Adeus, príncipe

05-08-2004
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Adeus, Príncipe

Por RUI VIEIRA NERY

Sábado, 24 de Julho de 2004 Estava há doze anos imobilizado numa cama, perdendo pouco a pouco o contacto com a realidade que o cercava mas sem nunca dar qualquer sinal de revolta perante o curso inexorável da doença que - sabia-o bem desde o início - o haveria de matar, mas a seu tempo, lentamente, cruelmente. Era mais um caminho que percorria com aquela mesma doçura interior, por um lado quase infantil mas ao mesmo tempo de uma enorme sabedoria, que emanava da sua presença, e que se podia traduzir tanto na coragem calma com que sempre enfrentou tantos momentos difíceis da sua vida, como sobretudo na sua postura permanente de enorme humildade perante a sua própria arte. Sabê-lo assim, nesta tragédia da entrega progressiva mas exemplarmente serena a um lenta morte anunciada, lembrava-me muitas vezes os versos de Dylan Thomas perante a morte do pai: "Não entres assim tão docemente nessa noite boa..." Esta era, contudo, uma serenidade profunda, estrutural, que não o impedia de à superfície reagir de forma fortemente emocional perante situações que contrariassem de algum modo os seus princípios quase puritanos de ética pessoal ou cívica, e que, por outro lado, se suspendia por completo no momento em que começava a tocar e se entregava então por completo a um tremendo combate interior, como se essa fosse a condição indispensável para superar quaisquer barreiras físicas, fossem elas as do seu instrumento ou as do seu próprio corpo. Viamo-lo então nervoso, ofegante, a suar, curvado sobre a guitarra e envolvendo-a num gesto simultâneo de amor e de posse, de carícia e de conquista, de conhecimento adquirido e de descoberta sempre renovada. Procurar-se-lhe-ão agora a cada momento herdeiros e continuadores, mas a verdade é que não os tem, do mesmo modo que se lhe não pode atribuir nenhuma influência anterior verdadeiramente decisiva, mesmo a de seu pai, Artur Paredes, que apesar disso terá sido por certo a mais marcante. Paredes é o ponto de encontro de muito caminhos que se cruzam nele para depois prosseguirem a sua própria lógica divergente, deixando nele - e nele só - aquela síntese única e irrepetível entre a canção de Coimbra as inúmeras tradições da música rural portuguesa, entre o popular e o erudito, entre a referência barroca e o virtuosismo romântico. Ninguém, em particular, se pode reivindicar da sua herança, porque ela extravasou de todas as escolas e de todos os géneros específicos e pertence, por isso, ao conjunto de todos os que tocam e amam a guitarra portuguesa e, num plano mais geral, a todos os que de algum modo se reconhecem na música de Paredes como num espelho que consegue reflectir de forma surpreendente as múltiplas parcelas da nossa identidade. Há já e haverá sempre outros grandes guitarristas, que traçarão sem dúvida outros percursos importantes para o instrumento, mas esses ou se situam autonomamente numa ou noutra das tendências que nele se cruzaram ou representam outras sínteses e outras fusões que não se confundem com a sua nem possuem essa mesma banda larga, ao mesmo tempo tão inconfundivelmente pessoal na sua linguagem e tão universal no seu apelo. Paredes deixa-nos um património discográfico confrangedoramente escasso. Passava já dos trinta anos quando gravou pela primeira vez, acompanhando primeiro o pai e depois o fadista de Coimbra Augusto Camacho. Só num pequeno EP já de 1962 começou a passar ao disco o repertório a solo que mais o definiria como criador e andava pelos quarenta quando surgiu o seu primeiro LP, "Guitarra Portuguesa". A sua discografia integral cabe em oito CD, e mesmo assim uma boa metade destes corresponde a improvisos com outros músicos, concertos ao vivo, segundas versões de obras já gravadas. Passou anos a fio sem gravar, mesmo depois de estar já plenamente consagrado, preferindo tocar ao vivo num verdadeiro frenesim de apresentações locais, muitas vezes em pequenas colectividades populares do interior do País, numa militância cívica generosa mas desgastante, que não lhe deixava tempo para se concentrar, para criar novo repertório, para preparar novos álbuns. O seu legado fonográfico é tão precioso quanto ínfimo face ao que nos podia ter deixado se simplesmente alguém se tivesse, em devido tempo, interessado por isso. Viveu pobre e morre - literalmente - na miséria, a sobreviver, no lar em que estava internado, de pouco mais do que uma esmola do Estado depois de ao longo de quase toda a sua vida ter tido de acumular a prática da sua arte com empregos menores, ora a arquivar radiografias num hospital, ora, quando expulso por razões políticas, a distribuir propaganda médica. Nunca soube nem quis vender-se "bem" como músico. Tocava - tantas e tantas vezes - por simples solidariedade com as causas que o entusiasmavam, e mesmo no circuito profissional parecia-lhe indigno discutir os "cachets" que lhe propunham, mesmo quando eram ridículos face aos valores correntes de mercado. Ao relembrar tudo isto, poucas horas depois de saber da sua morte, vem-me uma enorme sensação de vergonha como português face a esta indignidade permanente da maneira como década após década, regime após regime, este País agiu para com um dos seus maiores criadores culturais do século XX. Vergonha perante as dificuldades que passou, as perseguições que sofreu, os estímulos que não teve, as oportunidades que lhe foram negadas, o esquecimento a que foi abandonado, a gratidão que não encontrou. Vergonha perante a nobreza e a generosidade com que apesar de tudo continuou sempre a dar-se-nos integralmente com a mesma entrega, com a mesma autenticidade, com a mesma paixão, com a mesma doçura. Era um príncipe que não soubemos merecer. E no momento desta última despedida só consigo lembrar-me das palavras do "Hamlet": "Adeus, doce príncipe." OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Morreu o mestre da guitarra portuguesa

"Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus"

Depoimentos

Em vez de Paredes dizer português

Paredes por Paredes

O Paredes do sumo de laranja no Frágil

Carlos Paredes: O dom dos anjos

Adeus, príncipe

Acordes de uma melancolia existencial

A guitarra que trago dentro de mim

Adeus, Príncipe

Por RUI VIEIRA NERY

Sábado, 24 de Julho de 2004 Estava há doze anos imobilizado numa cama, perdendo pouco a pouco o contacto com a realidade que o cercava mas sem nunca dar qualquer sinal de revolta perante o curso inexorável da doença que - sabia-o bem desde o início - o haveria de matar, mas a seu tempo, lentamente, cruelmente. Era mais um caminho que percorria com aquela mesma doçura interior, por um lado quase infantil mas ao mesmo tempo de uma enorme sabedoria, que emanava da sua presença, e que se podia traduzir tanto na coragem calma com que sempre enfrentou tantos momentos difíceis da sua vida, como sobretudo na sua postura permanente de enorme humildade perante a sua própria arte. Sabê-lo assim, nesta tragédia da entrega progressiva mas exemplarmente serena a um lenta morte anunciada, lembrava-me muitas vezes os versos de Dylan Thomas perante a morte do pai: "Não entres assim tão docemente nessa noite boa..." Esta era, contudo, uma serenidade profunda, estrutural, que não o impedia de à superfície reagir de forma fortemente emocional perante situações que contrariassem de algum modo os seus princípios quase puritanos de ética pessoal ou cívica, e que, por outro lado, se suspendia por completo no momento em que começava a tocar e se entregava então por completo a um tremendo combate interior, como se essa fosse a condição indispensável para superar quaisquer barreiras físicas, fossem elas as do seu instrumento ou as do seu próprio corpo. Viamo-lo então nervoso, ofegante, a suar, curvado sobre a guitarra e envolvendo-a num gesto simultâneo de amor e de posse, de carícia e de conquista, de conhecimento adquirido e de descoberta sempre renovada. Procurar-se-lhe-ão agora a cada momento herdeiros e continuadores, mas a verdade é que não os tem, do mesmo modo que se lhe não pode atribuir nenhuma influência anterior verdadeiramente decisiva, mesmo a de seu pai, Artur Paredes, que apesar disso terá sido por certo a mais marcante. Paredes é o ponto de encontro de muito caminhos que se cruzam nele para depois prosseguirem a sua própria lógica divergente, deixando nele - e nele só - aquela síntese única e irrepetível entre a canção de Coimbra as inúmeras tradições da música rural portuguesa, entre o popular e o erudito, entre a referência barroca e o virtuosismo romântico. Ninguém, em particular, se pode reivindicar da sua herança, porque ela extravasou de todas as escolas e de todos os géneros específicos e pertence, por isso, ao conjunto de todos os que tocam e amam a guitarra portuguesa e, num plano mais geral, a todos os que de algum modo se reconhecem na música de Paredes como num espelho que consegue reflectir de forma surpreendente as múltiplas parcelas da nossa identidade. Há já e haverá sempre outros grandes guitarristas, que traçarão sem dúvida outros percursos importantes para o instrumento, mas esses ou se situam autonomamente numa ou noutra das tendências que nele se cruzaram ou representam outras sínteses e outras fusões que não se confundem com a sua nem possuem essa mesma banda larga, ao mesmo tempo tão inconfundivelmente pessoal na sua linguagem e tão universal no seu apelo. Paredes deixa-nos um património discográfico confrangedoramente escasso. Passava já dos trinta anos quando gravou pela primeira vez, acompanhando primeiro o pai e depois o fadista de Coimbra Augusto Camacho. Só num pequeno EP já de 1962 começou a passar ao disco o repertório a solo que mais o definiria como criador e andava pelos quarenta quando surgiu o seu primeiro LP, "Guitarra Portuguesa". A sua discografia integral cabe em oito CD, e mesmo assim uma boa metade destes corresponde a improvisos com outros músicos, concertos ao vivo, segundas versões de obras já gravadas. Passou anos a fio sem gravar, mesmo depois de estar já plenamente consagrado, preferindo tocar ao vivo num verdadeiro frenesim de apresentações locais, muitas vezes em pequenas colectividades populares do interior do País, numa militância cívica generosa mas desgastante, que não lhe deixava tempo para se concentrar, para criar novo repertório, para preparar novos álbuns. O seu legado fonográfico é tão precioso quanto ínfimo face ao que nos podia ter deixado se simplesmente alguém se tivesse, em devido tempo, interessado por isso. Viveu pobre e morre - literalmente - na miséria, a sobreviver, no lar em que estava internado, de pouco mais do que uma esmola do Estado depois de ao longo de quase toda a sua vida ter tido de acumular a prática da sua arte com empregos menores, ora a arquivar radiografias num hospital, ora, quando expulso por razões políticas, a distribuir propaganda médica. Nunca soube nem quis vender-se "bem" como músico. Tocava - tantas e tantas vezes - por simples solidariedade com as causas que o entusiasmavam, e mesmo no circuito profissional parecia-lhe indigno discutir os "cachets" que lhe propunham, mesmo quando eram ridículos face aos valores correntes de mercado. Ao relembrar tudo isto, poucas horas depois de saber da sua morte, vem-me uma enorme sensação de vergonha como português face a esta indignidade permanente da maneira como década após década, regime após regime, este País agiu para com um dos seus maiores criadores culturais do século XX. Vergonha perante as dificuldades que passou, as perseguições que sofreu, os estímulos que não teve, as oportunidades que lhe foram negadas, o esquecimento a que foi abandonado, a gratidão que não encontrou. Vergonha perante a nobreza e a generosidade com que apesar de tudo continuou sempre a dar-se-nos integralmente com a mesma entrega, com a mesma autenticidade, com a mesma paixão, com a mesma doçura. Era um príncipe que não soubemos merecer. E no momento desta última despedida só consigo lembrar-me das palavras do "Hamlet": "Adeus, doce príncipe." OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Morreu o mestre da guitarra portuguesa

"Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus"

Depoimentos

Em vez de Paredes dizer português

Paredes por Paredes

O Paredes do sumo de laranja no Frágil

Carlos Paredes: O dom dos anjos

Adeus, príncipe

Acordes de uma melancolia existencial

A guitarra que trago dentro de mim

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