Conversa com vista para... Rui Vieira Nery

25-12-2003
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Conversa com Vista Para... Rui Vieira Nery

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003 %Maria João Seixas Sempre me divertiu observar-lhe as mãos e seguir o frasear constante dos dedos. Se a falar com alguém, a ouvir uma peça em sala de concertos, a ver um filme ou a olhar os quadros de uma exposição, os braços e as costas podem iludir, porque de tão bem compostos não fazem imediata denúncia da irrequietude das mãos. Mas é preciso olhar-lhe os dedos para ver como se entregam, compulsivamente, à execução de imaginárias escalas de música. Que notas ouvirá? A que partitura pertencem? Como escolherá as peças que os dedos assim parecem interpretar? De que natureza é composto esse diálogo para que, em simultâneo, possa prestar atenção ao resto? Há pessoas que, como ele, devem ter as células do corpo tão impregnadas de música, de tal modo embebidas de notas que, no comando geral do cérebro (e da alma?), essa dimensão surge naturalmente a envolver todos os gestos, todas as expressões... Quis conversar com Rui Vieira Nery, musicólogo, sobre música. Quis ouvi-lo discorrer, cara a cara, sobre esse universo que tanto o apaixona, que tão bem conhece e tão bem consegue dar a conhecer a quem o ouve e lê. Nas salas onde dá aulas, em programas de rádio, nas múltiplas palestras e artigos por onde vai contando o que sabe, não se esquiva a convocar os outros para o gosto da música. É um lidador, um lidador musical. Incansável no seu desejo de revelar o preciosíssimo legado da arte maior e misteriosa que é a música. Executa essa lide com uma clareza e uma simplicidade extremas, fornecendo os dados indispensáveis para a melhor percepção das raízes, dos troncos e dos ramos da árvore musical. A lide, que assim pratica, alimenta-se de uma esperança - a de que outros, cada vez mais outros, possam vir a amar e a saborear os frutos da árvore eleita. Como ele. Disse o que me disse sem nunca parar de percorrer com os dedos, sobre o braço da cadeira em que se sentou, as notas de uma cantata de Bach. Escolha minha, não revelada em presença! MJS - Rui, diz-me quem és. RVN- Já me tinha esquecido desse teu arranque... Profissionalmente, sou um musicólogo e um historiador da Cultura. Pessoalmente, sou um senhor de meia-idade com uma costela de escuteiro adolescente e, portanto, com as ingenuidades e os cinismos próprios destes dois lados. São facetas que não são contraditórias, que fazem parte de um circuito único.Tenho grandes curiosidades em relação ao passado e ao presente, realidades que gosto de questionar, sempre cheio de esperanças sobre as lições que essas perguntas ao passado e ao presente possam trazer para o futuro. Será por aqui que reside a dimensão (porventura) utópica que remete para essa minha tal faceta de escuteiro. MJS - Consegues, aparentemente, viver essa dimensão utópica com relativo à-vontade. RVN - Consigo, mas em ciclos. De depressão e de confiança. MJS - Chegas, algumas vezes, à exaltação? RVN - Chego, por vezes, claro que chego e, de qualquer modo, a resultante destes ciclos - que são clássicos, já se vê - é optimista. MJS - Tens ideia de quando é que sentiste, ou soubeste, que a música era o universo da tua eleição? RVN - Que era o universo em que eu vivia, acho que tive noção desde sempre, porque em minha casa a música estava associada a tudo, a todos os momentos. O meu pai é um guitarrista de fado e, por esse lado, fui ouvindo e familiarizando-me, desde criança, com o repertório do fado. A minha mãe era uma melómana clássica, ferrenha, gostava muito de ópera, de piano, ouviam-se muitos discos lá em casa. Começámos muito cedo, a minha irmã e eu, a ter aulas de piano e, portanto, a presença da música era tão natural que nem sequer a reconhecia como uma "vocação". Estava ali, naturalmente, como estavam os meus pais, como estava a minha família, a escola, tudo o mais... Havia lá em casa um piano e a guitarra do meu pai. Essas duas facetas, a da música clássica e a do fado, estiveram sempre muito presentes e fizeram parte da atmosfera em que cresci. Aos dez anos fui estudar para a Academia de Santa Cecília e aí mergulhei num universo completamente dominado pela presença da música porque, ao contrário dos jovens portugueses que, querendo aprender música, tinham que fazer os estudos gerais numa escola e os estudos musicais noutro estabelecimento de ensino, na Academia tudo isto se confluía de uma forma normal. Andei em Santa Cecília até ao quinto ano (antigo), o último que lá havia e, depois, fui acabar o liceu no Pedro Nunes, altura em que me inscrevi no Conservatório. MJS - Sempre em piano? RVN - Sempre em piano até ter começado a trabalhar, paralelamente, com Santiago Kastner, um grande musicólogo inglês que se estabeleceu em Portugal em meados dos anos trinta e que foi o pai e a mãe dos estudos musicológicos portugueses, a pessoa que mais trabalhou na investigação da História da Música portuguesa. Kastner era cravista e clavicordista e eu comecei a ter aulas com ele, não só de História da Música e de musicologia, como também de clavicórdio e de interpretação de música antiga. E foi aí que ficou muito claro para mim o que queria fazer. Sou licenciado em História, estudei História muito orientado para a História Económica e para a História Contemporânea. Pelo lado da música, comecei a sentir-me frustrado com a dimensão puramente interpretativa e a achar intelectualmente limitada aquela abordagem meramente artesanal da música. Foi através de Santiago Kastner que de repente tive a noção de que era possível olhar para a música com a mesma profundidade e a mesma curiosidade com que se podia olhar para qualquer fenómeno histórico. Estes dois lados da minha formação acabaram por se cruzar e por me dar a ideia de que havia ali um campo muito fértil para explorar. Teria dezanove, vinte anos, quando foi para mim evidente que devia mesmo fazer musicologia. MJS - Essa evidência, acabado o curso de História e o Conservatório, significou o quê em termos de novos estudos? RVN - Há uma outra componente aqui no meio que explica muitas coisas posteriores, é que fui apanhado pelo 25 de Abril com dezasseis anos. O período que se seguiu foi para mim um período de emancipação e de uma enorme descoberta. A todos os níveis. Foi a passagem da adolescência para um primeiro momento adulto, foi a aprendizagem das primeiras formas de independência pessoal e foi a entrada naquele ambiente muito caótico, e também muito generoso, de auto-gestão, de assembleias contínuas, de discussões generalizadas sobre as estruturas e as políticas das instituições, designadamente culturais. Estive muito activo nesse período e muito interessado nas políticas da música, nas opções institucionais, nos modelos de gestão para a música. A par da minha formação académica como intérprete, que depois se interrompeu, e com essa componente nova da História da Música, houve sempre esta preocupação com definições de políticas culturais, de modelos de gestão, de orientações estratégicas, orgânicas e institucionais que permitissem o exercício da actividade musical. Tudo isto explica muitos dos meus ziguezagues posteriores. Em 1982 fui para os Estados Unidos fazer o doutoramento em Musicologia, na Universidade do Texas em Austin. Foi um doutoramento que só terminou em 1990, porque fui alternando entre os Estados Unidos e Portugal, onde, entre outras coisas, comecei a dar aulas de História da Música, na Universidade Nova. Quando acabei o doutoramento já a minha carreira estava definida - pus de parte o lado da interpretação, porque me pareceu que era um espaço que devia ser ocupado por especialistas a tempo inteiro nessa área e não por amadores como eu me tinha tornado nesse domínio, mas continuei a investir fundamentalmente na musicologia, na investigação, no ensino universitário e na divulgação. Acredito profundamente - e pratico-a militantemente - na ideia de que o investigador não pode ficar fechado no circuito académico restrito, porque tem a obrigação moral de partilhar o seu trabalho e os seus conhecimentos com a sociedade em geral. Sempre fiz dezenas de conferências, pequenos cursos, artigos, programas de rádio e televisão, nessa óptica de me dirigir a uma franja tão ampla quanto possível da sociedade, devolvendo aos cidadãos aquilo que é seu e que é, no fundo, a posse da sua própria tradição cultural - neste caso, da música. MJS - Acreditas, com base nos teus conhecimentos, que há povos mais musicais do que outros, como se houvesse uma estrutura genética colectiva particularmente orientada para a música? RVN - Não. Acredito é que há povos que têm durante períodos mais prolongados estruturas que podem apoiar o desenvolvimento da sua própria habilidade musical, de uma maneira que não sucede noutros casos em que essas estruturas são inexistentes e em que, por conseguinte, o potencial musical de cada pessoa fica numa esfera familiar, privada. No caso português, por exemplo, há inúmeros testemunhos de observadores imparciais, estrangeiros, sobre a musicalidade dos portugueses nos séculos XVI, XVII, XVIII e sobre a presença obsessiva da música em todos os momentos do seu quotidiano. Manifestamente, no século XX, não é esse o quadro, facto que atribuo a essa crise institucional e a essa ausência de estruturas que permitam a realização plena do potencial musical que os portugueses não deixaram de ter, mas que deixou de ter canais para se poder manifestar com a mesma intensidade. MJS - O que é que havia então, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que apoiava e desenvolvia a nossa veia musical e que nos falta agora? RVN - Havia, entre outros factores, a Igreja, que era, nesses séculos, um estupendo patamar de acesso à criação e à fruição musical generalizada. A partir de 1834, com o Liberalismo, a Igreja deixa de ter bases económicas para poder continuar a patrocinar esse tipo de actividade e não há, ao contrário do que sucede nos outros países onde aconteceu o mesmo tipo de ruptura, uma passagem de testemunho dessa responsabilidade para a sociedade civil. A burguesia portuguesa não tinha, manifestamente, um projecto cultural e artístico comparável ao que existia em França, na Alemanha, em Inglaterra, no norte de Itália. Nesses países existiam múltiplas associações filarmónicas, que criaram estruturas nas quais assentavam orquestras, coros, teatros de ópera, salas de teatro declamado, salas de concerto. Como esse não foi o caso em Portugal, houve um vazio que nunca foi preenchido até, praticamente, aos últimos trinta anos. Essa ausência de estruturas fez com que, por exemplo na área da música erudita, as possibilidades de realização efectiva do potencial musical dos portugueses fosse coertada. MJS - Gostava de perceber melhor o que é que era específico da sociedade portuguesa desses tempos, que possa explicar o que a distinguiu tão pobremente, no campo da educação e da fruição musical, e dos bens culturais em geral, de outras sociedades europeias. RVN -Por razões que se prendem com a natureza do Absolutismo português, da Contra-Reforma e do controlo eclesiástico estrito da produção cultural, criou-se um hábito de enorme dependência, no que diz respeito à actividade cultural, para com o poder, tanto civil como eclesiástico. Os portugueses dependeram sempre muito, para as suas práticas culturais, daquilo que era directamente promovido pelas instituições do poder. Por conseguinte, quando esse quadro de iniciativa institucional é suprimido, e não havendo um hábito mental de auto-organização e de iniciativa livre por parte dos próprios cidadãos, nada surge que se lhe substitua, como se verificou no século XIX e como, afinal de contas, ainda é visível nos dias de hoje. Quando se olha com atenção para o século XVI, em particular, percebe-se que a Contra-Reforma foi de uma violência mental, difícil de conceber. Acho que os portugueses ficaram com medo, medo de agir, medo de tomar iniciativas, medo de fazer qualquer coisa sem uma aprovação prévia do poder. De tal maneira que foi tão fácil depois ao salazarismo recuperar essa memória multi-secular. MJS - Contrariar esses medos, essa astenia colectiva, é um enorme desafio para o poder democrático! É curioso como esse retrato negro de uma sociedade sem iniciativa cultural, sem vitalidade, nunca conseguiu abafar a pulsão portuguesa da criação poética. RVN - A pulsão da escrita poética é do foro individual, mas a pulsão da criação musical, que também é do foro individual ao nível da escrita, tem a outra componente que é já do foro colectivo: ninguém escreve música para a gaveta ou para publicar cem exemplares num livro. A música começa por implicar uma aprendizagem, e logo aí há um processo elitista porque só os iniciados têm acesso a essa linguagem, depois pressupõe estruturas de execução, porque a poesia existe no momento em que foi escrita, enquanto que a música só quando é tocada e ouvida (o suporte da partitura é quase meramente virtual) é que passa a existir. Para que isso aconteça tem que haver orquestras, grupos de câmara, coros, escolas que formam músicos especializados, o que implica um investimento institucional, grande, contínuo, regular. Na cultura portuguesa encontras como pulsão criativa efectivamente sobrevivente tudo aquilo que é do foro privado, da esfera individual do cidadão, e tens enormes vazios naquilo que pressuporia estruturas criadas pela "coisa" pública. E a música é disso o paradigma mais evidente. O meu lado optimista leva-me a pensar que, desde a restauração da democracia, o acordar gradual da cidadania também tem uma componente de apetência por bens culturais e, em particular, pela música. A nível autárquico, por exemplo, os habitantes das terras mais isoladas fazem questão de ter o seu auditório, a sua sala de concertos e estão a exigir do poder político local este tipo de estruturas. O segundo momento será verificar que esses equipamentos, sozinhos, não significam nada e que é preciso produção artística para alimentar esses espaços. Um outro fenómeno, e para mim o mais esperançoso, é que há milhares de jovens a acorrer aos cursos de formação artística e musical. As Universidades e as Escolas Superiores de Música estão cheias de rapazes e raparigas, com muito talento. A massa crítica de profissionais especializados, com boa formação nesta área, está a crescer de tal maneira que é impossível que o poder político não acorde, mais cedo ou mais tarde, para esta realidade e que a própria sociedade civil não desperte para esta presença, no seu seio, de um potencial que não existia, de maneira nenhuma, há trinta anos. MJS - Falas-me, com esperança e optimismo, do que se passa no ensino superior. E o que é que está a acontecer nos primeiros degraus da formação e do ensino, onde tudo deve ser iniciado? RVN - Aí, que é um nível crucial, não vejo nenhuns sinais positivos, antes pelo contrário, os sinais são até muito preocupantes. O que é contraditório com o estado de evolução em que nos encontramos, porque, justamente, como o atraso acumulado era tão grande, foi preciso criar primeiro essa tal massa crítica de jovens, com boa formação musical e que possa garantir o suporte de qualquer política de enxerto no tecido social para a música. Não há agora qualquer desculpa para que o ensino da música não esteja generalizado, como parte essencial da formação básica, porque há gente qualificada para o fazer, em quantidade suficiente e, se for preciso fazer formação pedagógica adicional, isso também se faz com relativa facilidade. Insisto, há um número suficiente de pessoas com uma formação musical de base avançada, que podem garantir uma boa formação generalizada da música ao nível do ensino geral. E isso é que é o ponto essencial. Os alunos são alertados nas escolas para a existência da escrita, dos números, das imagens, mas não são alertadas para a existência de um discurso artístico na área dos sons. Não faz parte do seu universo, nem das suas referências. Hoje em dia essa consciência, que eu considero indispensável na formação de base, já poderia ser assegurada. Infelizmente, as reformas do ensino dos últimos anos não têm contemplado essa vertente. Curiosamente, a Reforma Veiga Simão ( de quem se tornou comum dizer muito mal e que eu, não só considero um momento feliz do repensar do ensino em Portugal, como acho que antecipou em muito a reflexão do pensamento democrático após o 25 de Abril) preconizava um alargamento muito grande da formação musical na rede de ensino. Ao longo dos tempos esse projecto foi sendo sucessivamente abandonado, com excepção do período Roberto Carneiro, em que chegou a estar pensada uma nova reforma que reporia esse papel da música no ensino geral, mas a burocracia do Ministério da Educação assustou-se com as contas que fez e o projecto foi rapidamente esquecido outra vez. MJS - Diz-me, em síntese, por que é que a música é importante para a formação de uma criança? RVN - Por todas as razões. No plano estrito da formação intelectual, está mais do que provado, pela psicologia infantil, que a música é um elemento de desenvolvimento poderosíssimo, que facilita todos os tipos de operações mentais de ordem matemática. É um instrumento de estímulo ao desenvolvimento normal das operações intelectuais, tendo um papel catalizador importantíssimo para a capacidade de aquisição e formação de conhecimento. É um veículo de equilíbrio emocional que potencia outras capacidades de expressão artística, essenciais ao desenvolvimento equilibrado da dimensão afectiva das crianças. É uma arte e uma actividade potenciadora da sociabilização das crianças - fazer música em conjunto, aprender que se depende muito de quem está ao lado para que o resultado final seja harmonioso, é um factor de formação ética e cívica essencial. Mas sobretudo pelo seu mérito próprio: a música é uma componente fundamental do património cultural da Humanidade e é um direito dos cidadãos ter garantido, desde muito cedo, o acesso ao seu conhecimento e convivência. MJS - Proponho-te agora um jogo - és nomeado Ministro da Educação, com peso político, com grande autonomia e com meios. Que medidas adoptarias para que a aprendizagem da música passasse a ser uma realidade nas escolas portuguesas? RVN - Nesse teu quadro utópico, faria todos os esforços no sentido da massificação do ensino da música desde o início da escolaridade. A música faria parte, no ensino básico geral, daquela primeira introdução às grandes áreas de formação e de aquisição de conhecimentos. Pelo menos até ao sexto grau de escolaridade. A partir daí, podia transformar-se em opção. Não é a invenção da pólvora, há sistemas e métodos mais que estudados para pôr isso em prática. A Hungria, por exemplo, tem um grau de alfabetização musical quase tão forte como o da alfabetização literária - em qualquer escola primária húngara as crianças olham para uma partitura com a mesma relação confiante com que olham para uma página de texto literário. Os resultados de escolaridade das crianças portuguesas que têm formação musical são, de resto, absolutamente conclusivos quanto a um melhor aproveitamento global. Como de um ponto de vista técnico como já referi, não há neste momento qualquer dificuldade, os únicos obstáculos que existem prendem-se com a falta de vontade política e com a disponibilidade de meios financeiros, que haveria que criar e gerir com bom senso. MJS - A iliteracia musical compromete qualquer sociedade que se diz e que se quer desenvolvida? RVN - Em grande parte compromete e, seguramente, empobrece-a muito. MJS - É sabida a tua paixão pela música barroca. Queres convocar os leitores da Pública para esse universo? RVN - Porque é que me fascina o barroco numa perspectiva alargada? Por um lado, porque é um universo em que a música tem uma presença maciça, de primeiro grau, visto ser uma das linguagens em que a cultura europeia nesse período investiu, de uma forma mais evidente, para a sua representação. Muita da melhor produção artística ocidental desses séculos está assumidamente presente na música. Quer na música por si própria, com grande destaque para a música sacra, quer no cruzamento com outras artes, como é o caso do bailado e, em particular, da ópera. Há uma espécie de primazia dada à presença da música no contexto das artes, que faz com que ela tenha uma importância redobrada em relação a outros períodos. A quantidade de música produzida neste contexto foi absolutamente gigantesca, porque não havia uma pequenina corte, uma igrejinha, uma casa da classe média com pretensões de distinção mínima, que não investisse uma percentagem do seu rendimento disponível no acesso e na produção de música erudita de qualidade. Tudo isto produziu uma massa crítica muito consistente e, no meio de obras de menor interesse, a grande percentagem daqui resultante era de grande nível. MJS - Poder-se-á dizer que ter um clavicórdio e fazer música em casa era, para a burguesia de então, um sinal de distinção comparável a ter um BMW nas garagens das casas de hoje? RVN - No século XVIII, seguramente que era assim. E alguma coisa desses sinais exteriores de distinção acompanhou a burguesia europeia até meados do século XX onde, casa da classe média onde não houvesse um piano nem a menina falasse francês, era casa menos "distinta". MJS - Regressemos ao retrato do teu amor musical, da música barroca. RVN - A música barroca é uma música que investe de uma maneira muito eficaz na expressão dos sentimentos e das preocupações fundamentais das sociedades e dos indivíduos - a morte, o destino, a fé, a esperança, o amor..., temas que, de resto, são depois objecto de reflexões muito cuidadas, como por exemplo a chamada "gramática dos afectos", que os teóricos musicais do barroco levaram até ao extremo. Como é que a música pode ser veículo de emoção, de sentimentos, de valores? É uma música que se assume como meta-linguagem, capaz de reflectir e de meditar (a um nível para-racional), sobre as qualidades fundamentais da existência humana. São raros os períodos da História da Música em que todas estas dimensões da vida humana aparecem tratadas de uma maneira tão rica, tão profunda, tão sofisticada e cuidada, como no barroco. Essa faceta atrai-me muito. MJS - O que é que define a música barroca? RVN - A música barroca é uma tentativa para expressar, metaforicamente e por meios musicais, a ordem natural das coisas. Ou seja, tenta produzir, através dos sons, o retrato do jogo de proporções e do jogo de sentimentos que, por um lado, definem a vida quotidiana e a organização interna das sociedades e, por outro, traduzem também a vida interior dos indivíduos que compõem essas sociedades. MJS - Mas, insisto, que é que há de especificamente novo na música barroca, em termos de escrita musical? Que "distinguo" preside a essa nova linguagem? RVN - Em termos de escrita musical tudo isto que referi leva à construção de grandes formas complexas, que não existiam antes, em que há pequeninas unidades que se vão colando umas às outras num todo complexo e coerente. Por exemplo, uma grande ópera barroca é a soma de uma infinidade de pequeninas árias, cada uma com características contrastantes e inserindo-se num mosaico gigantesco que é gerido, na sua organização interna, por regras de equilíbrio e de proporção extremamente cuidadas. Temos uma grande forma que, por sua vez, se decompõe em múltiplas pequenas formas e, em cada um destes níveis, há uma preocupação de solidez, de equilíbrio, de proporção, sendo que, ao mesmo tempo, há uma relação harmónica entre esta preocupação estrutural e o requinte da superfície que faz com que seja uma realidade permanentemente inesgotável. O universo formal da escrita musical anterior era mais limitado, tínhamos obras mais pequenas, com uma complexidade formal menor, como menor era a preocupação de densidade estrutural presente na música barroca. Não quer dizer que não pudesse haver música com uma força emocional e com uma inteligência de construção muito grandes mas, esta arquitectura e esta dimensão maiores, não se encontram, antes do barroco, de forma tão evidente. Depois, quando se entra no Romantismo, há um primado do sentimento e da emoção em estado bruto, que faz destruir um bocadinho o jogo sofisticado de gestão da estrutura musical, tão próprio do barroco. Gosto mais do poder da expressão de uma emoção depurada pela forma (e penso que ela se torna mais forte, mais eficaz, mais sedutora), do que da emoção no seu estado puro. O equilíbrio perfeito entre a pulsão emocional e a sofisticação da forma, que é o que define o barroco e lhe dá uma dimensão de universalidade, é o que mais me apaixona na sua música. MJS - Dá-me uma palavra de eleição. RVN - Esperança. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA Os alfaiates de Deus

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Quis conversar com Rui Vieira Nery, musicólogo, sobre música. Quis ouvi-lo discorrer, cara a cara, sobre esse universo que tanto o apaixona, que tão bem conhece e tão bem consegue dar a conhecer a quem o ouve e lê. Nas salas onde dá aulas, em programas de rádio, nas múltiplas palestras e artigos por onde vai contando o que sabe, não se esquiva a convocar os outros para o gosto da música. É um lidador, um lidador musical. Incansável no seu desejo de revelar o preciosíssimo legado da arte maior e misteriosa que é a música. Executa essa lide com uma clareza e uma simplicidade extremas, fornecendo os dados indispensáveis para a melhor percepção das raízes, dos troncos e dos ramos da árvore musical. A lide, que assim pratica, alimenta-se de uma esperança - a de que outros, cada vez mais outros, possam vir a amar e a saborear os frutos da árvore eleita. Como ele. Disse o que me disse sem nunca parar de percorrer com os dedos, sobre o braço da cadeira em que se sentou, as notas de uma cantata de Bach. Escolha minha, não revelada em presença! MJS - Rui, diz-me quem és. RVN- Já me tinha esquecido desse teu arranque... Profissionalmente, sou um musicólogo e um historiador da Cultura. Pessoalmente, sou um senhor de meia-idade com uma costela de escuteiro adolescente e, portanto, com as ingenuidades e os cinismos próprios destes dois lados. São facetas que não são contraditórias, que fazem parte de um circuito único.Tenho grandes curiosidades em relação ao passado e ao presente, realidades que gosto de questionar, sempre cheio de esperanças sobre as lições que essas perguntas ao passado e ao presente possam trazer para o futuro. Será por aqui que reside a dimensão (porventura) utópica que remete para essa minha tal faceta de escuteiro. MJS - Consegues, aparentemente, viver essa dimensão utópica com relativo à-vontade. RVN - Consigo, mas em ciclos. De depressão e de confiança. MJS - Chegas, algumas vezes, à exaltação? RVN - Chego, por vezes, claro que chego e, de qualquer modo, a resultante destes ciclos - que são clássicos, já se vê - é optimista. MJS - Tens ideia de quando é que sentiste, ou soubeste, que a música era o universo da tua eleição? RVN - Que era o universo em que eu vivia, acho que tive noção desde sempre, porque em minha casa a música estava associada a tudo, a todos os momentos. O meu pai é um guitarrista de fado e, por esse lado, fui ouvindo e familiarizando-me, desde criança, com o repertório do fado. A minha mãe era uma melómana clássica, ferrenha, gostava muito de ópera, de piano, ouviam-se muitos discos lá em casa. Começámos muito cedo, a minha irmã e eu, a ter aulas de piano e, portanto, a presença da música era tão natural que nem sequer a reconhecia como uma "vocação". Estava ali, naturalmente, como estavam os meus pais, como estava a minha família, a escola, tudo o mais... Havia lá em casa um piano e a guitarra do meu pai. Essas duas facetas, a da música clássica e a do fado, estiveram sempre muito presentes e fizeram parte da atmosfera em que cresci. Aos dez anos fui estudar para a Academia de Santa Cecília e aí mergulhei num universo completamente dominado pela presença da música porque, ao contrário dos jovens portugueses que, querendo aprender música, tinham que fazer os estudos gerais numa escola e os estudos musicais noutro estabelecimento de ensino, na Academia tudo isto se confluía de uma forma normal. Andei em Santa Cecília até ao quinto ano (antigo), o último que lá havia e, depois, fui acabar o liceu no Pedro Nunes, altura em que me inscrevi no Conservatório. MJS - Sempre em piano? RVN - Sempre em piano até ter começado a trabalhar, paralelamente, com Santiago Kastner, um grande musicólogo inglês que se estabeleceu em Portugal em meados dos anos trinta e que foi o pai e a mãe dos estudos musicológicos portugueses, a pessoa que mais trabalhou na investigação da História da Música portuguesa. Kastner era cravista e clavicordista e eu comecei a ter aulas com ele, não só de História da Música e de musicologia, como também de clavicórdio e de interpretação de música antiga. E foi aí que ficou muito claro para mim o que queria fazer. Sou licenciado em História, estudei História muito orientado para a História Económica e para a História Contemporânea. Pelo lado da música, comecei a sentir-me frustrado com a dimensão puramente interpretativa e a achar intelectualmente limitada aquela abordagem meramente artesanal da música. Foi através de Santiago Kastner que de repente tive a noção de que era possível olhar para a música com a mesma profundidade e a mesma curiosidade com que se podia olhar para qualquer fenómeno histórico. Estes dois lados da minha formação acabaram por se cruzar e por me dar a ideia de que havia ali um campo muito fértil para explorar. Teria dezanove, vinte anos, quando foi para mim evidente que devia mesmo fazer musicologia. MJS - Essa evidência, acabado o curso de História e o Conservatório, significou o quê em termos de novos estudos? RVN - Há uma outra componente aqui no meio que explica muitas coisas posteriores, é que fui apanhado pelo 25 de Abril com dezasseis anos. O período que se seguiu foi para mim um período de emancipação e de uma enorme descoberta. A todos os níveis. Foi a passagem da adolescência para um primeiro momento adulto, foi a aprendizagem das primeiras formas de independência pessoal e foi a entrada naquele ambiente muito caótico, e também muito generoso, de auto-gestão, de assembleias contínuas, de discussões generalizadas sobre as estruturas e as políticas das instituições, designadamente culturais. Estive muito activo nesse período e muito interessado nas políticas da música, nas opções institucionais, nos modelos de gestão para a música. A par da minha formação académica como intérprete, que depois se interrompeu, e com essa componente nova da História da Música, houve sempre esta preocupação com definições de políticas culturais, de modelos de gestão, de orientações estratégicas, orgânicas e institucionais que permitissem o exercício da actividade musical. Tudo isto explica muitos dos meus ziguezagues posteriores. Em 1982 fui para os Estados Unidos fazer o doutoramento em Musicologia, na Universidade do Texas em Austin. Foi um doutoramento que só terminou em 1990, porque fui alternando entre os Estados Unidos e Portugal, onde, entre outras coisas, comecei a dar aulas de História da Música, na Universidade Nova. Quando acabei o doutoramento já a minha carreira estava definida - pus de parte o lado da interpretação, porque me pareceu que era um espaço que devia ser ocupado por especialistas a tempo inteiro nessa área e não por amadores como eu me tinha tornado nesse domínio, mas continuei a investir fundamentalmente na musicologia, na investigação, no ensino universitário e na divulgação. Acredito profundamente - e pratico-a militantemente - na ideia de que o investigador não pode ficar fechado no circuito académico restrito, porque tem a obrigação moral de partilhar o seu trabalho e os seus conhecimentos com a sociedade em geral. Sempre fiz dezenas de conferências, pequenos cursos, artigos, programas de rádio e televisão, nessa óptica de me dirigir a uma franja tão ampla quanto possível da sociedade, devolvendo aos cidadãos aquilo que é seu e que é, no fundo, a posse da sua própria tradição cultural - neste caso, da música. MJS - Acreditas, com base nos teus conhecimentos, que há povos mais musicais do que outros, como se houvesse uma estrutura genética colectiva particularmente orientada para a música? RVN - Não. Acredito é que há povos que têm durante períodos mais prolongados estruturas que podem apoiar o desenvolvimento da sua própria habilidade musical, de uma maneira que não sucede noutros casos em que essas estruturas são inexistentes e em que, por conseguinte, o potencial musical de cada pessoa fica numa esfera familiar, privada. No caso português, por exemplo, há inúmeros testemunhos de observadores imparciais, estrangeiros, sobre a musicalidade dos portugueses nos séculos XVI, XVII, XVIII e sobre a presença obsessiva da música em todos os momentos do seu quotidiano. Manifestamente, no século XX, não é esse o quadro, facto que atribuo a essa crise institucional e a essa ausência de estruturas que permitam a realização plena do potencial musical que os portugueses não deixaram de ter, mas que deixou de ter canais para se poder manifestar com a mesma intensidade. MJS - O que é que havia então, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que apoiava e desenvolvia a nossa veia musical e que nos falta agora? RVN - Havia, entre outros factores, a Igreja, que era, nesses séculos, um estupendo patamar de acesso à criação e à fruição musical generalizada. A partir de 1834, com o Liberalismo, a Igreja deixa de ter bases económicas para poder continuar a patrocinar esse tipo de actividade e não há, ao contrário do que sucede nos outros países onde aconteceu o mesmo tipo de ruptura, uma passagem de testemunho dessa responsabilidade para a sociedade civil. A burguesia portuguesa não tinha, manifestamente, um projecto cultural e artístico comparável ao que existia em França, na Alemanha, em Inglaterra, no norte de Itália. Nesses países existiam múltiplas associações filarmónicas, que criaram estruturas nas quais assentavam orquestras, coros, teatros de ópera, salas de teatro declamado, salas de concerto. Como esse não foi o caso em Portugal, houve um vazio que nunca foi preenchido até, praticamente, aos últimos trinta anos. Essa ausência de estruturas fez com que, por exemplo na área da música erudita, as possibilidades de realização efectiva do potencial musical dos portugueses fosse coertada. MJS - Gostava de perceber melhor o que é que era específico da sociedade portuguesa desses tempos, que possa explicar o que a distinguiu tão pobremente, no campo da educação e da fruição musical, e dos bens culturais em geral, de outras sociedades europeias. RVN -Por razões que se prendem com a natureza do Absolutismo português, da Contra-Reforma e do controlo eclesiástico estrito da produção cultural, criou-se um hábito de enorme dependência, no que diz respeito à actividade cultural, para com o poder, tanto civil como eclesiástico. Os portugueses dependeram sempre muito, para as suas práticas culturais, daquilo que era directamente promovido pelas instituições do poder. Por conseguinte, quando esse quadro de iniciativa institucional é suprimido, e não havendo um hábito mental de auto-organização e de iniciativa livre por parte dos próprios cidadãos, nada surge que se lhe substitua, como se verificou no século XIX e como, afinal de contas, ainda é visível nos dias de hoje. Quando se olha com atenção para o século XVI, em particular, percebe-se que a Contra-Reforma foi de uma violência mental, difícil de conceber. Acho que os portugueses ficaram com medo, medo de agir, medo de tomar iniciativas, medo de fazer qualquer coisa sem uma aprovação prévia do poder. De tal maneira que foi tão fácil depois ao salazarismo recuperar essa memória multi-secular. MJS - Contrariar esses medos, essa astenia colectiva, é um enorme desafio para o poder democrático! É curioso como esse retrato negro de uma sociedade sem iniciativa cultural, sem vitalidade, nunca conseguiu abafar a pulsão portuguesa da criação poética. RVN - A pulsão da escrita poética é do foro individual, mas a pulsão da criação musical, que também é do foro individual ao nível da escrita, tem a outra componente que é já do foro colectivo: ninguém escreve música para a gaveta ou para publicar cem exemplares num livro. A música começa por implicar uma aprendizagem, e logo aí há um processo elitista porque só os iniciados têm acesso a essa linguagem, depois pressupõe estruturas de execução, porque a poesia existe no momento em que foi escrita, enquanto que a música só quando é tocada e ouvida (o suporte da partitura é quase meramente virtual) é que passa a existir. Para que isso aconteça tem que haver orquestras, grupos de câmara, coros, escolas que formam músicos especializados, o que implica um investimento institucional, grande, contínuo, regular. Na cultura portuguesa encontras como pulsão criativa efectivamente sobrevivente tudo aquilo que é do foro privado, da esfera individual do cidadão, e tens enormes vazios naquilo que pressuporia estruturas criadas pela "coisa" pública. E a música é disso o paradigma mais evidente. O meu lado optimista leva-me a pensar que, desde a restauração da democracia, o acordar gradual da cidadania também tem uma componente de apetência por bens culturais e, em particular, pela música. A nível autárquico, por exemplo, os habitantes das terras mais isoladas fazem questão de ter o seu auditório, a sua sala de concertos e estão a exigir do poder político local este tipo de estruturas. O segundo momento será verificar que esses equipamentos, sozinhos, não significam nada e que é preciso produção artística para alimentar esses espaços. Um outro fenómeno, e para mim o mais esperançoso, é que há milhares de jovens a acorrer aos cursos de formação artística e musical. As Universidades e as Escolas Superiores de Música estão cheias de rapazes e raparigas, com muito talento. A massa crítica de profissionais especializados, com boa formação nesta área, está a crescer de tal maneira que é impossível que o poder político não acorde, mais cedo ou mais tarde, para esta realidade e que a própria sociedade civil não desperte para esta presença, no seu seio, de um potencial que não existia, de maneira nenhuma, há trinta anos. MJS - Falas-me, com esperança e optimismo, do que se passa no ensino superior. E o que é que está a acontecer nos primeiros degraus da formação e do ensino, onde tudo deve ser iniciado? RVN - Aí, que é um nível crucial, não vejo nenhuns sinais positivos, antes pelo contrário, os sinais são até muito preocupantes. O que é contraditório com o estado de evolução em que nos encontramos, porque, justamente, como o atraso acumulado era tão grande, foi preciso criar primeiro essa tal massa crítica de jovens, com boa formação musical e que possa garantir o suporte de qualquer política de enxerto no tecido social para a música. Não há agora qualquer desculpa para que o ensino da música não esteja generalizado, como parte essencial da formação básica, porque há gente qualificada para o fazer, em quantidade suficiente e, se for preciso fazer formação pedagógica adicional, isso também se faz com relativa facilidade. Insisto, há um número suficiente de pessoas com uma formação musical de base avançada, que podem garantir uma boa formação generalizada da música ao nível do ensino geral. E isso é que é o ponto essencial. Os alunos são alertados nas escolas para a existência da escrita, dos números, das imagens, mas não são alertadas para a existência de um discurso artístico na área dos sons. Não faz parte do seu universo, nem das suas referências. Hoje em dia essa consciência, que eu considero indispensável na formação de base, já poderia ser assegurada. Infelizmente, as reformas do ensino dos últimos anos não têm contemplado essa vertente. Curiosamente, a Reforma Veiga Simão ( de quem se tornou comum dizer muito mal e que eu, não só considero um momento feliz do repensar do ensino em Portugal, como acho que antecipou em muito a reflexão do pensamento democrático após o 25 de Abril) preconizava um alargamento muito grande da formação musical na rede de ensino. Ao longo dos tempos esse projecto foi sendo sucessivamente abandonado, com excepção do período Roberto Carneiro, em que chegou a estar pensada uma nova reforma que reporia esse papel da música no ensino geral, mas a burocracia do Ministério da Educação assustou-se com as contas que fez e o projecto foi rapidamente esquecido outra vez. MJS - Diz-me, em síntese, por que é que a música é importante para a formação de uma criança? RVN - Por todas as razões. No plano estrito da formação intelectual, está mais do que provado, pela psicologia infantil, que a música é um elemento de desenvolvimento poderosíssimo, que facilita todos os tipos de operações mentais de ordem matemática. É um instrumento de estímulo ao desenvolvimento normal das operações intelectuais, tendo um papel catalizador importantíssimo para a capacidade de aquisição e formação de conhecimento. É um veículo de equilíbrio emocional que potencia outras capacidades de expressão artística, essenciais ao desenvolvimento equilibrado da dimensão afectiva das crianças. É uma arte e uma actividade potenciadora da sociabilização das crianças - fazer música em conjunto, aprender que se depende muito de quem está ao lado para que o resultado final seja harmonioso, é um factor de formação ética e cívica essencial. Mas sobretudo pelo seu mérito próprio: a música é uma componente fundamental do património cultural da Humanidade e é um direito dos cidadãos ter garantido, desde muito cedo, o acesso ao seu conhecimento e convivência. MJS - Proponho-te agora um jogo - és nomeado Ministro da Educação, com peso político, com grande autonomia e com meios. Que medidas adoptarias para que a aprendizagem da música passasse a ser uma realidade nas escolas portuguesas? RVN - Nesse teu quadro utópico, faria todos os esforços no sentido da massificação do ensino da música desde o início da escolaridade. A música faria parte, no ensino básico geral, daquela primeira introdução às grandes áreas de formação e de aquisição de conhecimentos. Pelo menos até ao sexto grau de escolaridade. A partir daí, podia transformar-se em opção. Não é a invenção da pólvora, há sistemas e métodos mais que estudados para pôr isso em prática. A Hungria, por exemplo, tem um grau de alfabetização musical quase tão forte como o da alfabetização literária - em qualquer escola primária húngara as crianças olham para uma partitura com a mesma relação confiante com que olham para uma página de texto literário. Os resultados de escolaridade das crianças portuguesas que têm formação musical são, de resto, absolutamente conclusivos quanto a um melhor aproveitamento global. Como de um ponto de vista técnico como já referi, não há neste momento qualquer dificuldade, os únicos obstáculos que existem prendem-se com a falta de vontade política e com a disponibilidade de meios financeiros, que haveria que criar e gerir com bom senso. MJS - A iliteracia musical compromete qualquer sociedade que se diz e que se quer desenvolvida? RVN - Em grande parte compromete e, seguramente, empobrece-a muito. MJS - É sabida a tua paixão pela música barroca. Queres convocar os leitores da Pública para esse universo? RVN - Porque é que me fascina o barroco numa perspectiva alargada? Por um lado, porque é um universo em que a música tem uma presença maciça, de primeiro grau, visto ser uma das linguagens em que a cultura europeia nesse período investiu, de uma forma mais evidente, para a sua representação. Muita da melhor produção artística ocidental desses séculos está assumidamente presente na música. Quer na música por si própria, com grande destaque para a música sacra, quer no cruzamento com outras artes, como é o caso do bailado e, em particular, da ópera. Há uma espécie de primazia dada à presença da música no contexto das artes, que faz com que ela tenha uma importância redobrada em relação a outros períodos. A quantidade de música produzida neste contexto foi absolutamente gigantesca, porque não havia uma pequenina corte, uma igrejinha, uma casa da classe média com pretensões de distinção mínima, que não investisse uma percentagem do seu rendimento disponível no acesso e na produção de música erudita de qualidade. Tudo isto produziu uma massa crítica muito consistente e, no meio de obras de menor interesse, a grande percentagem daqui resultante era de grande nível. MJS - Poder-se-á dizer que ter um clavicórdio e fazer música em casa era, para a burguesia de então, um sinal de distinção comparável a ter um BMW nas garagens das casas de hoje? RVN - No século XVIII, seguramente que era assim. E alguma coisa desses sinais exteriores de distinção acompanhou a burguesia europeia até meados do século XX onde, casa da classe média onde não houvesse um piano nem a menina falasse francês, era casa menos "distinta". MJS - Regressemos ao retrato do teu amor musical, da música barroca. RVN - A música barroca é uma música que investe de uma maneira muito eficaz na expressão dos sentimentos e das preocupações fundamentais das sociedades e dos indivíduos - a morte, o destino, a fé, a esperança, o amor..., temas que, de resto, são depois objecto de reflexões muito cuidadas, como por exemplo a chamada "gramática dos afectos", que os teóricos musicais do barroco levaram até ao extremo. Como é que a música pode ser veículo de emoção, de sentimentos, de valores? É uma música que se assume como meta-linguagem, capaz de reflectir e de meditar (a um nível para-racional), sobre as qualidades fundamentais da existência humana. São raros os períodos da História da Música em que todas estas dimensões da vida humana aparecem tratadas de uma maneira tão rica, tão profunda, tão sofisticada e cuidada, como no barroco. Essa faceta atrai-me muito. MJS - O que é que define a música barroca? RVN - A música barroca é uma tentativa para expressar, metaforicamente e por meios musicais, a ordem natural das coisas. Ou seja, tenta produzir, através dos sons, o retrato do jogo de proporções e do jogo de sentimentos que, por um lado, definem a vida quotidiana e a organização interna das sociedades e, por outro, traduzem também a vida interior dos indivíduos que compõem essas sociedades. MJS - Mas, insisto, que é que há de especificamente novo na música barroca, em termos de escrita musical? Que "distinguo" preside a essa nova linguagem? RVN - Em termos de escrita musical tudo isto que referi leva à construção de grandes formas complexas, que não existiam antes, em que há pequeninas unidades que se vão colando umas às outras num todo complexo e coerente. Por exemplo, uma grande ópera barroca é a soma de uma infinidade de pequeninas árias, cada uma com características contrastantes e inserindo-se num mosaico gigantesco que é gerido, na sua organização interna, por regras de equilíbrio e de proporção extremamente cuidadas. Temos uma grande forma que, por sua vez, se decompõe em múltiplas pequenas formas e, em cada um destes níveis, há uma preocupação de solidez, de equilíbrio, de proporção, sendo que, ao mesmo tempo, há uma relação harmónica entre esta preocupação estrutural e o requinte da superfície que faz com que seja uma realidade permanentemente inesgotável. O universo formal da escrita musical anterior era mais limitado, tínhamos obras mais pequenas, com uma complexidade formal menor, como menor era a preocupação de densidade estrutural presente na música barroca. Não quer dizer que não pudesse haver música com uma força emocional e com uma inteligência de construção muito grandes mas, esta arquitectura e esta dimensão maiores, não se encontram, antes do barroco, de forma tão evidente. Depois, quando se entra no Romantismo, há um primado do sentimento e da emoção em estado bruto, que faz destruir um bocadinho o jogo sofisticado de gestão da estrutura musical, tão próprio do barroco. Gosto mais do poder da expressão de uma emoção depurada pela forma (e penso que ela se torna mais forte, mais eficaz, mais sedutora), do que da emoção no seu estado puro. O equilíbrio perfeito entre a pulsão emocional e a sofisticação da forma, que é o que define o barroco e lhe dá uma dimensão de universalidade, é o que mais me apaixona na sua música. MJS - Dá-me uma palavra de eleição. RVN - Esperança. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA Os alfaiates de Deus

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