Lilases as flores do mal

18-10-2002
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Lilases as Flores do Mal

Sexta-feira, 4 de Outubro de 2002

Pensemos na definição que o ensaísta francês Jean-Pierre Sarrazac deu do teatro de Genet - uma orquestração de lentas danças macabras. Agora imaginemos Olhos Verdes, a personagem supostamente masculina de "Lilases" (a peça que Mário Trigo encena a partir de "Haute Surveillance"): atinge o êxtase, um êxtase tão "sublime" que gera a sua metamorfose sexual ao assassinar uma mulher. E depois dança, exibindo-se.

Lígia Soares é Olhos Verdes, um condenado à guilhotina, orquestrador e bailarino de danças macabras numa cela que partilha com três prisioneiros (ainda Maurice e Lefranc). Com eles forma um "triângulo" amoroso, "odioso", e sobre eles pairam os cordéis invisíveis de um jogo de poder onde domina a ambiguidade, a falsidade, a ilusão, a traição - um universo asfixiante, ensombrado pela morte. Pelo vazio, como o palco do Teatro da Trindade.

Mário Trigo preferiu o título simbólico "Lilases" a uma hipotética tradução à letra ("Alta Segurança"): "É o móbil dos lilases que faz evoluir o crime. Eles são três lilases, três personagens com as suas perturbações, os seus desvios sexuais."

Para este ritual da morte, o encenador escolheu como elementos cenográficos apenas uma cama e uma cadeira. O cansanço mental "exarcebado" de quem está preso, a deriva afectiva das personagens, o tédio, o ócio, o tempo que se torna eterno e provoca a tensão até à morte são representados pelos actores (Trigo, Pedro Alves, Lígia Soares) num registo artificial, próximo da insanidade. Tal como defendia Genet (1919-1986), um homem que recusou o mundo que o recusou, autor de um anti-Grande teatro do mundo, que exaltava o artifício, para quem a vida devia morrer no palco e o que está morto (os objectos, o cenário) deveria aceder à vida, citando, mais uma vez, Sarrazac.

A "voz da insolência e desobediência contra o poder", o pensamento contra-cultura do autor, motivou a encenação: "Interessa-me reflectir sobre este mundo a-social como contraponto à civilização ocidental que Genet destabiliza com outra ética, moral e valor estético", diz Mário Trigo.

De resto, a face obscura do homem, a morte como fantasma é possível fio de ligação no percurso do Teatro Focus. Encenaram peças a partir de Céline, Oscar Wilde ("Salomé" - que imagem mais negra existe do ser humano do que a de uma mulher que manda cortar a cabeça do homem que ignorou o seu amor?), ou a partir do massacre ocorrido em Infa (Moçambique), em 1972, durante a Guerra Colonial - "Infa 72", de Fernando de Sousa. Porquê este fascínio? "Passámos séculos, desde a 'revolução' judaico-cristã, a tentar esconder os nossos fantasmas, o lado negro do ser humano. Penso que só quando vamos ao encontro deles é que nos podemos transformar. Interessa-nos também o questionamento político: até que ponto a nossa sociedade não é uma falácia e a democracia está doente?"

E conclui, concordando que há também uma vontade de intervenção, "não panfletária", sublinha, "mas de alerta: sugerindo e não dando explicações nem defendendo posições". Joana Gorjão Henriques

Lilases as Flores do Mal

Sexta-feira, 4 de Outubro de 2002

Pensemos na definição que o ensaísta francês Jean-Pierre Sarrazac deu do teatro de Genet - uma orquestração de lentas danças macabras. Agora imaginemos Olhos Verdes, a personagem supostamente masculina de "Lilases" (a peça que Mário Trigo encena a partir de "Haute Surveillance"): atinge o êxtase, um êxtase tão "sublime" que gera a sua metamorfose sexual ao assassinar uma mulher. E depois dança, exibindo-se.

Lígia Soares é Olhos Verdes, um condenado à guilhotina, orquestrador e bailarino de danças macabras numa cela que partilha com três prisioneiros (ainda Maurice e Lefranc). Com eles forma um "triângulo" amoroso, "odioso", e sobre eles pairam os cordéis invisíveis de um jogo de poder onde domina a ambiguidade, a falsidade, a ilusão, a traição - um universo asfixiante, ensombrado pela morte. Pelo vazio, como o palco do Teatro da Trindade.

Mário Trigo preferiu o título simbólico "Lilases" a uma hipotética tradução à letra ("Alta Segurança"): "É o móbil dos lilases que faz evoluir o crime. Eles são três lilases, três personagens com as suas perturbações, os seus desvios sexuais."

Para este ritual da morte, o encenador escolheu como elementos cenográficos apenas uma cama e uma cadeira. O cansanço mental "exarcebado" de quem está preso, a deriva afectiva das personagens, o tédio, o ócio, o tempo que se torna eterno e provoca a tensão até à morte são representados pelos actores (Trigo, Pedro Alves, Lígia Soares) num registo artificial, próximo da insanidade. Tal como defendia Genet (1919-1986), um homem que recusou o mundo que o recusou, autor de um anti-Grande teatro do mundo, que exaltava o artifício, para quem a vida devia morrer no palco e o que está morto (os objectos, o cenário) deveria aceder à vida, citando, mais uma vez, Sarrazac.

A "voz da insolência e desobediência contra o poder", o pensamento contra-cultura do autor, motivou a encenação: "Interessa-me reflectir sobre este mundo a-social como contraponto à civilização ocidental que Genet destabiliza com outra ética, moral e valor estético", diz Mário Trigo.

De resto, a face obscura do homem, a morte como fantasma é possível fio de ligação no percurso do Teatro Focus. Encenaram peças a partir de Céline, Oscar Wilde ("Salomé" - que imagem mais negra existe do ser humano do que a de uma mulher que manda cortar a cabeça do homem que ignorou o seu amor?), ou a partir do massacre ocorrido em Infa (Moçambique), em 1972, durante a Guerra Colonial - "Infa 72", de Fernando de Sousa. Porquê este fascínio? "Passámos séculos, desde a 'revolução' judaico-cristã, a tentar esconder os nossos fantasmas, o lado negro do ser humano. Penso que só quando vamos ao encontro deles é que nos podemos transformar. Interessa-nos também o questionamento político: até que ponto a nossa sociedade não é uma falácia e a democracia está doente?"

E conclui, concordando que há também uma vontade de intervenção, "não panfletária", sublinha, "mas de alerta: sugerindo e não dando explicações nem defendendo posições". Joana Gorjão Henriques

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