Suplemento Pública

23-04-2004
marcar artigo

Natal na Província

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003

(c/Disc-Jockey da 24 de Julho)

%Rui Cardoso Martins

Agora Manuel trata das hortas e ajuda a mãe numa encosta do Douro. A mãe é doente, plantam hortaliças. A chave da mudança, a revolução completa do fuso do Manuel, está numa manhã de Verão de 2002, em Lisboa. Há amores sem regresso, à casa da mãe volta-se.

A polícia entrou no lar das raparigas do Campo Grande às 9h50 e começou a busca. Um homem tinha entrado e começara a percorrer todos os andares, escadas, quartos, à procura. Era um lobo esfomeado num curral de cinco andares e queria a sua ovelha. Chamava por ela e as raparigas estavam muito assustadas. Quando a governanta telefonou, não sabia o que fazer.

O Manuel escondeu-se na casa de banho do quinto andar, ao ouvir os passos dos agentes. Ordenaram-lhe a saída. Do Manuel saiu apenas a curiosa charada.

- Para eu sair, têm também que sair todos os homens que cá estão!

Talvez falasse dos dois polícias. Nesse caso, saíam para a rua três homens, todos credenciados e apresentáveis: um preso, os dois captores. Mas o que o Manuel sugeria era mais complicado e a governanta ficou furiosa, vermelha, envergonhada. Ele acusava: havia ali mais homens, escondidos nos quartos, que acabavam de passar a noite. O que faria deste lar de raparigas, numa conversa fora do contexto, ou mesmo num boato, um local com outro nome e utilidade.

O Manuel estava convicto das suas ideias, mas quando percebeu que os polícias não iam fazer a busca dos "outros", agarrou-se à porta da casa-de-banho. Tinha 25 anos, alguma força, e foi arrastado como um boneco de mola, gritou e esperneou o seu desespero até ao rés-do-chão. Na rua, deu um pontapé na porta traseira do carro-patrulha (arranjo estimado: 145,80?), fazendo da porta do lar de raparigas um ponto de interesse para quem passava.

Na esquadra despejaram-lhe os bolsos: chaves presas com argola metálica, telemóvel marca Siemens, cor azul/preta, isqueiro cor preta, maço de tabaco Marlboro com oito cigarros, carteira de mortalhas, alguns trocos. Tiraram-lhe os atacadores dos sapatos, pretos. É o procedimento normal, para um tipo não se enforcar.

O Manuel fez isto tudo por amor.

Aliás, ciúme.

Às cinco da tarde, nas primeiras declarações a um tribunal, despejou a desgraça da sua vida.

Manuel: disc-jockey numa discoteca da 24 de Julho, vive sozinho em quarto alugado, por cima de um estabelecimento comercial, não sabe o nome da porta. Veio de uma aldeia perto de Miranda do Douro, chegou a disc-jockey na noite de Lisboa, trabalha toda a noite.

A percussão grave da música, os graves que fazem tremer o prédio, untze, untze, untze, e a batida dum coração desordenado, a rave romântica de um disc-jockey sentimental. Um caso raro, creio. Estavam tantas raparigas na discoteca e ela, o que estava ELA a fazer nesse momento?

Este ciúme precisa de um plural. A confissão de Manuel explica a charada. O ciúme é doido, quando não pode crescer mais, multiplica o que tem:

-"... o declarante introduziu-se, sem consentimento dos responsáveis, na residência de estudantes do sexo feminino no sentido de confirmar se a sua ex-namorada, ali residente, se encontrava acompanhada de outros(s) homem(s).

Manuel foi condenado, há dias, a quatro meses de prisão, substituídos por multa de 525 euros (resistência e coacção a funcionário, dano). Provou-se a sua boa integração familiar e social. Trabalha na agricultura, ajuda a mãe doente. Vai ter um Natal transmontano. Continua solteiro.

Natal na Província

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003

(c/Disc-Jockey da 24 de Julho)

%Rui Cardoso Martins

Agora Manuel trata das hortas e ajuda a mãe numa encosta do Douro. A mãe é doente, plantam hortaliças. A chave da mudança, a revolução completa do fuso do Manuel, está numa manhã de Verão de 2002, em Lisboa. Há amores sem regresso, à casa da mãe volta-se.

A polícia entrou no lar das raparigas do Campo Grande às 9h50 e começou a busca. Um homem tinha entrado e começara a percorrer todos os andares, escadas, quartos, à procura. Era um lobo esfomeado num curral de cinco andares e queria a sua ovelha. Chamava por ela e as raparigas estavam muito assustadas. Quando a governanta telefonou, não sabia o que fazer.

O Manuel escondeu-se na casa de banho do quinto andar, ao ouvir os passos dos agentes. Ordenaram-lhe a saída. Do Manuel saiu apenas a curiosa charada.

- Para eu sair, têm também que sair todos os homens que cá estão!

Talvez falasse dos dois polícias. Nesse caso, saíam para a rua três homens, todos credenciados e apresentáveis: um preso, os dois captores. Mas o que o Manuel sugeria era mais complicado e a governanta ficou furiosa, vermelha, envergonhada. Ele acusava: havia ali mais homens, escondidos nos quartos, que acabavam de passar a noite. O que faria deste lar de raparigas, numa conversa fora do contexto, ou mesmo num boato, um local com outro nome e utilidade.

O Manuel estava convicto das suas ideias, mas quando percebeu que os polícias não iam fazer a busca dos "outros", agarrou-se à porta da casa-de-banho. Tinha 25 anos, alguma força, e foi arrastado como um boneco de mola, gritou e esperneou o seu desespero até ao rés-do-chão. Na rua, deu um pontapé na porta traseira do carro-patrulha (arranjo estimado: 145,80?), fazendo da porta do lar de raparigas um ponto de interesse para quem passava.

Na esquadra despejaram-lhe os bolsos: chaves presas com argola metálica, telemóvel marca Siemens, cor azul/preta, isqueiro cor preta, maço de tabaco Marlboro com oito cigarros, carteira de mortalhas, alguns trocos. Tiraram-lhe os atacadores dos sapatos, pretos. É o procedimento normal, para um tipo não se enforcar.

O Manuel fez isto tudo por amor.

Aliás, ciúme.

Às cinco da tarde, nas primeiras declarações a um tribunal, despejou a desgraça da sua vida.

Manuel: disc-jockey numa discoteca da 24 de Julho, vive sozinho em quarto alugado, por cima de um estabelecimento comercial, não sabe o nome da porta. Veio de uma aldeia perto de Miranda do Douro, chegou a disc-jockey na noite de Lisboa, trabalha toda a noite.

A percussão grave da música, os graves que fazem tremer o prédio, untze, untze, untze, e a batida dum coração desordenado, a rave romântica de um disc-jockey sentimental. Um caso raro, creio. Estavam tantas raparigas na discoteca e ela, o que estava ELA a fazer nesse momento?

Este ciúme precisa de um plural. A confissão de Manuel explica a charada. O ciúme é doido, quando não pode crescer mais, multiplica o que tem:

-"... o declarante introduziu-se, sem consentimento dos responsáveis, na residência de estudantes do sexo feminino no sentido de confirmar se a sua ex-namorada, ali residente, se encontrava acompanhada de outros(s) homem(s).

Manuel foi condenado, há dias, a quatro meses de prisão, substituídos por multa de 525 euros (resistência e coacção a funcionário, dano). Provou-se a sua boa integração familiar e social. Trabalha na agricultura, ajuda a mãe doente. Vai ter um Natal transmontano. Continua solteiro.

marcar artigo