EXPRESSO: Cartaz

07-11-2002
marcar artigo

O último poder

O Teatro Focus leva à cena uma peça de Jean Genet

Cristina Margato

NUNO BOTELHO Lígia Soares, Mário Trigo e Pedro Alves são os três reclusos

Rebelde quase à nascença (é apanhado a roubar aos 10 anos), Jean Genet optou por ser o bandido que começaram por achar que ele era. Ao repudiar as leis do mundo, não deixou, porém, de se submeter a regras - as de um outro mundo que amplifica a crueldade, a violência e a falta de amor do primeiro.(nome original) - que na tradução de Viviane Ascensão para o Teatro Focus recebe o título de- tem por território esse espaço social que Genet conheceu por dentro desde muito cedo, a prisão; e por objecto uma intricada teia de relações entre três jovens condenados.

A «santificação» ou veneração do criminoso (tema habitual em Genet), a elevação do estatuto deste consoante o grau de crueldade do crime cometido e as relações que se estabelecem a partir de uma hierarquia de violência transparecem num diálogo que Genet imaginou onírico. «Toda a acção decorre como num sonho», ordenou o dramaturgo francês no início do texto.

Na encenação de Mário Trigo, estreada esta semana no Teatro da Trindade, procura-se responder à vontade de Genet: a Sala Estúdio mantém-se como caixa preta, e a luz, dura, limita-se a três holofotes. Mas os gestos que Genet quis pesados, na encenação do Teatro Focus parecem, porém, ligeiros e lentos. Mário Trigo entrega ainda o papel de Olhos Verdes a uma mulher de aspecto andrógino, Lígia Soares. «Uma forma de assumir a própria metáfora do texto», no entender do encenador, já que a dada altura Olhos Verdes, ao enredar-se na narração do crime cometido, confessa que ao matar a mulher que queria uma flor de lilás que tinha entre os dentes sentiu-se também ele mulher. Lígia Soares antecipa, por isso, a mudança de género de Olhos Verdes: «Os meus mamilos ficaram enormes, davam demasiado nas vistas.»

O espaço estreito onde se movem os três jovens (e também Lígia Soares, Mário Trigo e Pedro Alves) mede-se para além da cela, aqui delimitada apenas por umas linhas brancas traçadas no chão. Extravasa, na medida em que à personagem que estabelece a cadeia de relações, Olhos Verdes, se juntam duas outras figuras importantes. Apesar de fisicamente ausentes - Bola de Neve, «dono» e senhor da prisão, e a mulher de Olhos Verdes -, determinam a forma como evoluiu o conflito dentro do cárcere. São eles os motores dos desejos e receios pelos quais se batem os três reclusos.

Para além do guarda (interpretado por Sérgio Moura Afonso), estas duas figuras «fora de plano» são a prova de que na prisão não se vive sem regras (Bola de Neve determina-as e fá-las respeitar) e que a sobrevivência dentro dela depende de uma moral exterior, onde prevalecem valores como a lealdade e a fidelidade e, logo, uma «propriedade» que está para lá dessas quatro paredes. Olhos Verdes, condenado à morte, «oferece» como presente ao guarda a própria mulher: «Vais-me substituir. Quando me tiverem cortado a cabeça, conto contigo para ocupares o meu lugar.» Trata-se do lugar de marido, que só existe num espaço ao qual Olhos Verdes, por força de um acto imoral e da consequente condenação, já deixou de pertencer. Mas sobre o qual insiste em ter direitos, para poder usufruir de um último poder. O guarda, de resto, responde-lhe: «Estás adoptado. E, na cantina, faz-me sinal.»

5

O último poder

O Teatro Focus leva à cena uma peça de Jean Genet

Cristina Margato

NUNO BOTELHO Lígia Soares, Mário Trigo e Pedro Alves são os três reclusos

Rebelde quase à nascença (é apanhado a roubar aos 10 anos), Jean Genet optou por ser o bandido que começaram por achar que ele era. Ao repudiar as leis do mundo, não deixou, porém, de se submeter a regras - as de um outro mundo que amplifica a crueldade, a violência e a falta de amor do primeiro.(nome original) - que na tradução de Viviane Ascensão para o Teatro Focus recebe o título de- tem por território esse espaço social que Genet conheceu por dentro desde muito cedo, a prisão; e por objecto uma intricada teia de relações entre três jovens condenados.

A «santificação» ou veneração do criminoso (tema habitual em Genet), a elevação do estatuto deste consoante o grau de crueldade do crime cometido e as relações que se estabelecem a partir de uma hierarquia de violência transparecem num diálogo que Genet imaginou onírico. «Toda a acção decorre como num sonho», ordenou o dramaturgo francês no início do texto.

Na encenação de Mário Trigo, estreada esta semana no Teatro da Trindade, procura-se responder à vontade de Genet: a Sala Estúdio mantém-se como caixa preta, e a luz, dura, limita-se a três holofotes. Mas os gestos que Genet quis pesados, na encenação do Teatro Focus parecem, porém, ligeiros e lentos. Mário Trigo entrega ainda o papel de Olhos Verdes a uma mulher de aspecto andrógino, Lígia Soares. «Uma forma de assumir a própria metáfora do texto», no entender do encenador, já que a dada altura Olhos Verdes, ao enredar-se na narração do crime cometido, confessa que ao matar a mulher que queria uma flor de lilás que tinha entre os dentes sentiu-se também ele mulher. Lígia Soares antecipa, por isso, a mudança de género de Olhos Verdes: «Os meus mamilos ficaram enormes, davam demasiado nas vistas.»

O espaço estreito onde se movem os três jovens (e também Lígia Soares, Mário Trigo e Pedro Alves) mede-se para além da cela, aqui delimitada apenas por umas linhas brancas traçadas no chão. Extravasa, na medida em que à personagem que estabelece a cadeia de relações, Olhos Verdes, se juntam duas outras figuras importantes. Apesar de fisicamente ausentes - Bola de Neve, «dono» e senhor da prisão, e a mulher de Olhos Verdes -, determinam a forma como evoluiu o conflito dentro do cárcere. São eles os motores dos desejos e receios pelos quais se batem os três reclusos.

Para além do guarda (interpretado por Sérgio Moura Afonso), estas duas figuras «fora de plano» são a prova de que na prisão não se vive sem regras (Bola de Neve determina-as e fá-las respeitar) e que a sobrevivência dentro dela depende de uma moral exterior, onde prevalecem valores como a lealdade e a fidelidade e, logo, uma «propriedade» que está para lá dessas quatro paredes. Olhos Verdes, condenado à morte, «oferece» como presente ao guarda a própria mulher: «Vais-me substituir. Quando me tiverem cortado a cabeça, conto contigo para ocupares o meu lugar.» Trata-se do lugar de marido, que só existe num espaço ao qual Olhos Verdes, por força de um acto imoral e da consequente condenação, já deixou de pertencer. Mas sobre o qual insiste em ter direitos, para poder usufruir de um último poder. O guarda, de resto, responde-lhe: «Estás adoptado. E, na cantina, faz-me sinal.»

5

marcar artigo