controlados" pelo legislador. O ano passado, em Nova Iorque (Estados Unidos da América), foi introduzida uma lei para silenciar os toques dos telemóveis em cinemas, teatros, concertos, museus e conferências. O dono do telefone incorre numa multa equivalente a 50 euros. Só os médicos, bombeiros e polícias podem atender o telefone. Contudo, a multa não tem vindo a ser aplicada. Nos restaurantes de Chicago ou do Cairo (Egipto), além das zonas de fumadores e não fumadores, começam a aparecer as áreas onde não é possível atender o telemóvel. Os telemóveis estão a fazer mudar as relações pais-filhos. Os "telepais" dão o telemóvel com a desculpa de não poderem estar sempre presentes e com o argumento da segurança, o "saber onde é que eles estão". Ligar e perguntar onde se está e o que se faz é um descanso para os progenitores, que no futuro até poderão localizar os meninos através do GPS. Algumas escolas já oferecem um serviço aos pais: saber através de SMS as avaliações e o número de faltas que o filho tem. Mas desenganem-se os que acreditam que a criança está "sob controlo". É que, graças ao mesmo aparelho, os miúdos podem ter "vidas paralelas". Foi isso que a investigadora da Universidade de Warwick, Sadie Plant, verificou no estudo "Ao telemóvel - O efeito dos telefones móveis na vida social e individual". Em muitas regiões do planeta, os adolescentes e jovens aproveitam o equipamento para contactar com "aqueles" amigos que os pais desaprovariam. Para muitos adolescentes, o telémovel é "quase essencial" para se viver, confessa Teresa Mateus, 15 anos, de Lisboa, que recebeu o seu primeiro telefone aos oito. "Graças a ele, falo mais com os meus amigos e principalmente com o meu namorado, através de SMS ou mesmo de telefonemas. Com o telemóvel posso comunicar com quem quiser. Daí que nós tenhamos 'aquela' dependência do telemóvel." Os SMS são muito utilizados pelos mais novos, não só porque é mais económico, como, através das palavras, comunicam-se ideias, sonhos, coisas que não se tem coragem de dizer, olhos nos olhos, como "gosto de ti" ou até mensagens mais ousadas. "Pode ser um prólogo para relações mais aprofundadas", aponta o psicólogo Eduardo Sá, que lembra que outras gerações namoraram através de papelinhos ou escrevendo mensagens na carteira da escola. Às vezes, os SMS são substituídos pelo "toque". Lembrar um amigo, marcar o número e deixar tocar uma vez, como quem diz, "lembrei-me de ti" e desligar. "O telemóvel é um poder de comunicação ambulante, é uma varinha de condão, com a qual eles [os adolescentes] dão toques. De repente sentem uma paixão e dão um toque, as coisas são muito mais rápidas e velozes, mas isso também torna a relação mais distante porque deixa de haver tempo para reflectir, para sedimentar, deixar crescer ou definhar", diz a professora de Literatura Portuguesa Ana Paula Guimarães, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tal como a varinha de condão, o telefone também dá acesso ao baile. É com ele que se combinam as saídas com os amigos. É através dele que se espera que a carruagem não se transforme em abóbora, pois também se tem de combinar tudo com os pais, acrescenta a professora de Literatura Portuguesa. "De quem foram as últimas dez chamadas, de amigos ou de familiares? Quantos números tens na agenda? As mensagens que guardas são 'cool'?", estas são algumas das maneiras de os miúdos fazerem "bullying" por causa dos telemóveis detectadas por Sadie Plant. Entre os jovens, o telemóvel não é sinónimo de luxo (só tem quem tem dinheiro), mas serve para mostrar "grandes qualidades comunicativas" - só o usa quem tem uma enorme rede de amigos -, avança a professora de Sociologia da Comunicação na Universidade Católica Portuguesa, Rita Figueiras. Quem recebe muitas chamadas da mãe ou tem poucos números na agenda pode estar "out". E a pressão não se fica por aqui: o último modelo, as tampas, os toques polifónicos, as imagens no visor, são outros meios de os adolescentes se classificarem entre si, como os ténis, as calças ou as camisolas de marca. Os que não têm telefone estão completamente "out". São os excluídos. E é com esses que Eduardo Sá está preocupado. "Normalmente não têm, não porque os pais não possam, mas porque estes assumem uma atitude fundamentalista", acredita. Os pais esquecem que o telefone funciona como "passaporte de integração nos grupos", diz. E a integração faz-se também através da linguagem. Graças aos SMS, a escrita tornou-se rápida e diferente. Inicialmente, os SMS não estavam pensados para ter mensagens tão grandes, nem para estar em contacto com rádios, televisões, participar em concursos e inquéritos. O seu uso generalizou-se e os fabricantes tiveram de se adaptar, recorda Gustavo Cardoso, do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa. Tal como nos "chats" da internet, escreve-se quase como se fala e os "que" deram lugar aos "k". Volta e meia, na escola, surge um teste para corrigir em "linguagem SMS". Os puristas da língua preocupam-se com a má preparação dos jovens, os mais moderados falam em evolução. Mas não é só a língua que está a mudar. As mãos que martelam as teclas, respondendo em tempo real às perguntas ou recados que chegam ao telefone, também. Ana Barroso, jornalista, 36 anos, ficou com um polegar deformado de tanto enviar mensagens escritas. Durante três anos, muito do namoro fez-se por SMS. "Ficamos completamente viciados." Era uma forma diferente de comunicar. "A conversa tem outros tempos e desenvolvimentos. Apesar de o envio da mensagem ser rápido, dá para pensar no que se vai dizer e dizem-se coisas que não viriam a propósito numa conversa", argumenta. Ana descobriu que as mensagens também trazem privacidade: estar num grupo de amigos e mandar um SMS, para recordar um segredo que não se quer partilhar com os outros, por exemplo. Mesmo em trabalho, os SMS podem ser úteis, quando se está numa reunião e não se pode falar ao telemóvel, mas é preciso resolver assuntos no exterior, acrescenta. Os dedos estão mais rápidos e as funções do indicador estão a ser substituídas pelo polegar. Estas mudanças não têm só a ver com os SMS, mas com as Playstation, Nintendo e Gameboy. João Barreiros e Carlos Neto, também da Faculdade de Motricidade Humana, estão preocupados com a perda da componente não verbal da linguagem. "Deixamos de precisar da expressão facial, do gesticular das mãos e a interacção directa começa a desaparecer... É diferente, não sabemos se bom, se mau, mas estaremos a substituir as pessoas pela voz? A voz já é presença?", questiona Barreiros. O uso do telemóvel interfere também com a mobilidade do corpo. A pessoa deixa de ir, telefona. "Há menos corpo a corpo, menos visão e contacto não verbal. Preocupa-me o aumento da timidez, do comportamento social mais bloqueado", refere Carlos Neto. A falta de contacto físico provoca um "resfriamento nos modos de comunicação", acredita. Além disso, o tempo passado ao telemóvel "rouba tempo a um estilo de vida saudável". Essa inactividade física vai projectar-se numa "saúde paupérrima", alerta. Enquanto professor de Educação Física, Carlos Neto espanta-se com a quantidade de miúdos que se cansa durante as aulas. "É óbvio que a emergência de utilização de telemóveis em crianças significa mais imobilidade corporal e, como consequência, menos autonomia de mobilidade e de actividade física". Ana Paula Guimarães conclui: "As teclas estão minadas, essas mãos têm de estar noutras coisas: a bordar, em vasos de terra. A relação com o mundo é mais do que o 'toque', é tocar mesmo nas coisas." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA Os alfaiates de Deus

Pequeno dicionário

A Bagdad de Frank Lloyd Wright

Da recusa de Niemeyer ao pavilhão Saddam Hussein

O toque que nos está a mudar

Controlar parceiros infiéis

O meu pai ficará na História como a esquerda de um regime autoritário de direita

Rita Hayworth e Jean Louis

Conversa com vista para... Rui Vieira Nery

"Vai à Janela" no Porto

Existe uma hora perfeita para fazer exercício?

Desfrutar de olhos fechados

As escravas do "kawaii"

Investir em Planos de Poupança-Reforma

O que comer entre as refeições?

Pato de bons fígados

CRÓNICAS

O Índex da Publica 21 Dez 03

Natal na Província

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