Ruben de Carvalho no "Diário de Notícias"

16-08-2003
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"As «óperas»"

Ruben de Carvalho no "Diário de Notícias"

27 de Dezembro de 2002

Vamos fazer de conta que esta coluna pertence a uma revista em, papel couché, impressa a quatro cores, com anúncios de espampanante grafismo e fotos variadas de jet sets de IRS variado e que, inevitavelmente, incluiria uma coluna (ou uma página, ou duas) de sugestões de prendas do Natal. E assim, e porque é Natal e se podem dar presentes até aos Reis, vou escrever sobre um disco, coisa que, tanto quanto me parece, a custo de bastante esforço, nunca fiz nos anos que este rés-do-chão cronicante vai levando...

O disco é a reedição em CD dum marco importante da música portuguesa, o LP de Amália Rodrigues que ficou conhecido por «busto», do propriamente dito da autoria de Joaquim Valente que constituía o tema central da capa. O «busto» assinalou o início da frutuosa colaboração de Amália com Alan Oulman, que, por sua vez, concederia uma projecção inteiramente nova, não apenas à cantora, enquanto intérprete, mas também ao seu trabalho com a poesia portuguesa.

Quando do desaparecimento de Amália escrevi, a convite de José Carlos de Vasconcelos, um texto para o JL, onde alinhavava a opinião de que, mais do que incensar Amália e adjectivar a sua voz ou a sua capacidade interpretativa, se tornava indispensável estudar Amália. Compreender onde residiam e como se manifestavam as várias expressões dos seus múltiplos e influentes talentos, das novas fórmulas interpretativas à genialmente intuitiva capacidade para escolha do reportório.

Não se tratava, em rigor, de uma preocupação nova. As expressões de cultura popular (e muito particularmente as musicais) vivem a fragilidade da sua essencial transmissão oral. A ligação profunda ao quotidiano e à vida popular que faz a sua força constitui igualmente um constante risco: essencialmente fruto de condições de vida, de universos de convivialidade, de estádios culturais definidos no tempo, as expressões musicais que os reflectem tendem à extinção quando eles desaparecem.

Sem fixação escrita, frequentemente sem sequer padrões definidos de forma clara, quando a vida muda _ mesmo que por positivo progresso _ as suas expressões passam a memórias, como aconteceu a tantas manifestações de música tradicional dos meios rurais.

A nova edição do «busto» vale, naturalmente, pela qualidade digital, igualmente pelo facto de se lhe acrescentar uma gravação de Amália que, embora gravada em Portugal, nunca fora editada para o mercado português, mas sobretudo pelo pequeno single que, além de uma preciosa entrevista com a cantora, Oulman e Mourão Ferreira feita por Henrique Mendes nos anos 60, inclui três gravações de ensaios com Oulman ao piano.

Chama-se o single, com irónica e feliz ideia, «as óperas», qualificação mordaz que os guitarristas de fado _ e particularmente José Nunes, cuja guitarra participou no «busto» e sobre a qual este disco constitui também uma interessante edição _ atribuíam às complexas harmonizações de Oulman, bem diferentes do mais elementar acompanhamento habitual de fado.

Como escreve Rui Vieira Nery no folheto de apresentação, trata-se de «um documento tão precioso como comovente, como o são todos os que nos abrem desta forma uma espécie de janela privilegiada sobre o processo de trabalho de um grande artista».

E é fascinante verificar, uma vez mais, que atrás de uma obra se perfila sempre, sempre, o trabalho.

P.S.: A partir da remodelação do DN em 1 de Janeiro, as crónicas de Ruben de Carvalho passarão a ser publicadas, em novo formato, nas edições de sábado e domingo.

rubencarvalho@mail.telepac.pt

"As «óperas»"

Ruben de Carvalho no "Diário de Notícias"

27 de Dezembro de 2002

Vamos fazer de conta que esta coluna pertence a uma revista em, papel couché, impressa a quatro cores, com anúncios de espampanante grafismo e fotos variadas de jet sets de IRS variado e que, inevitavelmente, incluiria uma coluna (ou uma página, ou duas) de sugestões de prendas do Natal. E assim, e porque é Natal e se podem dar presentes até aos Reis, vou escrever sobre um disco, coisa que, tanto quanto me parece, a custo de bastante esforço, nunca fiz nos anos que este rés-do-chão cronicante vai levando...

O disco é a reedição em CD dum marco importante da música portuguesa, o LP de Amália Rodrigues que ficou conhecido por «busto», do propriamente dito da autoria de Joaquim Valente que constituía o tema central da capa. O «busto» assinalou o início da frutuosa colaboração de Amália com Alan Oulman, que, por sua vez, concederia uma projecção inteiramente nova, não apenas à cantora, enquanto intérprete, mas também ao seu trabalho com a poesia portuguesa.

Quando do desaparecimento de Amália escrevi, a convite de José Carlos de Vasconcelos, um texto para o JL, onde alinhavava a opinião de que, mais do que incensar Amália e adjectivar a sua voz ou a sua capacidade interpretativa, se tornava indispensável estudar Amália. Compreender onde residiam e como se manifestavam as várias expressões dos seus múltiplos e influentes talentos, das novas fórmulas interpretativas à genialmente intuitiva capacidade para escolha do reportório.

Não se tratava, em rigor, de uma preocupação nova. As expressões de cultura popular (e muito particularmente as musicais) vivem a fragilidade da sua essencial transmissão oral. A ligação profunda ao quotidiano e à vida popular que faz a sua força constitui igualmente um constante risco: essencialmente fruto de condições de vida, de universos de convivialidade, de estádios culturais definidos no tempo, as expressões musicais que os reflectem tendem à extinção quando eles desaparecem.

Sem fixação escrita, frequentemente sem sequer padrões definidos de forma clara, quando a vida muda _ mesmo que por positivo progresso _ as suas expressões passam a memórias, como aconteceu a tantas manifestações de música tradicional dos meios rurais.

A nova edição do «busto» vale, naturalmente, pela qualidade digital, igualmente pelo facto de se lhe acrescentar uma gravação de Amália que, embora gravada em Portugal, nunca fora editada para o mercado português, mas sobretudo pelo pequeno single que, além de uma preciosa entrevista com a cantora, Oulman e Mourão Ferreira feita por Henrique Mendes nos anos 60, inclui três gravações de ensaios com Oulman ao piano.

Chama-se o single, com irónica e feliz ideia, «as óperas», qualificação mordaz que os guitarristas de fado _ e particularmente José Nunes, cuja guitarra participou no «busto» e sobre a qual este disco constitui também uma interessante edição _ atribuíam às complexas harmonizações de Oulman, bem diferentes do mais elementar acompanhamento habitual de fado.

Como escreve Rui Vieira Nery no folheto de apresentação, trata-se de «um documento tão precioso como comovente, como o são todos os que nos abrem desta forma uma espécie de janela privilegiada sobre o processo de trabalho de um grande artista».

E é fascinante verificar, uma vez mais, que atrás de uma obra se perfila sempre, sempre, o trabalho.

P.S.: A partir da remodelação do DN em 1 de Janeiro, as crónicas de Ruben de Carvalho passarão a ser publicadas, em novo formato, nas edições de sábado e domingo.

rubencarvalho@mail.telepac.pt

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