Os jornalistas, a justiça e o bom senso

26-10-2004
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Os Jornalistas, a Justiça e o Bom Senso

Por SEBASTIÃO LIMA REGO

Terça-feira, 19 de Outubro de 2004 oi anunciado que estaria em preparação uma alteração da Lei de Imprensa, de origem governamental, que visaria redefinir a responsabilidade dos jornalistas no que concerne ao segredo de justiça. Haveria já até uma comissão nomeada, ou em vias de nomeação, encarregada da elaboração desse projecto. Sou totalmente contrário a este tipo de procedimento. Em primeiro lugar, as notícias vindas a lume denunciam uma grande ingenuidade técnico-jurídica. Se se quisesse transformar efectivamente a posição dos jornalistas na área do segredo de justiça, haveria que mexer não somente na Lei de Imprensa mas também na Lei da Televisão, na Lei da Rádio, no Estatuto do Jornalista, no Código Deontológico do Jornalista, no Código Penal e no Código do Processo Penal. E teríamos ainda, talvez, de rever a própria Constituição. Não é coisa fácil, não seria tarefa que uma qualquer comissão pudesse alinhavar em meia dúzia de meses. Mas a questão, mais do que jurídica, é principalmente política e reside aqui a vertente do episódio que precisamente pretendo sublinhar. É que o aspecto mais melindroso desta iniciativa é que ela finge desconhecer que nos encontramos face a uma gravíssima crise generalizada de todo o aparelho judiciário, com inumeráveis pontas soltas que é preciso detectar, compreender, diagnosticar e reconstruir, e que portanto, neste cenário dramático, fazer incidir a necessidade prioritária de transformação judicial no protagonismo dos "media" e dos jornalistas é inconsequente e até surpreendentemente ridículo. Prescindamos de subterfúgios e de falinhas mansas: a hipotética nomeação de uma tal comissão, com tais atribuições e tais competências, traria como implícito político que os jornalistas é que são os "maus da fita". A simples existência dessa comissão, antes da reforma geral do sistema judiciário, corporizaria uma acusação clara à idoneidade ético/deontológica dos órgãos e dos profissionais da comunicação social. Representaria uma discriminação negativa de imagem, por parte da sociedade organizada, o Estado, em relação a um sector (os "media") e a uma classe (os jornalistas) reputados de forma tácita mas óbvia como os causadores da crise real e da crise de confiança que se abateu sobre o sistema judiciário nos últimos anos. Ora isto não é verdade e não é justo. Certamente que houve jornalistas que terão actuado mal em recentes casos de excepcional visibilidade judicial. Mas quais, como, em que circunstâncias? Isso está esclarecido, foi porventura investigado pela própria justiça? Há indiciados, há acusados, há pronunciados? Não conheço um único. E remanescerão muitas dúvidas de que, de entre os agentes da justiça, de todo o tipo, alguns também procederam mal, nomeadamente violando o segredo de justiça, ou ajudando outros a violá-lo? É verdade que também aqui nada foi esclarecido com rigor, mais uma vez por carência das autoridades judiciárias de investigação, mas se todos suspeitamos de todos, porquê começar a repressão com pompa e circunstância pelos "media" e pelos jornalistas? Digo-vos mais. Se é claro que não posso (ninguém pode) ter certezas quanto ao grau de responsabilidade comparada dos vários intervenientes sociais nas sucessivas infracções ao segredo de justiça a que temos assistido ultimamente, a minha sensibilidade vai no sentido de que os jornalistas não só serão, hipoteticamente, meros infractores secundários, como ainda, no cômputo global da problemática, terão provavelmente assumido uma responsabilidade muito menor, muito menos activa, muito menos regular, muito menos perversa e muito menos interessada do que a dos outros agentes envolvidos nos processos em que todos estamos a pensar. Seja como for, neste campo, ninguém pode declarar com segurança quem fez o quê e com que nível de responsabilidade. Então, porquê começar pela comunicação social, porquê dar início à caçada disparando sobre os jornalistas, sobre os "media", sobre a liberdade de informar? É importante, é urgente legislar em ordem a assegurar a transparência da justiça; o relacionamento descomplexado da justiça com os "media"; a celeridade processual que evite a eternização dos casos não julgados, inclusive com arguidos detidos; a racionalização do uso da medida de coacção da prisão preventiva; a profissionalização e a disponibilização de meios técnicos adequados no que respeita aos investigadores; a diminuição das situações objecto de segredo de justiça e o encurtamento dos respectivos prazos; a rigorosa legalidade das práticas investigatórias, como as escutas telefónicas; uma melhor e mais eficaz garantia sistemática dos direitos das vítimas e dos suspeitos; o fim das prescrições frequentes devidas a causas obscuras; as amnistias precipitadas e tecnicamente imponderadas; etc, etc. Em síntese, mudar a justiça, melhorar a justiça, é um enorme desafio, um desafio histórico para um Portugal moderno, um Portugal do século XXI. Mas deixar tudo na mesma e zurzir nos jornalistas, será esse o desiderato? Não é. Seria a maneira mais desastrada de atacar a questão, a mais leviana e a mais ilusória. O item jornalistas/segredo de justiça é apenas um item instrumental, um aspecto de detalhe da clamorosa crise da justiça. Não autonomizem nem sobretudo diabolizem essa questão afinal periférica, esse pequeno asteróide a vaguear no incomensurável universo da crise da justiça no nosso país. jurista, membro da Alta-Autoridade para a Comunicação Social OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Governo espanhol contra "telelixo" em horário infantil

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Mas a questão, mais do que jurídica, é principalmente política e reside aqui a vertente do episódio que precisamente pretendo sublinhar. É que o aspecto mais melindroso desta iniciativa é que ela finge desconhecer que nos encontramos face a uma gravíssima crise generalizada de todo o aparelho judiciário, com inumeráveis pontas soltas que é preciso detectar, compreender, diagnosticar e reconstruir, e que portanto, neste cenário dramático, fazer incidir a necessidade prioritária de transformação judicial no protagonismo dos "media" e dos jornalistas é inconsequente e até surpreendentemente ridículo. Prescindamos de subterfúgios e de falinhas mansas: a hipotética nomeação de uma tal comissão, com tais atribuições e tais competências, traria como implícito político que os jornalistas é que são os "maus da fita". 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E remanescerão muitas dúvidas de que, de entre os agentes da justiça, de todo o tipo, alguns também procederam mal, nomeadamente violando o segredo de justiça, ou ajudando outros a violá-lo? É verdade que também aqui nada foi esclarecido com rigor, mais uma vez por carência das autoridades judiciárias de investigação, mas se todos suspeitamos de todos, porquê começar a repressão com pompa e circunstância pelos "media" e pelos jornalistas? Digo-vos mais. Se é claro que não posso (ninguém pode) ter certezas quanto ao grau de responsabilidade comparada dos vários intervenientes sociais nas sucessivas infracções ao segredo de justiça a que temos assistido ultimamente, a minha sensibilidade vai no sentido de que os jornalistas não só serão, hipoteticamente, meros infractores secundários, como ainda, no cômputo global da problemática, terão provavelmente assumido uma responsabilidade muito menor, muito menos activa, muito menos regular, muito menos perversa e muito menos interessada do que a dos outros agentes envolvidos nos processos em que todos estamos a pensar. Seja como for, neste campo, ninguém pode declarar com segurança quem fez o quê e com que nível de responsabilidade. Então, porquê começar pela comunicação social, porquê dar início à caçada disparando sobre os jornalistas, sobre os "media", sobre a liberdade de informar? É importante, é urgente legislar em ordem a assegurar a transparência da justiça; o relacionamento descomplexado da justiça com os "media"; a celeridade processual que evite a eternização dos casos não julgados, inclusive com arguidos detidos; a racionalização do uso da medida de coacção da prisão preventiva; a profissionalização e a disponibilização de meios técnicos adequados no que respeita aos investigadores; a diminuição das situações objecto de segredo de justiça e o encurtamento dos respectivos prazos; a rigorosa legalidade das práticas investigatórias, como as escutas telefónicas; uma melhor e mais eficaz garantia sistemática dos direitos das vítimas e dos suspeitos; o fim das prescrições frequentes devidas a causas obscuras; as amnistias precipitadas e tecnicamente imponderadas; etc, etc. Em síntese, mudar a justiça, melhorar a justiça, é um enorme desafio, um desafio histórico para um Portugal moderno, um Portugal do século XXI. Mas deixar tudo na mesma e zurzir nos jornalistas, será esse o desiderato? Não é. Seria a maneira mais desastrada de atacar a questão, a mais leviana e a mais ilusória. O item jornalistas/segredo de justiça é apenas um item instrumental, um aspecto de detalhe da clamorosa crise da justiça. Não autonomizem nem sobretudo diabolizem essa questão afinal periférica, esse pequeno asteróide a vaguear no incomensurável universo da crise da justiça no nosso país. jurista, membro da Alta-Autoridade para a Comunicação Social OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Governo espanhol contra "telelixo" em horário infantil

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