Suplemento Y

01-10-2002
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Sexta-feira, 27 de Setembro de 2002

Ramones

End of the Century

(6/10)

Pleasant Dreams

(5/10)

Subterranean Jungle

4/10

Too Tough to Die

(5/10)

Warner Bros, distri. Warner

Depois de terem arrasado o mundo com quatro álbuns, o melhor disco ao vivo da história e uma digressão em Inglaterra que levou à invenção do punk inglês, os Ramones sonharam voar mais alto. Mais por vontade alheia, meteram-se nas mãos de Phil Spector que fez aquilo que melhor sabia: transformou os quatro rufias de Queens, Nova Iorque, numa boys band como as outras que estava habituado a produzir. Em termos práticos, isso quer dizer que "End of the Century" é um álbum de Joey Ramone e não tanto dos outros manos. O cantor dos Ramones era também a figura mais próxima de Spector (o imaginário série B, as referências à surf music, a ideia da imagem "cartoon" vinha tudo da cabeça dele) e não admira que a "wall of sound" de Spector tenha engolido os outros por entre arranjos de cordas ("Baby I love you"), a memória do som roufenho dos dias da rádio ("Do you remember rock'n'roll radio?") ou o som poppy das girls bands dos anos 60 como as Ronnettes ("I can't make it on time"). Confirmando a sua proverbial prepotência (a lenda diz que Spector apontou a sua pistola, pelo menos por uma vez, à cabeça de Dee Dee Ramone), "End of the Century" é um disco de Spector e não tanto dos Ramones, excepção feita às três últimas faixas ("Rock'n'roll High School", "All the way" e "High risk insurance") onde, ao longe, ainda se avista a fúria primordial dos autores de "Rocket to Russia". As maquetas incluídas como faixas extra nesta reedição provam isso mesmo.

"End of the Century" não só deixou os fãs deserdados como instalou a discórdia entre a família Ramone. Para o álbum seguinte, "Pleasant Dreams", contratram o produtor Graham Gouldman (inglês, membro dos 10cc e escritor de canções para os Yardbirds e Hollies) ao mesmo tempo que anunciavam na faixa de abertura: "We want the airwaves". O som tornou-se ainda mais redondo, modernizou-se e caiu definitivamente num pop-punk que tanto devia aos Cheap Trick como às Ronnettes. Pela primeira vez, a capa não mostrava uma imagem da banda e o baterista Marky (ex-Voidoid) já não terminaria as gravações do álbum seguinte, "Subterranean Jungle", o sétimo em seis anos. Ainda com a ambição de chegar ao topo das tabelas de vendas, os Ramones seriam produzidos pela dupla Kolotkin/Cordell, que pouco antes tinha gravado "I love rock'n'roll" com Joan Jett. Despacharam nove canções com um total de 33 minutos - nas quais se incluíam duas versões ("Little bit o'soul", "I need your love") - sem grande inspiração, ainda que mais próximos da sua matriz original. "Psycho Therapy" safou-se para a história dos Ramones, mas "Subterranean Jungle" continua a ser mais um falhanço na demanda do número um perdido.

1984. Apesar de pioneiros, os Ramones haviam já sido ultrapassados pelos U2 (Steve Lillywhite tinha sido sugerido para produzir o álbum anterior) e pelos Clash em termos de popularidade e importância artística. E decidem voltar à estaca zero. Em vez de produtores exteriores, optaram por velhos camaradas (o baterista Tom Erdelyi e Ed Stasium) que os recolocam na linha. Canções inspiradas em filmes de terror, rock minimalista incapaz de seguir a regra da canção de três minutos, enfim, a chinfrineira do costume voltou a provar a pertinência dos Ramones dez anos depois de terem aparecido. "Too Tough to Die" deu-lhes nova vida e, muito provavelmente, impediu que a banda se desintegrasse.

Mas em 1984 era impossível os Ramones voltarem a revolucionar o rock como o tinham feito. Ficava a nostalgia e o conforto de que, afinal, a vida continuava. Miguel Francisco Cadete

Jaga Jazzist

A Livingroom Hush

Smalltown Supersound, distri. Ananana

8/10

A Noruega perfila-se como ponta de lança do recente "hype" musical oriundo do Norte da Europa. Os discos e os artistas vão surgindo em catadupa e, pelo acervo disponível, não é difícil concluir que existe quantidade, qualidade e diversidade. A mais recente tradução deste estado de coisas são os Jaga Jazzist, uma espécie de supergrupo de dez elementos com inúmeras ramificações e projectos paralelos. Em regime electro-acústico, amplamente dominado pelos instrumentos, os Jaga Jazzist propõem em "A Livingroom Hush" uma viagem pela imaginação, sem limites nem fronteiras, tendo o jazz como veículo de eleição. Entre o caos e a abstracção, a melodia e a harmonia, atravessamos paisagens oníricas e cinematográficas, e encontramos vestígios, alguns residuais, de pós-rock, rock progressivo, noise, electrónica, hip-hop e música brasileira. É um disco que equilibra experimentalismo e coragem, desafio e ruptura, com sedução e acessibilidade. Uma excelente surpresa. Rui Portulez

Bright Eyes

The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground

Wichita, distri. Symbiose

8/10

A primeira impressão de "The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground", o novo álbum dos Bright Eyes, a banda do prodígio que dá pelo nome de Conor Oberst, é fraca. Afinal, "The Big Picture", a canção que abre o álbum, não passa de um tipo com uma entoação de voz zangada, de uns ligeiros e esparsos sons de guitarra acústica e de, aqui e ali, um leve murmurar de uma voz feminina; tudo muito fugaz e ao mesmo tempo muito enervante. Mas isso é só à primeira. Depois, quando nos damos ao trabalho de ouvir (e a expressão "ouvir de ouvidos bem abertos" ganha sentido), o álbum revela-se uma encruzilhada de subtilezas, de delicadas e singelas tramas acústicas intercaladas com melodias de toada viva e colorida, por cima dos quais sobressai a característica voz de Oberst. Pensado como se fosse um livro, onde as canções são os capítulos, "The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground" anda à volta de uma história da amor e também das dúvidas existenciais do atormentado Oberst, que, mais uma vez, se revela excelente prosador, e uma personagem excessiva, mas cativante. Raquel M. Pinheiro

Gonçalo Salgueiro

...No Tempo das Cerejas

distr. Strauss

8/10

Sobretudo desde a morte de Amália que o desporto favorito de muitos é o de descobrir "divas", assim no plural, como se as divas nascessem das árvores, e logo ao primeiro disquinho. Qualquer vozinha desenxabida, revelada na Holanda ou no Luxemburgo, tem direito a parangonas de divismo certo. Ora o "divismo" (a origem da palavra está relacionada com divindade) não se compraz com plurais, aparece caso a caso perante vozes muitos especiais, e não obrigatoriamente vozes bonitas - vejam-se os casos sintomáticos da Callas e da Piaf.

Tudo isto vem a propósito do primeiro disco de Gonçalo Salgueiro, sobre o qual se tem feito um silêncio injusto - trata-se, sem precisarmos de superlativos extemporâneos, de uma voz absolutamente especial, que não se confunde com nenhuma outra, o que é raro, entre as que imitam a Amália e as que imitam outras fadistas que não nomeiam e que às vezes até hostilizam. Claro que vozes masculinas nunca têm, no fado, a projecção que se destina às ditas "divas", mas o caso de Camané veio reavivar a questão e o de Gonçalo Salgueiro trazê-lo de novo à liça.

Por outro lado, "... No Tempo das Cerejas" é assumidamente um disco amaliano, desde o título, citação de conhecida frase autobiográfica da diva, até ao outro original, "Tenho em Mim a Voz de um Povo", que se lhe aplica na totalidade, passando pela revisita a temas mais ou menos incontornáveis do repertório amaliano. A diferença é que na voz de Gonçalo Salgueiro tudo aparece pessoal e metamorfoseado, até porque se colocam em lugar de destaque temas que Amália criou no final da carreira, já com a voz envelhecida.

Não por acaso, o disco abre com "Grito", letra de Amália e música de Carlos Gonçalves, usada simbolicamente na despedida à fadista no seu enterro, que Gonçalo torna sua, com um fraseado muito próprio e um "legato" quase operático. Aliás, quando lemos o excelente texto de Rui Vieira Nery, integrado no disco, esclarecemos a questão, ao ser-nos revelado que estudou canto com Maria Cristina de Castro. Na mesma categoria, porque pertencentes à fase final da discografia amaliana, se integram temas como "Ó Pinheiro, Meu Irmão"ou "O Fado Chora-se Bem", recriados com espantoso bom gosto e com extrema simplicidade.

Mais problemático poderia ser o caso de "Meia Noite e uma Guitarra", "Sombra" ou, sobretudo, "Gaivota", indissociáveis de uma voz e de uma imagem. E é aqui que o milagre acontece: como já acontecera, quando o tínhamos visto ao vivo, no Clube do Fado ou na televisão, Gonçalo Salgueiro apossa-se da melodia de Alain Oulman e constrói para ela uma nova harmonia, diferentes cores. Nunca há imitação nem aproveitamneto primário do "déjà entendu". Voltando à conversa das divas, apetecia dizer que Gonçalo canta Amália como a Piaf refazia a Damia.

Disco perfeito? Claro que não, apenas um fabuloso primeiro disco a dar indicações de um caso sério de musicalidade e de originalidade. Dispensável talvez fosse o "potpourri", em quatro línguas, de canções internacionais que Amália criou ou reinventou. De repensar, talvez, a questão gráfica, com a pose seráfica do fadista a contrastar com a tétrica foto a preto-e-branco dos acompanhantes. No entanto, trata-se de questões de pormenor. Ouça-se o rigor da ormanentação em "Grito" ou o modo como sustenta as frases de "Sombra", sinta-se a respiração e a emoção de quem faz da voz uma personagem. Tanto basta. Mário Jorge Torres

PYROLATOR

Inland

Ata Tak, distri. Symbiose

8/10

Agora que a salvação (pelo menos para os próximos três meses...) da pop a fingir de adulta está na recuperação enfadonha dos trejeitos da electrónica comercial dos anos 80 e que, de Moby aos DAT Politics, anda toda a gente entretida a deixar fugir a personalidade, convém recordar os que há mais de 20 anos fritaram os bifes que os talhantes de hoje transformaram em hambúrgueres. Pyrolator, aliás Kurt Dahlke (ex-Der Plan), foi um dos precursores. Se o posterior "Wunderland" deu de mamar às "funny electronics" em voga, foi "Inland", estreia de 1979 do músico alemão, que escreveu as primeiras páginas do que, nos 80's, viria a aligeirar-se sob a forma de "pop industrial", na leitura de Thomas Leer, Robert Rental ou Fad Gadget. "Tape collage", sintetizadores analógicos regulados de maneira contrária às recomendações do fabricante e uma sensibilidade tipicamente "kraut" montam um sistema de referências que passam pelo "bruitismo" oleoso, o industrial lúdico dos Cluster, passagens de sequenciadores ominosos ao modo dos Heldon e a fantasmagórica algazarra de crianças a brincar no pátio que os Tangerine Dream recortaram em "Phaedra". Essencial. Fernando Magalhães

MADDY PRIOR & THE GIRLS

Bib & Tuck

Park, distri. Megamúsica

7/10

As "girls" são Rose Kent (presumivelmente filha de Maddy e Rick Kemp) e Abbie Lathe, com quem a até há pouco tempo cantora dos Steeleye Span partilha as vocalizações de um álbum despreconceituoso que agradará porventura mais aos apreciadores de canto "a capella", registo que preenche a maioria do alinhamento, que aos admiradores dos arranjos barrocos dos Carnival Band, outro dos projectos em que cantora está envolvida. A esta simplicidade de meios respondem as cantoras ora com o despojamento das antigas baladeiras tradicionais ora com deliciosas interacções harmónicas, como em "Acapella stella" ou "Hush hush", este último um daqueles instantes de música iluminados por uma beleza sobrenatural que acontecem apenas porque Deus esteve presente. "Rain" mostra o que poderia ter sido o encontro dos Steeleye Span com as Zap Mama, mas o tema final, "Cotton triangle", longa suite conceptual inspirada em temática e sons africanos, parece ter sido prematuramente arrancada aos primeiros estágios de composição, perdida em programações "new age" e num exotismo de superfície que entra em contradição com o que, para Maddy Prior, será porventura mais um "ritual de passagem". F.M.

Le Peuple de L'Herbe

P.H. Test/ Two

PIAS, distri. Edel

(6/10)

É o segundo álbum do colectivo francês. Depois de uma estreia dominada pelo hip-hop, o grupo resolveu neste registo testar outras vibrações e inspirações. Abriu as portas ao drum'n'bass, ragga, dub jazz e rock, e enriqueceu as programações e batidas com guitarras, trompete e trombone. Tornou ágil a sua música e, para já, conseguiu formar um embrião sonoro onde diversidade rima com indefinição. Um repertório para (quase) todos os gostos e ocasiões. O "povo da erva" demonstra tanto à vontade a debitar descargas furiosas e musculadas de ritmo e decibéis como em divagar, placidamente, pelos insondáveis e enevoados desígnios de Jah. A música é funcional, indelevelmente adolescente, e promete resultar bem ao vivo, motivo que parece ter pesado na composição deste "teste" de acidez. Em palco, tanto poderemos encontar uma nova encarnação Jazzmatazz como um regresso aos primórdios dos Prodigy ou breves invocações dos Blues Brothers. Nada de grave nem de particularmente entusiasmante. Rui Portulez

Piano Magic

Writers Without Homes

4AD, distri. MVM

8/10

Os Piano Magic não enganam: o nome define-os perfeitamente. A magia de um instrumento acústico. A calma de uma tarde de Outono com chuva miudinha a cair no alpendre. Piano, percussões esparsas, vozes femininas, na tradição das grandes senhoras a que a 4AD nos acostumou (Elizabeth Fraser, Lisa Gerrard). Há quem chame a este tipo de música soporífera, enfadonha ou pretensiosa - nós chamamos encantatória. De um gosto extremo pelos detalhes, pelos sons cuidadosamente escolhidos que são os significantes maiores destes temas, e pensados pela mente mas tocados e cantados pelo coração. "Writers Without Homes" pode ser um irmão mais novo de "From Gardens Where We Feel Secure", de Virginia Astley, com um ambiente calmo e acolhedor, infantil, bucólico, se bem que entrecortado pelo súbito rugir de um trovão. O trio de Glen Johnson, Alasdair Steer e Miguel Marin, após uma serie de álbuns em várias etiquetas, parece ter encontrado na 4AD refúgio seguro num mundo de agressões. Para estes "purveyors of fine radiophonic sounds since 1996", como se definem, a música não nos salva de nada, apenas do silêncio. Não nos salva de um coração destroçado, nem da violência. Mas já é mais do que suficiente. Eurico Monchique

Meshell Ndgeocello

Cookie: The Anthropological Mixtape

Maverick, distri. Warner

(8/10)

Meshell Ndegeocello nasceu em Berlim, é baixista e "singer-songwitter". Uma veterana e pioneira da nova música negra americana com um currículo impressionante. Gravou quatro álbuns, foi nomeada para sete Grammys e trabalhou com uma mão cheia de estrelas (Alanis Morissete, Lenny Kravitz ou Madonna, a dona da editora Maverick), mas, apesar disso, continua a ser uma figura mais ou menos conotada com o "underground". Provavelmente, depois deste álbum, aí permanecerá. O disco é uma espécie de Ursula Rucker versus Jill Scott ou Eryka Badu. O mesmo é dizer que é excelente. As palavras são pertinentes, esclarecidas, provocatórias e contundentes. As rimas são fluentes e felizes, musicais. Entre a "spoken word" (por vezes sacada a gente como Gil Scott-Heron, Angela Davies ou à "Anthology Of Negro Poets"), o canto e o murmúrio, as eternas problemáticas afro-americanas (onde não falta a crítica do folclore dos "macho men"), a condição da mulher, a sociedade, o consumismo, o sexo, a televisão ou a indústria musical, são escalpelizadas à luz do século XXI. Com ironia, carinho, violência, humor. Sem vulgaridade. Afinal, mudam-se os tempos mas algumas vontades continuam a resistir, irracionalmente. Logo na abertura, em "Dead nigga blvd. (Pt.1)", ouve-se "You sell your soul like you sell a piece of ass..." É apenas o princípio.

A emoldurar o(s) discurso(s), temos música negra de corpo e alma. Do hip-hop aos blues, do piscar de olho ao "mainstream" feito com programações e batidas pouco convencionais (que inclui uma remistura assinada por Missy Elliott com a participação de Redman e Tweet) aos dispensáveis solos de guitarra (por vezes tenebrosos), da memória dos Parliament e Prince à visão de futuro de Talib Kweli (e da própria autora, obviamente), tudo é feito com intenção, emoção e espiritualidade.

Depois de Sarah Jones ou Janet Jackson terem tido problemas com a "moral e os bons costumes censórios americanos", será interessante esperar pelas reacções que "Cookie: The Anthropological Mixtape" poderá deflagrar. Enquanto essa curiosidade levemente mórbida e acessória não é satisfeita, temos um disco suculento e substantivo para ir aprofundando e saboreando com tempo e calma. E como as canções que o constituem trazem o carimbo da longevidade, não há pressas. Apenas em passar a palavra. E em regressar, por exemplo, ao álbum de estreia, "Plantation Lullabies", de 1993. Rui Portulez

Sexta-feira, 27 de Setembro de 2002

Ramones

End of the Century

(6/10)

Pleasant Dreams

(5/10)

Subterranean Jungle

4/10

Too Tough to Die

(5/10)

Warner Bros, distri. Warner

Depois de terem arrasado o mundo com quatro álbuns, o melhor disco ao vivo da história e uma digressão em Inglaterra que levou à invenção do punk inglês, os Ramones sonharam voar mais alto. Mais por vontade alheia, meteram-se nas mãos de Phil Spector que fez aquilo que melhor sabia: transformou os quatro rufias de Queens, Nova Iorque, numa boys band como as outras que estava habituado a produzir. Em termos práticos, isso quer dizer que "End of the Century" é um álbum de Joey Ramone e não tanto dos outros manos. O cantor dos Ramones era também a figura mais próxima de Spector (o imaginário série B, as referências à surf music, a ideia da imagem "cartoon" vinha tudo da cabeça dele) e não admira que a "wall of sound" de Spector tenha engolido os outros por entre arranjos de cordas ("Baby I love you"), a memória do som roufenho dos dias da rádio ("Do you remember rock'n'roll radio?") ou o som poppy das girls bands dos anos 60 como as Ronnettes ("I can't make it on time"). Confirmando a sua proverbial prepotência (a lenda diz que Spector apontou a sua pistola, pelo menos por uma vez, à cabeça de Dee Dee Ramone), "End of the Century" é um disco de Spector e não tanto dos Ramones, excepção feita às três últimas faixas ("Rock'n'roll High School", "All the way" e "High risk insurance") onde, ao longe, ainda se avista a fúria primordial dos autores de "Rocket to Russia". As maquetas incluídas como faixas extra nesta reedição provam isso mesmo.

"End of the Century" não só deixou os fãs deserdados como instalou a discórdia entre a família Ramone. Para o álbum seguinte, "Pleasant Dreams", contratram o produtor Graham Gouldman (inglês, membro dos 10cc e escritor de canções para os Yardbirds e Hollies) ao mesmo tempo que anunciavam na faixa de abertura: "We want the airwaves". O som tornou-se ainda mais redondo, modernizou-se e caiu definitivamente num pop-punk que tanto devia aos Cheap Trick como às Ronnettes. Pela primeira vez, a capa não mostrava uma imagem da banda e o baterista Marky (ex-Voidoid) já não terminaria as gravações do álbum seguinte, "Subterranean Jungle", o sétimo em seis anos. Ainda com a ambição de chegar ao topo das tabelas de vendas, os Ramones seriam produzidos pela dupla Kolotkin/Cordell, que pouco antes tinha gravado "I love rock'n'roll" com Joan Jett. Despacharam nove canções com um total de 33 minutos - nas quais se incluíam duas versões ("Little bit o'soul", "I need your love") - sem grande inspiração, ainda que mais próximos da sua matriz original. "Psycho Therapy" safou-se para a história dos Ramones, mas "Subterranean Jungle" continua a ser mais um falhanço na demanda do número um perdido.

1984. Apesar de pioneiros, os Ramones haviam já sido ultrapassados pelos U2 (Steve Lillywhite tinha sido sugerido para produzir o álbum anterior) e pelos Clash em termos de popularidade e importância artística. E decidem voltar à estaca zero. Em vez de produtores exteriores, optaram por velhos camaradas (o baterista Tom Erdelyi e Ed Stasium) que os recolocam na linha. Canções inspiradas em filmes de terror, rock minimalista incapaz de seguir a regra da canção de três minutos, enfim, a chinfrineira do costume voltou a provar a pertinência dos Ramones dez anos depois de terem aparecido. "Too Tough to Die" deu-lhes nova vida e, muito provavelmente, impediu que a banda se desintegrasse.

Mas em 1984 era impossível os Ramones voltarem a revolucionar o rock como o tinham feito. Ficava a nostalgia e o conforto de que, afinal, a vida continuava. Miguel Francisco Cadete

Jaga Jazzist

A Livingroom Hush

Smalltown Supersound, distri. Ananana

8/10

A Noruega perfila-se como ponta de lança do recente "hype" musical oriundo do Norte da Europa. Os discos e os artistas vão surgindo em catadupa e, pelo acervo disponível, não é difícil concluir que existe quantidade, qualidade e diversidade. A mais recente tradução deste estado de coisas são os Jaga Jazzist, uma espécie de supergrupo de dez elementos com inúmeras ramificações e projectos paralelos. Em regime electro-acústico, amplamente dominado pelos instrumentos, os Jaga Jazzist propõem em "A Livingroom Hush" uma viagem pela imaginação, sem limites nem fronteiras, tendo o jazz como veículo de eleição. Entre o caos e a abstracção, a melodia e a harmonia, atravessamos paisagens oníricas e cinematográficas, e encontramos vestígios, alguns residuais, de pós-rock, rock progressivo, noise, electrónica, hip-hop e música brasileira. É um disco que equilibra experimentalismo e coragem, desafio e ruptura, com sedução e acessibilidade. Uma excelente surpresa. Rui Portulez

Bright Eyes

The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground

Wichita, distri. Symbiose

8/10

A primeira impressão de "The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground", o novo álbum dos Bright Eyes, a banda do prodígio que dá pelo nome de Conor Oberst, é fraca. Afinal, "The Big Picture", a canção que abre o álbum, não passa de um tipo com uma entoação de voz zangada, de uns ligeiros e esparsos sons de guitarra acústica e de, aqui e ali, um leve murmurar de uma voz feminina; tudo muito fugaz e ao mesmo tempo muito enervante. Mas isso é só à primeira. Depois, quando nos damos ao trabalho de ouvir (e a expressão "ouvir de ouvidos bem abertos" ganha sentido), o álbum revela-se uma encruzilhada de subtilezas, de delicadas e singelas tramas acústicas intercaladas com melodias de toada viva e colorida, por cima dos quais sobressai a característica voz de Oberst. Pensado como se fosse um livro, onde as canções são os capítulos, "The Story Is In The Soil, Keep Your Ear To The Ground" anda à volta de uma história da amor e também das dúvidas existenciais do atormentado Oberst, que, mais uma vez, se revela excelente prosador, e uma personagem excessiva, mas cativante. Raquel M. Pinheiro

Gonçalo Salgueiro

...No Tempo das Cerejas

distr. Strauss

8/10

Sobretudo desde a morte de Amália que o desporto favorito de muitos é o de descobrir "divas", assim no plural, como se as divas nascessem das árvores, e logo ao primeiro disquinho. Qualquer vozinha desenxabida, revelada na Holanda ou no Luxemburgo, tem direito a parangonas de divismo certo. Ora o "divismo" (a origem da palavra está relacionada com divindade) não se compraz com plurais, aparece caso a caso perante vozes muitos especiais, e não obrigatoriamente vozes bonitas - vejam-se os casos sintomáticos da Callas e da Piaf.

Tudo isto vem a propósito do primeiro disco de Gonçalo Salgueiro, sobre o qual se tem feito um silêncio injusto - trata-se, sem precisarmos de superlativos extemporâneos, de uma voz absolutamente especial, que não se confunde com nenhuma outra, o que é raro, entre as que imitam a Amália e as que imitam outras fadistas que não nomeiam e que às vezes até hostilizam. Claro que vozes masculinas nunca têm, no fado, a projecção que se destina às ditas "divas", mas o caso de Camané veio reavivar a questão e o de Gonçalo Salgueiro trazê-lo de novo à liça.

Por outro lado, "... No Tempo das Cerejas" é assumidamente um disco amaliano, desde o título, citação de conhecida frase autobiográfica da diva, até ao outro original, "Tenho em Mim a Voz de um Povo", que se lhe aplica na totalidade, passando pela revisita a temas mais ou menos incontornáveis do repertório amaliano. A diferença é que na voz de Gonçalo Salgueiro tudo aparece pessoal e metamorfoseado, até porque se colocam em lugar de destaque temas que Amália criou no final da carreira, já com a voz envelhecida.

Não por acaso, o disco abre com "Grito", letra de Amália e música de Carlos Gonçalves, usada simbolicamente na despedida à fadista no seu enterro, que Gonçalo torna sua, com um fraseado muito próprio e um "legato" quase operático. Aliás, quando lemos o excelente texto de Rui Vieira Nery, integrado no disco, esclarecemos a questão, ao ser-nos revelado que estudou canto com Maria Cristina de Castro. Na mesma categoria, porque pertencentes à fase final da discografia amaliana, se integram temas como "Ó Pinheiro, Meu Irmão"ou "O Fado Chora-se Bem", recriados com espantoso bom gosto e com extrema simplicidade.

Mais problemático poderia ser o caso de "Meia Noite e uma Guitarra", "Sombra" ou, sobretudo, "Gaivota", indissociáveis de uma voz e de uma imagem. E é aqui que o milagre acontece: como já acontecera, quando o tínhamos visto ao vivo, no Clube do Fado ou na televisão, Gonçalo Salgueiro apossa-se da melodia de Alain Oulman e constrói para ela uma nova harmonia, diferentes cores. Nunca há imitação nem aproveitamneto primário do "déjà entendu". Voltando à conversa das divas, apetecia dizer que Gonçalo canta Amália como a Piaf refazia a Damia.

Disco perfeito? Claro que não, apenas um fabuloso primeiro disco a dar indicações de um caso sério de musicalidade e de originalidade. Dispensável talvez fosse o "potpourri", em quatro línguas, de canções internacionais que Amália criou ou reinventou. De repensar, talvez, a questão gráfica, com a pose seráfica do fadista a contrastar com a tétrica foto a preto-e-branco dos acompanhantes. No entanto, trata-se de questões de pormenor. Ouça-se o rigor da ormanentação em "Grito" ou o modo como sustenta as frases de "Sombra", sinta-se a respiração e a emoção de quem faz da voz uma personagem. Tanto basta. Mário Jorge Torres

PYROLATOR

Inland

Ata Tak, distri. Symbiose

8/10

Agora que a salvação (pelo menos para os próximos três meses...) da pop a fingir de adulta está na recuperação enfadonha dos trejeitos da electrónica comercial dos anos 80 e que, de Moby aos DAT Politics, anda toda a gente entretida a deixar fugir a personalidade, convém recordar os que há mais de 20 anos fritaram os bifes que os talhantes de hoje transformaram em hambúrgueres. Pyrolator, aliás Kurt Dahlke (ex-Der Plan), foi um dos precursores. Se o posterior "Wunderland" deu de mamar às "funny electronics" em voga, foi "Inland", estreia de 1979 do músico alemão, que escreveu as primeiras páginas do que, nos 80's, viria a aligeirar-se sob a forma de "pop industrial", na leitura de Thomas Leer, Robert Rental ou Fad Gadget. "Tape collage", sintetizadores analógicos regulados de maneira contrária às recomendações do fabricante e uma sensibilidade tipicamente "kraut" montam um sistema de referências que passam pelo "bruitismo" oleoso, o industrial lúdico dos Cluster, passagens de sequenciadores ominosos ao modo dos Heldon e a fantasmagórica algazarra de crianças a brincar no pátio que os Tangerine Dream recortaram em "Phaedra". Essencial. Fernando Magalhães

MADDY PRIOR & THE GIRLS

Bib & Tuck

Park, distri. Megamúsica

7/10

As "girls" são Rose Kent (presumivelmente filha de Maddy e Rick Kemp) e Abbie Lathe, com quem a até há pouco tempo cantora dos Steeleye Span partilha as vocalizações de um álbum despreconceituoso que agradará porventura mais aos apreciadores de canto "a capella", registo que preenche a maioria do alinhamento, que aos admiradores dos arranjos barrocos dos Carnival Band, outro dos projectos em que cantora está envolvida. A esta simplicidade de meios respondem as cantoras ora com o despojamento das antigas baladeiras tradicionais ora com deliciosas interacções harmónicas, como em "Acapella stella" ou "Hush hush", este último um daqueles instantes de música iluminados por uma beleza sobrenatural que acontecem apenas porque Deus esteve presente. "Rain" mostra o que poderia ter sido o encontro dos Steeleye Span com as Zap Mama, mas o tema final, "Cotton triangle", longa suite conceptual inspirada em temática e sons africanos, parece ter sido prematuramente arrancada aos primeiros estágios de composição, perdida em programações "new age" e num exotismo de superfície que entra em contradição com o que, para Maddy Prior, será porventura mais um "ritual de passagem". F.M.

Le Peuple de L'Herbe

P.H. Test/ Two

PIAS, distri. Edel

(6/10)

É o segundo álbum do colectivo francês. Depois de uma estreia dominada pelo hip-hop, o grupo resolveu neste registo testar outras vibrações e inspirações. Abriu as portas ao drum'n'bass, ragga, dub jazz e rock, e enriqueceu as programações e batidas com guitarras, trompete e trombone. Tornou ágil a sua música e, para já, conseguiu formar um embrião sonoro onde diversidade rima com indefinição. Um repertório para (quase) todos os gostos e ocasiões. O "povo da erva" demonstra tanto à vontade a debitar descargas furiosas e musculadas de ritmo e decibéis como em divagar, placidamente, pelos insondáveis e enevoados desígnios de Jah. A música é funcional, indelevelmente adolescente, e promete resultar bem ao vivo, motivo que parece ter pesado na composição deste "teste" de acidez. Em palco, tanto poderemos encontar uma nova encarnação Jazzmatazz como um regresso aos primórdios dos Prodigy ou breves invocações dos Blues Brothers. Nada de grave nem de particularmente entusiasmante. Rui Portulez

Piano Magic

Writers Without Homes

4AD, distri. MVM

8/10

Os Piano Magic não enganam: o nome define-os perfeitamente. A magia de um instrumento acústico. A calma de uma tarde de Outono com chuva miudinha a cair no alpendre. Piano, percussões esparsas, vozes femininas, na tradição das grandes senhoras a que a 4AD nos acostumou (Elizabeth Fraser, Lisa Gerrard). Há quem chame a este tipo de música soporífera, enfadonha ou pretensiosa - nós chamamos encantatória. De um gosto extremo pelos detalhes, pelos sons cuidadosamente escolhidos que são os significantes maiores destes temas, e pensados pela mente mas tocados e cantados pelo coração. "Writers Without Homes" pode ser um irmão mais novo de "From Gardens Where We Feel Secure", de Virginia Astley, com um ambiente calmo e acolhedor, infantil, bucólico, se bem que entrecortado pelo súbito rugir de um trovão. O trio de Glen Johnson, Alasdair Steer e Miguel Marin, após uma serie de álbuns em várias etiquetas, parece ter encontrado na 4AD refúgio seguro num mundo de agressões. Para estes "purveyors of fine radiophonic sounds since 1996", como se definem, a música não nos salva de nada, apenas do silêncio. Não nos salva de um coração destroçado, nem da violência. Mas já é mais do que suficiente. Eurico Monchique

Meshell Ndgeocello

Cookie: The Anthropological Mixtape

Maverick, distri. Warner

(8/10)

Meshell Ndegeocello nasceu em Berlim, é baixista e "singer-songwitter". Uma veterana e pioneira da nova música negra americana com um currículo impressionante. Gravou quatro álbuns, foi nomeada para sete Grammys e trabalhou com uma mão cheia de estrelas (Alanis Morissete, Lenny Kravitz ou Madonna, a dona da editora Maverick), mas, apesar disso, continua a ser uma figura mais ou menos conotada com o "underground". Provavelmente, depois deste álbum, aí permanecerá. O disco é uma espécie de Ursula Rucker versus Jill Scott ou Eryka Badu. O mesmo é dizer que é excelente. As palavras são pertinentes, esclarecidas, provocatórias e contundentes. As rimas são fluentes e felizes, musicais. Entre a "spoken word" (por vezes sacada a gente como Gil Scott-Heron, Angela Davies ou à "Anthology Of Negro Poets"), o canto e o murmúrio, as eternas problemáticas afro-americanas (onde não falta a crítica do folclore dos "macho men"), a condição da mulher, a sociedade, o consumismo, o sexo, a televisão ou a indústria musical, são escalpelizadas à luz do século XXI. Com ironia, carinho, violência, humor. Sem vulgaridade. Afinal, mudam-se os tempos mas algumas vontades continuam a resistir, irracionalmente. Logo na abertura, em "Dead nigga blvd. (Pt.1)", ouve-se "You sell your soul like you sell a piece of ass..." É apenas o princípio.

A emoldurar o(s) discurso(s), temos música negra de corpo e alma. Do hip-hop aos blues, do piscar de olho ao "mainstream" feito com programações e batidas pouco convencionais (que inclui uma remistura assinada por Missy Elliott com a participação de Redman e Tweet) aos dispensáveis solos de guitarra (por vezes tenebrosos), da memória dos Parliament e Prince à visão de futuro de Talib Kweli (e da própria autora, obviamente), tudo é feito com intenção, emoção e espiritualidade.

Depois de Sarah Jones ou Janet Jackson terem tido problemas com a "moral e os bons costumes censórios americanos", será interessante esperar pelas reacções que "Cookie: The Anthropological Mixtape" poderá deflagrar. Enquanto essa curiosidade levemente mórbida e acessória não é satisfeita, temos um disco suculento e substantivo para ir aprofundando e saboreando com tempo e calma. E como as canções que o constituem trazem o carimbo da longevidade, não há pressas. Apenas em passar a palavra. E em regressar, por exemplo, ao álbum de estreia, "Plantation Lullabies", de 1993. Rui Portulez

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