"Vai à Janela" no Porto

09-05-2004
marcar artigo

"Vai à Janela" no Porto

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003

%Natália Faria

Os lugares junto à janela são os mais cobiçados por quem viaja de transportes colectivos. Porque nos permitem olhar a vida que se desenrola na largueza da rua, lá fora. E porque nos resguardam dos encontrões de quem, como nós, segue com horários apertados rumo a um destino. Na exposição de Olívia da Silva, patente no Museu do Carro Eléctrico, no Porto, a expressão "Vai à Janela" significa isso. E significa mais, na medida em que mostra fotografias de corpo inteiro de personagens esquecidas que, entre 1946 e 1994, ajudaram a encurtar distâncias e a transportar vidas humanas ao serviço da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.

Cobradores, motoristas, telefonistas, fiscais, inspectores, mecânicos e cozinheiras, todos eles reformados da STCP, surgem iguais e multiplicados, como fragmentos de um todo, dentro de caixas de madeira, em poses vulneráveis mas altivas, oferecendo-se à fotografia que lhes serviu de pretexto para que resgatassem sonhos de infância e hábitos de trabalho. Corpos a seguir a corpos, a seguir a corpos: iguais no cabelo envelhecido, nos óculos ampliadores da visão enfraquecida pelo tempo, nas rugas sulcadas pelos anos, no sorriso orgulhoso de terem pertencido à Sociedade de Transportes. Uns e outros, revigoram gestos e recorrem a artifícios para se tornarem novamente reais: um segura livros pesadíssimos de registos, outro ostenta um eléctrico em miniatura, outro uma imagem sagrada depositária de muitas orações, uma última alterna o telefone dos anos de trabalho com o gato que a acompanha agora nos dias da reforma.

Nas frases soltas que legendam as fotografias cruzam-se fragmentos de histórias: "Uma ocasião salvei o Júlio Iglésias, o cantor. Eu vinha a descer em frente ao Bessa, o carro dele atravessa-se à minha frente e eu tive que meter contra-corrente". E fragmentos de lições de vidas: "Qualquer pessoa que tenha aspirações de subir a chefe tem que ser o primeiro a chegar e o último a ir embora e tem que sair com a cabeça levantada, de missão cumprida. Eram estas as minhas armas".

Os percursos destas vidas anónimas surgem integralmente contados no livro "Percursos de vida nos transportes colectivos do Porto", editado pelo Museu do Carro Eléctrico e pelo Núcleo Português do Museu da Pessoa, com textos de Fátima Lambert e Álvaro Costa, à venda no museu por 20 euros. Para lá das histórias pessoais, o livro ajuda a perceber o percurso desta sociedade de transportes. Mas para isso o melhor é visitar o museu, onde este passado surge contado com rigor cronológico. Lá se fica a saber que, em 1872, a cidade viu surgir o primeiro serviço de carros americanos (puxados por duas ou mais parelhas de mulas que se deslocavam sobre carris e que serviam para transporte de pessoas e mercadorias), assim chamados por terem sido inventados nos Estados Unidos da América, em 1832. Seria preciso esperar até 12 de Setembro de 1895 para ver surgir os primeiros eléctricos no Porto. Estes permaneceriam em exclusivo até ao final da II Guerra Mundial.

Nessa altura, a intensificação do número de automóveis no centro da cidade cria grandes dificuldades ao carro eléctrico, que passa a ser conhecido como "a dormideira", tal a lentidão com que circula. A solução passaria pela inauguração, em Abril de 1948, da circulação de autocarros no Porto. Progressivamente, e depois de anos a ligar o centro com as periferias e a traçar novos eixos de circulação, o eléctrico vai perdendo importância. Em 1974, a frota de autocarros conta já com 489 unidades. Hoje são 583. E muitas mais as histórias que neles circulam.

"Vai à Janela" no Porto

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003

%Natália Faria

Os lugares junto à janela são os mais cobiçados por quem viaja de transportes colectivos. Porque nos permitem olhar a vida que se desenrola na largueza da rua, lá fora. E porque nos resguardam dos encontrões de quem, como nós, segue com horários apertados rumo a um destino. Na exposição de Olívia da Silva, patente no Museu do Carro Eléctrico, no Porto, a expressão "Vai à Janela" significa isso. E significa mais, na medida em que mostra fotografias de corpo inteiro de personagens esquecidas que, entre 1946 e 1994, ajudaram a encurtar distâncias e a transportar vidas humanas ao serviço da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.

Cobradores, motoristas, telefonistas, fiscais, inspectores, mecânicos e cozinheiras, todos eles reformados da STCP, surgem iguais e multiplicados, como fragmentos de um todo, dentro de caixas de madeira, em poses vulneráveis mas altivas, oferecendo-se à fotografia que lhes serviu de pretexto para que resgatassem sonhos de infância e hábitos de trabalho. Corpos a seguir a corpos, a seguir a corpos: iguais no cabelo envelhecido, nos óculos ampliadores da visão enfraquecida pelo tempo, nas rugas sulcadas pelos anos, no sorriso orgulhoso de terem pertencido à Sociedade de Transportes. Uns e outros, revigoram gestos e recorrem a artifícios para se tornarem novamente reais: um segura livros pesadíssimos de registos, outro ostenta um eléctrico em miniatura, outro uma imagem sagrada depositária de muitas orações, uma última alterna o telefone dos anos de trabalho com o gato que a acompanha agora nos dias da reforma.

Nas frases soltas que legendam as fotografias cruzam-se fragmentos de histórias: "Uma ocasião salvei o Júlio Iglésias, o cantor. Eu vinha a descer em frente ao Bessa, o carro dele atravessa-se à minha frente e eu tive que meter contra-corrente". E fragmentos de lições de vidas: "Qualquer pessoa que tenha aspirações de subir a chefe tem que ser o primeiro a chegar e o último a ir embora e tem que sair com a cabeça levantada, de missão cumprida. Eram estas as minhas armas".

Os percursos destas vidas anónimas surgem integralmente contados no livro "Percursos de vida nos transportes colectivos do Porto", editado pelo Museu do Carro Eléctrico e pelo Núcleo Português do Museu da Pessoa, com textos de Fátima Lambert e Álvaro Costa, à venda no museu por 20 euros. Para lá das histórias pessoais, o livro ajuda a perceber o percurso desta sociedade de transportes. Mas para isso o melhor é visitar o museu, onde este passado surge contado com rigor cronológico. Lá se fica a saber que, em 1872, a cidade viu surgir o primeiro serviço de carros americanos (puxados por duas ou mais parelhas de mulas que se deslocavam sobre carris e que serviam para transporte de pessoas e mercadorias), assim chamados por terem sido inventados nos Estados Unidos da América, em 1832. Seria preciso esperar até 12 de Setembro de 1895 para ver surgir os primeiros eléctricos no Porto. Estes permaneceriam em exclusivo até ao final da II Guerra Mundial.

Nessa altura, a intensificação do número de automóveis no centro da cidade cria grandes dificuldades ao carro eléctrico, que passa a ser conhecido como "a dormideira", tal a lentidão com que circula. A solução passaria pela inauguração, em Abril de 1948, da circulação de autocarros no Porto. Progressivamente, e depois de anos a ligar o centro com as periferias e a traçar novos eixos de circulação, o eléctrico vai perdendo importância. Em 1974, a frota de autocarros conta já com 489 unidades. Hoje são 583. E muitas mais as histórias que neles circulam.

marcar artigo