Especial Timor

19-02-2003
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OS DIAS DO LUSITÂNIA

contados por um estudante português

"Missão Paz em Timor" permitiu a um jovem estudante português, Carlos Filipe Santos Costa, relatar o quotidiano dos repórteres a bordo do Lusitânia Expresso entre Darwin e Timor... onde nunca chegou por causa da prepotência de uns e da cobardia dos outros.

- Está aqui um navio, ponham-me em directo!

- Está tudo bem com vocês?

- Sim, está tudo bem, mete-me no ar...

- Mete-me no ar, f....! Eu tenho que contar isto, está cá um navio!....

- Mas não há problema com vocês?

A calma nocturna do Índico tinha a sua perfeita antítese do outro lado do Mundo, no nervosismo que se abatera sobre os estúdios da TSF, em Lisboa.

Torre 2 das Amoreiras, sexto andar, sala 4. Ainda há pouco acabou o noticiário das 13 horas que, mais uma vez, abriu com notícias do Lusitânia Expresso, um "cacilheiro melhorado", como alguns chamavam ao "ferry" que então se aproximava do mar de Timor.

De bordo do navio amarelo e azul, registado na Madeira, o enviado especial da "Rádio Jornal", Manuel Acácio, descreveu um princípio de noite quase igual à anterior. Depois de uma refeição de jardineira enlatada, a calma reina a bordo.

Por volta das 10 da noite (hora de Darwin, cerca das 12h30 em Lisboa), o Lusitânia encontra-se a oitenta e quatro milhas do limite das águas territoriais de Timor Leste.

O capitão do barco, Luís dos Santos, previa que a Marinha indonésia se apresentasse ao Lusitânia daí a umas cinco horas, quando naquelas paragens fosse já madrugada de quarta-feira, dia 11 de Março de 1992.

Por enquanto, viviam-se as últimas duas horas de um dia sem incidentes, apenas marcado pela ansiedade e expectativa que sempre acompanha os grandes momentos. Uma tempestade de cinco milhas passa, como tantas outras no último dia e meio, sem incomodar o navegar pachorrento do Lusitânia, que de Expresso só tem o nome.

Um navio não identificado é denunciado às 22h55 pelo radar de bordo. Vem a uma velocidade de 12 nós, no sentido contrário ao do "peace boat", como era conhecido o Lusitânia Expresso na terra dos cangurus.

A princípio, ninguém sabe se o navio, longínquo e silencioso, será um vaso de guerra. Durante cerca de meia hora, a dúvida mantém-se, pelo menos até ao nascer do dia.

- Primeiro, vimos uma luz muito, muito longe, à nossa frente. Esse barco depois passou pela nossa esquerda, fez um grande círculo e pôs-se ao nosso lado, recordaria mais tarde, Rui Araújo, enviado especial do Canal 2 da RTP.

O seu colega do primeiro canal, José Rodrigues dos Santos, tinha, pouco tempo antes, entrado em directo para o "Jornal da Tarde". As luzes que surgiam ao longe obrigaram-no, como aos repórteres da rádio, a estabelecer novo contacto com Portugal. Enquanto Manuel Acácio tentava convencer os seus colegas da TSF que ninguém a bordo do Lusitânia corria perigo pelo facto de terem surgido três luzes no horizonte, Rodrigues dos Santos entrava, pela segunda vez, em directo com o noticiário da RTP Porto.

Quinze minutos depois, não havia qualquer dúvida quanto à natureza da embarcação. A velocidade a que se deslocava, o silêncio, as três luzes características das fragatas de guerra. Tudo confirmava a antecipação do encontro do "barco da Paz" com a Marinha indonésia.

E a antecipação do circo mediático.

Dos cinquenta e oito jornalistas a bordo, vinte e um seriam os olhos e os ouvidos de Portugal, atentos a todos os pormenores das horas decisivas da "Missão Paz em Timor".

Anunciada dois meses antes, a 9 de Janeiro, a Missão era, até ver, o grande acontecimento mediático do ano, em Portugal.

A colocação de uma coroa de flores em Díli, no local onde, em Novembro de 1991, tinham sido massacrados dezenas de timorenses pelas tropas indonésias, era a finalidade da "Missão Paz em Timor", organizada por Rui Marques, vinte e oito anos, director da revista "Forum Estudante". Se a finalidade seria alcançada, as próximas horas o diriam.

O objectivo da iniciativa, esse, já tinha, de alguma forma, sido atingido.

"O objectivo era fazer passar uma mensagem - diria mais tarde Rui Marques - com uma acção que tinha todos os componentes que qualquer jornalista sabe que resultam para ser notícia".

Ficava tudo em família. Um acontecimento destinado aos media, programado por jornalistas. "O Lusitânia Expresso não podia ter sido pensado por outras pessoas que não os jornalistas. Toda a lógica é de cabeças viciadas - e Rui Marques ri-se da sua expressão - na forma de pensar do jornalista. A nossa preocupação era, depois de Santa Cruz, não deixar Timor cair no esquecimento."

Rui Marques rodeou-se de vários conselheiros na preparação do pseudo-acontecimento. Alguns, como os jornalistas Cáceres Monteiro, Fernando Madrinha e Paulo Veiga, convidados para a organização, acompanharam a Missão até à sua última base, Darwin. Outros, mantiveram-se nos bastidores. Roberto Carneiro, André Gonçalves Pereira, António Pinto Leite, Paulo Portas, Virgílio de Carvalho, foram alguns dos cérebros por detrás da "Missão Paz em Timor".

Rui Marques acompanhava, na minúscula ponte de comando, a progressão da fragata indonésia. No convés, os estudantes de vinte e três países e os convidados que aceitaram emprestar algum do seu brilho ao acontecimento, acotovelaram-se para ver os pontos luminosos, distinguindo, na escuridão, apenas os contornos do vaso de guerra.

À ré, onde estavam montadas as parabólicas, os repórteres contavam a Portugal o que se passava. José Manuel Lopes, da Rádio Comercial, e Carlos Barros, da Antena 1, partilhavam a "vaquinha", o telefone satélite mais popular da Missão, pequenino, com quatro patinhas que lhe valeram o apelido tão pitoresco. Para além deste, só havia mais um telefone satélite privado. Era o da TSF, o fiel amigo de Manuel Acácio e do seu técnico, Pedro Brinca. O Correio da manhã Rádio, com um emissor de ondas curtas a transmitir para Darwin e, daí, para Lisboa, fechava o grupo dos sortudos que dispunham de meios de comunicação próprios.

Os restantes jornalistas tinham que utilizar os telefones "públicos" instalados pela organização da viagem. Dois telefones satélite que ninguém se lembra de ter visto funcionar em simultâneo durante toda a viagem. As avarias sucediam-se e os repórteres menos abastados tinham de se inscrever e aguardar a sua vez em filas de espera que pareciam intermináveis, para poderem enviar o seu trabalho para Lisboa.

Passada a agitação inicial provocada pela fragata indonésia, devido mais à curiosidade do que ao nervosismo, os jornalistas portugueses eram os únicos passageiros a resistir ao apelo de algumas horas de sono.

"A fragata indonésia está mesmo ao lado, não despega, mas poucos lhe dão atenção, caídos pelos bancos e pelo chão, na luz eléctrica das salas, em sacos cama coloridos onde ninguém se enfia, rabos para o ar, barrrigas na horizontal, joelhos meio dobrados no bom sono dos inocentes. Aqui e ali, perto dos guarda-chuvas das parabólicas e rádios de onda curta, há focos de jornalistas com olheiras. Perderam o olhar frenético e vão emitindo como podem os directos que se esperam em Portugal - um país alarmado, por enquanto, sem motivo", escrevia Rui Cardoso Martins, o enviado do jornal "Público". Eram 4h45 da madrugada, as águas de Timor estavam ainda a vinte e nove milhas.

Em Lisboa, passava das sete da noite. Na Quinta do Lambert, no "Público", Adelino Gomes, um dos jornalistas portugueses com maior ligação a Timor, acompanhava o trabalho de Rui Cardoso Martins. Nessa noite de Março, a edição do jornal vai fechar mais tarde do que habitualmente. Lusitânia Expresso oblige.

A bordo, os jornalistas estrangeiros dormem quase todos. Não é esperado qualquer desenvolvimento para as próximas horas. Propositadamente, o Lusitânia mantém a velocidade, de forma a só chegar à zona de risco, o limite de 12 milhas das águas territoriais de Timor Leste, às sete da manhã. Se outra razão não houvesse para esta precaução, a luz do dia era fundamental para que as equipas de televisão pudessem colher boas imagens do encontro com a Marinha indonésia. ("A luz seria um elemento essencial para que resultasse o efeito mediático: precisávamos de boas imagens", escreveria Rui Marques, alguns dias depois).

Embora ninguém pudesse, nesta altura, prever o que iria acontecer nas próximas horas, o mais provável era que o barco nunca chegasse a Timor. Nas inúmeras reuniões de preparação de cenários ("este projecto deve ter sido a iniciativa com mais reuniões per capita", segundo a "Forum Estudante" do mês seguinte), a hipótese do bloqueio indonésio tinha sido eleita por 95%.

Estas reuniões, incontáveis desde a partida de Lisboa até ao fim da Missão, funcionavam como uma espécie de terapia de grupo, ou catarse colectiva. Algumas eram fechadas à Comunicação Social, o que causou algum mal estar, sobretudo entre os jornalistas estrangeiros. Não que os repórteres estivessem preocupados com o desfecho da Missão, ou com os perigos que esta lhes pudesse reservar (o enviado especial do "Jornal de Notícias" foi, de resto, o único a arranjar um impedimento de última hora para não embarcar, o que não deixou de inspirar alguns comentários mais sarcásticos). O motivo pelo qual ali estavam era profissional, pelo que estavam preparados para qualquer eventualidade. Também por motivos profissionais, reclamavam o direito de assistir às reuniões de preparação de acções futuras. O que, segundo a organização, podia pôr em risco uma certa confidencialidade. "Era um pouco como transmitir, num cenário de guerra, segredos ao inimigo", reconhece José Manuel Lopes, o homem que, então na Rádio Comercial, e mais tarde no CMR, tratava das questões de Timor.

A questão dos "segredos de Estado" não sensibilizava todos os jornalistas na mesma medida. "Isso não era problema meu. Eu relatava o que tivesse de relatar", diria o apresentador do telejornal do Canal 1, Rodrigues dos Santos. Já o tinha demonstrado em Darwin, quando um senador australiano que fazia parte da Missão, convocou os jornalistas portugueses para lhes pedir que não transmitissem notícias desfavoráveis à causa. Uma jornalista indonésia que assistia ao encontro foi expulsa da sala, o que provocou o protesto de Rodrigues dos Santos, bem como dos restantes enviados portugueses. O jornalista da RTP recusou-se, então, a continuar no encontro, "primeiro porque a jornalista indonésia tinha o direito de estar ali, e em segundo lugar, porque eu não tenho que estar a ocultar coisas desfavoráveis à Missão. Eu relato as coisas, pronto!"

Mas os jornalistas estrangeiros eram a maior dor de cabeça da organização. Rui Marques recordaria que "os estrangeiros não eram suficientemente honestos para nós dizermos "vocês vêm à reunião, mas portam-se como participantes, não relatam para fora o que se disse aqui". A situação dos jornalistas foi fértil em mel entendidos. Não participando na Missão, iam a bordo do Lusitânia Expresso. Diferença subtil, mas fundamental, difícil de explicar aos passageiros mais devotos à causa timorense e, por vezes, à organização.

Rui Marques e companhia tinham preparado uma enecenação mediática e os media acorreram em peso, pelo menos do lado português. Só que os jornalistas exigiam, como contrapartida, a possibilidade de, em todos os momentos, terem acesso directo ao "plateau" principal. O que implicava não só ir a bordo do Lusitânia Expresso, mas sobretudo terem acesso a tudo o que aí se passava, incluindo, necessariamente, a ponte de comando, o local onde tudo ia acontecer nas horas decisivas. Para a organização, tal hipótese estava fora de questão.

Em Darwin, no dia da chegada dos participantes da "Missão Paz em Timor", Rui Marques deu "depois de muita insistência, e contrariado", nas palavras de um jornalista, a primeira conferência de imprensa na Austrália. Ao princípio da noite, na piscina do Mirambeena Hotel, o director da Missão dava conta dos mais variados pormenores aos jornalistas, sem, no entanto, se referir à questão do acesso destes à ponte de comando do navio. Era o enviado do "Expresso", Fernando Gaspar quem tocava na ferida: os jornalistas podiam, ou não, estar na ponte durante a viagem e no momento do (previsível) encontro com as fragatas indonésias?

O "não" seco de Rui Marques acordou os outros jornalistas para a questão. A posição da direcção era clara: os jornalistas não teriam, em qualquer momento, acesso à ponte de comando, que ficaria reservada aos membros da tripulação, à organização e aos convidados julgados necessários. Os jornalistas ficavam dependentes das informações dadas por alguém, possivelmente o próprio Rui Marques, que seria uma espécie de "oficial de ligação".

"O Fernando Gaspar mandou-se ao ar - recordaria João Pedro Henriques - e é claro que depois nós o apoiámos. Não íamos ficar ali quietinhos à espera que alguém nos dissesse o que estava a acontecer."

Para Fernando Gaspar, que era com Rui Araújo e José Manuel Lopes, um dos jornalistas portugueses com mais experiência a bordo, a questão do acesso à ponte era fulcral. "Se o 'Expresso' manda um jornalista, não é para saber as notícias em segunda mão, da mesma maneira que os outros jornalistas todos. Eu não faço cópias, quero é ver o que se está a passar, sentir, descrever a emoção, a tensão, os silêncios... Se, por acaso, o Rui Marques me impedisse de ficar na ponte (ele não podia; quem mandava no barco era o comandante...), se acontecesse eu não poder estar lá, eu vinha-me embora. Telefonava para o 'Expresso' e dizia que não tinha condições de trabalho."

O Sol nascia às 5h35. A fragata indonésia continuava, silenciosa, a controlar o Lusitânia. Os jornalistas que estavam na ponte, iam passando as poucas informações disponíveis aos seus colegas. Afinal, o acesso da Comunicação Social à ponte de comando não era um assunto encerrado como pretendia a direcção da Missão. Acabaram por ser os próprios jornalistas a organizar um sistema de 'pool' rotativa, com o aval do comandante Luís dos Santos.

Quando na conferência de imprensa em Darwin, Fernando Gaspar lançava essa questão, Rui Marques estava longe de imaginar que o enviado especial do 'Expresso' já tinha o seu problema resolvido desde Lisboa, graças a um acordo estabelecido com o armador do Lusitânia, que lhe garantia o direito de estar na ponte de comando durante toda a viagem. Uma garantia que nenhum outro jornalista fora capaz de assegurar.

Mas Fernando Gaspar pretendia ir ainda mais longe. Quando saiu de Lisboa, duas semanas antes da data prevista para a chegada do Lusitânia a Darwin, não era com a intenção de apalpar terreno na Austrália, como fizeram os outros jornalistas. O seu programa incluía o embarque no 'ferry' de Christmas Island, última escala, rodeada de grande secretismo, antes de Darwin. Só as autoridades australianas, com um insuperável gosto pela burocracia, foram capazes de estragar o exclusivo que o 'Expresso' tinha assegurado. Não obstante, a presença na ponte do seu enviado estava garantida. Fernando Gaspar tinha, inclusivamente, jantado com o armador do navio, para acerto de pormenores, poucas horas antes do diálogo com o director da Missão.

Se, nesta viagem, alguém soube jogar com o trunfo dos contactos e relações pessoais, foi o enviado do 'Expresso'. Os seus contactos prévios com o comandante, aliados a uma série de coincidências quase insignificantes, como eram o facto de o jornalista ter o mesmo sobrenome de um dos marinheiros, ou de ter nascido na mesma localidade que o piloto, um jovem saído havia pouco tempo da escola Náutica e que efectuava a sua primeira viagem transatlântica. Esse clima de quase cumplicidade, que foi na maioria das vezes mal interpretado pelos outros jornalistas, ajudou, também, na solução do problema do acesso à ponte. "Eu falei com o comandante, que me pergunta que solução é que se podia arranjar, ao que eu sugeri uma 'pool', em que eu estaria sempre, em virtude do nosso acordo anterior, mais um colega da rádio e um jornalista internacional".

Foi mais ou menos esse o sistema adoptado. Uma 'pool' de três jornalistas, rotativa de hora a hora, em que, quem estava na ponte se comprometia a relatar aos outros jornalistas o que fosse acontecendo. Fernando Gaspar chegou a incluir-se no segundo turno, após o que esperava aproveitar o sossego da primeira noite para dormir algumas horas. Pediu um calmante à médica de bordo, confiante que, se algo acontecesse, seria imediatamente acordado por alguém. No salão onde dormia grande parte dos passageiros, foi abordado por outros jornalistas. Vinham pedir-lhe para continuar na ponte a fazer o relatório de actividades. Pelos vistos, para além de ser jornalista de um semanário, o que o tirava da 'corrida à caxa', Fernando Gaspar tinha-se mostrado um grande contador de histórias. Como diria Manuel Acácio, "o Fernando revelou-se um excelente repórter de rádio!" O único problema era o calmante, que ameaçava atacar a qualquer momento. "Eu concordei, com a condição de eles irem falar com a médica e pedir qualquer coisa para anular o efeito do calmante". A dita médica concordou, a muito, muito custo.

Entre os homens da Comunicação Social, as relações pautavam-se pela entreajuda e colaboração. "Houve uma coisa que funcionou muito bem no Lusitânia Expresso, que foi o companheirismo. É óbvio que éramos concorrentes, mas houve sempre troca de informações, tanto no barco como em Darwin", consideraria Manuel Acácio, possivelmente, a pensar ainda no mau bocado que havia passado na segunda-feira anterior, durante a saída do Lusitânia.

Após quatro horas de espera, motivada pelo zelo exasperante das autoridades portuárias australianas, a "Missão Paz em Timor" preparava-se para partir rumo a Díli. "Atenção!... Avisam-se os senhores passageiros que vamos partir neste momento", ouve-se às 19h07. No cais, lançam-se os últimos olhares para o cacilheiro que prometia levar a esperança a Timor. Pouco tempo antes, ainda em terra, José Manuel Lopes entrevistava, para a Rádio Comercial, uma timorense que, com voz insegura, fazia a sua profissão de fé no barco prestes a partir. "Esperamos que esta Missão de grande envergadura atinja os seus objectivos. Sabemos que, mesmo que não consigam entrar em Timor, mesmo que tenham que voltar, algo há-de mudar", dizia. Era com estas pessoas que se faziam os directos de rádio para Portugal. Mas, no momento mais esperado, quando o Lusitânia deixava o porto, Manuel Acácio vivia "a maior frustração" da sua vida. O directo que devia entrar no noticiário das 9h30, hora de Lisboa, não chegou a acontecer. "O barco está a partir e a merda da parabólica não funciona! Só me faltava chorar... O Pedro Brinca arrancava os cabelos..." Enquanto os seus colegas da rádio entravam em directo nos noticiários da manhã, e João Pedro Henriques enviava para a Lusa, via telefone 'público', o retrato da partida, os homens da TSF faziam das tripas coração, tentando descobrir a causa da birra inesperada do seu telefone satélite. Os contactos com Lisboa, através dos meios de comunicação do navio, não davam conta dos últimos desenvolvimentos da Missão, mas serviam, tão só, para tentar resolver, via telefone, uma avaria numa parabólica. Tão cedo, Manuel Acácio não esqueceria aqueles momentos. "Estávamos completamente f..., chateados. Telefonámos para o técnico da TSF, a dizer que o Pedro Brinca já tinha feito tudo o que podia... e o telefone nunca funcionava... Finalmente chega a resposta de Lisboa: 'Dêem-lhe pontapés'. Nós pensámos 'o tipo está maluco!' 'Não, pode ser um mau contacto - responderam-nos - pode ser que resolva se baterem na parabólica. Pior do que está, não fica!' Agarrámos na parabólica, que era pesada, e deixámos cair quinze mil contos... Pum!... 'OK, outra vez'... Pum. O pessoal a bordo olhava para nós, a pensar que éramos doidinhos." O jornalista da ABC, perante o desespero dos enviados da TSF, põe à sua disposição o telemóvel com que estava a trabalhar. Os enviados da RDP, dão também algum tempo de antena a Manuel Acácio. "Então, estou em directo pelo telemóvel da ABC, quando entra o Pedro Brinca aos berros..." Os ditos pontapés tinham resolvido o problema.

Mas Darwin já lá ia e, na confusão, tinha-se perdido o relato que os jornais publicavam no dia seguinte - "O barco faz-se finalmente ao largo, rezadas as avés-marias e os padre-nossos no cais. O hino nacional português, começado do outro lado do Mundo por uma voz fraca de homem, a que se juntam muitas outras, põe lágrimas dentro do Lusitânia. É já o pôr do Sol e, desembaraçado o navio do cais, as pessoas correm ao longe, como se quisessem dar um salto para o convés", podia ler-se na página três do 'Público' de terça-feira, dia 10 de Março.

O Sol de quarta-feira já devolvia o azul ao Índico, o oceano que havia de ficar na memória de todos os passageiros do Lusitânia. Em Março, as tempestades são frequentes naquelas latitudes, o que ameaçava, a qualquer momento, tornar a viagem a Timor num monumental duche ou uma gigantesca montanha russa. A chuva violenta que surpreendera a largada de Darwin, ensombrara as expectativas até do mais optimista. E as tempestades acabaram por se suceder, mas sempre à distância. O que proporcionava "um espectáculo indescritível", contaria Manuel Acácio. "Estava um calor insuportável, cerca de 90% de humidade, sem chuva. Só que olhávamos para todos os lados, e o barco estava numa autêntica clareira, completamente cercado por tempestades... No céu, havia uma electricidade estática incrível, e a toda a volta as nuvens tocavam a água, completamente carregadas."

O mar, sempre calmo, "mar de estanho", era um mau presságio para os tripulantes. Para os jornalistas, havia sempre mais qualquer coisa a dizer sobre o mar, um quase inesgotável tema de reportagem. "Era um oceano muito calmo, quase um espelho, mas havia sempre medo de o barco apanhar uma tempestade", recordaria Rui Cardoso Martins. "Não nos cansávamos de dizer que o mar era lindíssimo. Para a rádio, dizíamos que era um 'mar de senhoras', eufemismo para a expressão utilizada pelos marinheiros - 'mar de putas', como Manuel Acácio havia de explicar.

O café e as bolachas tinham acompanhado os jornalistas portugueses durante toda a noite. Entre uma espreitadela para a fragata muda, ali ao pé, e um jogo de 'king', poucos resistiam aos encantos de uma bica bem puxada (à excepção dos que, terminantemente, não bebiam café, como era o caso de Rodrigues dos Santos). Ao menos provisões não faltavam. Durante o dia que o 'ferry' passou atracado no porto de Darwin, no Norte da Austrália, o porão tinha sido recheado com mantimentos suficientes para dez dias. Pelas contas de Rui Cardoso Martins, foram compradas "dezenas de quilos de carne, atum e sardinhas (260 latas portuguesas), mil salsichas, mil litros de leite, cinco mil de água potável, milhares de pacotinhos de fruta e frutos secos", para além do café (que "era bom, era café português") e das latas de cerveja, que tinha de ser tomada com gelo, única maneira de arrefecer as 'loirinhas' no calor insuportável do Índico.

Durante as últimas horas, para além das fragatas de Soeharto, as atenções tinham-se centrado no enviado da CNN. Nos poucos intervalos que tinha imposto ao seu sono dos justos, o australiano que cobria a viagem para a Cable News Network tinha conquistado a antipatia de todos os passageiros do Lusitânia. "O tipo passava o tempo a dormir e, de vez em quando inventava uma história qualquer. - havia de contar José Manuel Lopes - Dizia que estávamos a ser seguidos por um submarino, ou que alguns estudantes radicais se preparavam para tomar conta do navio, caso a organização fosse forçada a voltar para trás. E ainda por cima, ele estava a usar o nosso telefone satélite!... É claro que, às tantas, tivemos que lhe dizer que, ou ele deixava de inventar histórias, ou nós cortávamo-lhe as comunicações."

Quando, havia poucas horas, surgia o primeiro vaso de guerra indonésio, o homem da CNN ("um tipo insuportável", segundo Rui Marques) anunciava que o Lusitânia estava a ser seguido por duas fragatas. Na TSF, onde a emissão da CNN estava a ser atentamente acompanhada, cresce o receio pelo que possa acontecer.

- Não, só há uma fragata. Está, aqui, ao meu lado direito.

- Mas a CNN...

- Não ligues à CNN. Só há um barco, está aqui, eu estou a vê-lo!

Antes deste episódio, Manuel Acácio nem sonhava que alguma vez estaria a desmentir a cadeia de informação norte-americana. "E ali estava o puto da TSF, em directo, a chamar mentiroso ao grande repórter da CNN. Era uma coisa que eu nunca tinha pensado fazer!..."

A televisão de Ted Turner foi, segundo José Manuel Lopes, "um dos mitos que se desfez durante a Missão. Em boa verdade, o 'timing' da viagem não ajudou nada. A CNN, naquela noite de 10 para 11 de Março, estava mais preocupada com a 'super terça-feira' das primárias norte-americanas, do que com a viagem de um grupo de estudantes a uma terra de que poucos tinham ouvido falar. Talvez por isso, só um dos seus noticiários europeus abriu com a 'Missão Paz em Timor'. Mas nada justificava "as bacoradas" do repórter que, a bordo, tinha perfeito conhecimento do que se estava a passar.

Bem ou mal, a CNN era o único órgão de informação de peso internacional a lembrar-se do Lusitânia (o que levaria um membro da organização a declarar à jornalista do 'Independente', Maria Guiomar Lima, que "os doze minutos a abrir o noticiário da CNN pagaram todo o nosso esforço.") Quanto às grandes agências de notícias, preferiram ignorar, mais uma vez, Timor. Numa posição de total inflexibilidade, a Associated Press, proibiu o seu correspondente em Sidney de se deslocar a Darwin, nem para cobrir a saída do navio. Uma baixa importante, tanto mais, por se tratar de um jornalista muito sensibilizado para o drama dos timorenses. Mais dramática foi a situação do correspondente da Reuter. Já em Darwin, estava preparado e autorizado pela organização a embarcar no Lusitânia. A Reuter, no entanto, tentava dissuadir o seu correspondente, afirmando que não se responsabilizava pela sua segurança. Como este não desistia, disposto a embarcar por sua conta e risco, a agência de notícias não esteve com contemplações: se o jornalista embarcasse, era simplesmente despedido.

A Reuter levaria a melhor, enviando um jornalista pouco preparado para a questão de Timor. No cais, ficava mais "um autêntico militante da causa timorense, um tipo que chorou, quando soube que não podia embarcar", recordaria Rui Marques, acusando as grandes agências de notícias de censura no caso do Lusitânia, sob pressão dos respectivos governos.

"Não é uma questão de censura. O facto é que a questão de Timor não interessa a mais ninguém a não ser Portugal e eventualmente a Indonésia e alguns países da região". A opinião de Rui Araújo podia facilmente ser provada, pelo grande número de jornalistas australianos que seguiam a bordo. Na Austrália, "nunca desde o massacre, e desta vez de forma tão positiva, se falou tanto sobre os problemas de Timor leste", escrevia o correspondente do 'Diário de Notícias', António Sampaio.

Quanto à imprensa indonésia, mostrava um interesse discreto, talvez o interesse possível, em relação ao acontecimento. Nos últimos dias, tinham sido várias as referências, pouco elogiosas, de resto, feitas pelos jornais indonésios à Missão. O 'Jakarta Post', por exemplo, citando a agência oficial indonésia, 'Antara', dava ampla cobertura às posições oficiais, segundo as quais, o Lusitânia seria apreendido como um vulgar barco de pesca, caso tentasse furar o bloqueio que a Armada indonésia lhe preparava. Para a Comunicação Social indonésia, o Lusitânia era produto da conspiração de extremistas, dispostos até a fazer explodir o barco com o objectivo de culpabilizar o regime de Soeharto. por esse motivo, o 'ferry' ia carregado de explosivos, afirmava-se em Jacarta.

Duas jornalistas indonésias tinham pedido à direcção da Missão a necessária autorização para embarcar no Lusitânia. Dewi Anegraenni, correspondente na Austrália da revista semanal 'Tempo', com uma tiragem de setecentos e cinquenta mil exemplares, foi a única repórter indonésia autorizada a cobrir a viagem a sua Jacarta se referia como 'provokasi' - provocação. A jornalista do diário 'Kompas', a segunda a candidatar-se a um bilhete de embarque no Lusitânia, ficou em terra. Segundo a organização, a quota de jornalistas indonésios estava já preenchida por Dewi Anegraenni, pelo que o segundo pedido tinha que ser recusado. Desculpa que convenceu pouca gente. "Porque razão recusaram a jornalista indonésia com o pretexto de não haver espaço? Porque razão a organização não assumiu que não queria uma segunda jornalista indonésia a bordo?" - questões para as quais Rui Araújo não encontraria uma resposta satisfatória.

Da última página do 'Público' de quarta-feira, 11 de Março de 1992: "Luís dos Santos, o comandante, sobe à ponte de comando às 5h50 a sorrir e a bocejar. Sabe que outro navio, ainda à distância, se está a aproximar. Sabe também que vai ter, dentro de pouco tempo, todo o peso do Mundo nos ombros."

Por esta altura, já Rui Cardoso Martins tinha enviado para o 'Público' três peças: o relato das últimas 24 horas, o diário de bordo de alguns passageiros seleccionados (desde o general Eanes, a dirigentes de associações de estudantes, passando por Donaciano Gomes, o único timorense a bordo, rapidamente transformado em VIP pelos media), bem como um ponto da situação, às 4h45.

No seu artigo seguinte, escrito umas cinco horas depois, quando em Lisboa já passava da uma da manhã, podia ler-se:

"Às 6h35, quando Rui Marques, muito pálido, se desdobra em telefonemas para Portugal - Governo e Presidência - dentro da cabine, surge, na direcção precisa de Timor, um navio na linha do mar. As duas fragatas da marinha de Jacarta aproximam-se e comunicam em morse de luzes azuis."

Começava a tomar forma o bloqueio naval tantas vezes previsto. Aos poucos todos vão acordando e recapitulam mentalmente o que têm de fazer, caso a hipótese se concretize. Ninguém deve reagir se Rui Marques, o comandante ou outro passageiro for preso. Porque o seguro morreu de velho, todas as fotografias e vídeos disponíveis foram guardados em "lugar seguro", não fossem os indonésios ter curiosidade em ver o que tinha acontecido a bordo desde a tarde de segunda-feira.

Na ponte de comando, Fernando Gaspar continua de pedra e cal, o que parece incomodar profundamente o director da Missão. Ambos têm oportunidade para mais uma 'troca de mimos', sempre por causa do acordo, já nada secreto, que dava ao jornalista do 'Expresso' livre acesso à ponte. Rui Marques tenta, antes de mais, proteger dos ouvidos do jornalista os contactos telefónicos que mantém com Lisboa e com Darwin, onde estava instalado um 'gabinete de crise'. Mas o gravador de Fernando Gaspar continuava, impassível, a guardar tudo o que se passava na ponte.

"Seis e quarenta: aquela que fez companhia toda a noite ao Lusitânia ruma direito ao convés cheio de estudantes. Ramalho Eanes, uma lata de água na mão, vira-se para outro dos convidados da 'Missão Paz em Timor': - Padre Baptista! Vamo-nos vestir?

"Um couraçado vira, repentinamente, e um outro acelera, fazendo escolta a pouca distância ao navio português. A onze milhas das águas territoriais de Timor, a uma hora e um quarto de viagem, avista-se a ilha de Leti. Se nada acontecer, é dobrar a ponta Leste de Timor e rumar a Oeste, para Díli."

Nos directos radiofónicos, crescia a expectativa. Ensaduichado entre as duas fragatas, o Lusitânia continuava a sua marcha rumo a Timor. Longo percurso para um barco que era suposto fazer as ligações entre o Algarve e Marrocos, e que, alguns meses mais tarde estaria a navegar entre a Madeira e Porto Santo. O barco que, após uma viagem de mais de quarenta dias, tinha sido recebido em autêntica festa à chegada a Darwin.

Rui Cardoso Martins e Fernando Gaspar foram os primeiros jornalistas a avistar o Lusitânia Expresso. Enquanto no porto se preparava uma recepção eufórica, os dois jornalistas navegavam ao encontro do navio azul e amarelo. Esperaram catorze milhas ao largo, a bordo de uma pequena lancha, a 'Venceremos', de Wes Smith, membro do grupo 'Australians for Free East Timor". Durante as várias horas que passaram a vigiar o horizonte, os dois jornalistas tiveram oportunidade de conhecer melhor um dos australianos mais empenhados na causa timorense. Wes Smith já tinha sido preso perto de Timor, quando tentava levar medicamentos a Díli. Para estar naquele momento à espera do Lusitânia Expresso com um grupo de amigos, tinha gasto três mil dólares na reparação do motor da lancha. "Gostei muito de os conhecer. Sentia imenso respeito por eles, porque se aplicavam mais naquela causa do que os próprios timorenses", recordaria Rui Cardoso Martins.

Quando finalmente o 'peace boat' começou a distinguir-se no horizonte, houve uma explosão de alegria a bordo do 'ferry' Billy J, a abarrotar de portugueses e timorenses que quiseram também antecipar o encontro com o Lusitânia, apanhados entre o riso e as lágrimas. "dentro da pequena lancha, estranhamente, fez-se um profundo silêncio. Os olhos de Wes e John estão fixos e vermelhos quando levantam os braços. Depois, grita-se a favor do vento: "Capitão! Capitão Luís dos Santos! Fez boa viagem? Fardado de kaki, o comandante do navio sai da ponte de comando e acena com a tripulação", escrevia Rui Cardoso Martins nessa noite.

A primeira entrevista a Luís dos Santos seria, no entanto, para Manuel Acácio. Entre a multidão que, no cais, aclamava o Lusitânia, o enviado da TSF fazia, mais encontrão, menos encontrão, um directo para Lisboa, desta vez, com um telemóvel emprestado por um timorense. "Preferi ficar no porto porque era o sítio onde podia fazer mais coisas. Havia toda aquela emoção, aquele amor pela terra que as pessoas demonstravam - aquelas pessoas falam da casa que tinham, da praia onde iam, do velhinho que morava na aldeia não-sei-quantos e que lhes contava histórias... É uma saudade saudável, sem ser só aquela coisa saloia da bandeirinha, aquele 'patrioteirismo' balofo... Havia também os aborígenes, que, antes, tinham dado o melhor concerto que eu vi na minha vida."

Por entre a festa da chegada e a burocracia alfandegária, os jornalistas são impedidos de entrar no barco. "Eu queria saber coisas, como é óbvio. Como as autoridades não nos deixavam ir a bordo, eu penduro-me num cabo do navio, meio no cais, meio no Lusitânia". O telemóvel permitia a Manuel Acácio uma grande mobilidade, impossível com a parabólica. "Eu, que nem tenho um físico de Indiana Jones, estava a entrevistar o comandante, a ver quando é que caía, porque tinha sempre as pernas a abrir e a fechar, conforme o balanço do barco. Alguma vez eu pensava fazer uma coisa daquelas..."

"Lusitânia Expresso. This is Papa Kilo Alfa India, indonesian warship. I am patrolling this area. You are now in the indonesian territorial sea. I tell you directly to leave this area and proceed your sailing without delay to the high sea. "

Timor à vista, as fragatas de Jacarta rompiam a mudez impenetrável das últimas horas." A voz sem rosto que de repente entrou a bordo, pelo canal 16 em VHF, lembrava a de um comandante militar japonês nos últimos filmes de guerra: autoritária mas estridente, num inglês sincopado que, fossem outras as circunstâncias, daria vontade de rir", poderia ler-se no 'Expresso' dessa semana.

O espectáculo tinha começado. Fora de cena quem não é de cena. No palco, só o comandante Luís dos Santos, Rui Marques, o General Ramalho Eanes, o oficial de comunicações, o imediato, o marinheiro ao leme, dois repórteres e uma equipa de televisão.

Sem aviso, o Lusitânia Expresso tornou-se mais sufocante, as escadas mais íngremes, as portas mais apertadas, os corredores mais longos. Entre a ponte e a ré, onde estavam os telefones satélite, os jornalistas apertavam-se, apressavam-se, perdiam tempo e informações. As poucas vias de comunicação entre o Lusitânia e Lisboa estavam superlotadas. Os guarda-chuva das parabólicas iam sendo dirigidos por estudantes para um satélite que ninguém sabia onde estava. Do local onde estavam os telefones satélite, não era possível aos jornalistas acompanhar a evolução dos acontecimentos, o que dificultava grandemente o seu trabalho. Por esta altura, já a 'pool' rotativa que tão bem tinha resultado, se havia desfeito. Os jornalistas acotovelavam-se à entrada da ponte, acompanhando como podiam o diálogo de surdos entre o Lusitânia Expresso e a muralha flutuante que lhe barrava o caminho.

- Entendido! Quer, então, dizer que não tenho autorização para prosseguir a minha viagem para Díli, não é assim?

- Aqui, Papa Kilo Alfa India, navio de guerra indonésio. É isso mesmo. Aviso-o que não está autorizado a parar, ancorar, baixar botes ou entrar em porto no mar territorial indonésio.

A voz robótica que chegava ao rádio do Lusitânia, tinha em autoridade o que faltava à de Luís dos Santos em segurança. A tensão crescia a bordo, perante a autêntica forquilha que a Marinha indonésia preparara com todo o cuidado. "Tive medo. Aqueles eram os tipos que tinham feito os massacres, que tinham morto centenas de milhar de pessoas. Eram esses tipos que ali estavam...", recordaria Rui Cardoso Martins.

"A algumas dezenas de metros, fuzileiros indonésios equipados com coletes de salvação, estão a postos. A movimentação nas cobertas revela que a abordagem do Lusitânia Expresso está por um fio", podia ouvir-se na Rádio Comercial e na Antena 1, que faziam uma edição especial em simultâneo. Os dois jornalistas da RDP tinham encontrado a solução ideal para resolver o problema da distância entre a ponte, onde tudo acontecia, e a ré, de onde os directos eram enviados. Com um 'walkie talkie', José Manuel Lopes, fazia o relato dos acontecimentos a Carlos Barros que, por sua vez, estava em directo com as duas estações de rádio, em Lisboa. Um sistema que resultou na perfeição, a julgar pelos elogios que os restantes jornalistas fariam, terminada a Missão.

Para quem não tinha os preciosos meios técnicos, fossem as parabólicas, fossem os emissores de onda curta, as coisas revelavam-se mais complicadas. João Pedro Henriques sabia que em Lisboa, o chefe da secção Nacional da Lusa, João Fernandes, estava a trabalhar com as informações que as rádios iam transmitindo em directo, única forma de dispor sempre das últimas notícias. É que o enviado especial da Lusa, só podia mandar alguma peça quando chegava a sua vez, na interminável fila do 'telefone público'. "Eu tinha uma falta de meios aflitiva, que senti ainda mais no momento em que há contacto com as fragatas indonésias, quando cai toda a gente em cima dos telefones."

Na RTP, como na RDP, a 'Missão Paz em Timor' teve honras de transmissão simultânea nos dois canais. Sem possibilidade de transmitir imagens, o trabalho de Rui Araújo e José Rodrigues dos Santos era, como tinha acontecido durante toda a viagem, um autêntico relato radiofónico. A televisão portuguesa, ao contrário do que o semanário 'O Independente' havia anunciado, não transmitia em directo as imagens da guerra de nervos que se desenrolava à vista de Timor.

Segundo a edição de 6 de Março de 'O Independente', a RTP admitia contratar um helicóptero equipado com satélite para cobrir em directo as horas 'quentes' da Missão. "A transmissão em directo (...) depende ainda do preço do seguro pedido pela empresa proprietária do helicóptero, que é muito elevado. Também será necessário que haja boas condições de tempo, pois em épocas de monção, são frequentes as tempestades. Finalmente, é preciso um helicóptero com autonomia de voo capaz de cobrir as quatrocentas milhas entre Darwin, na Austrália, e as águas territoriais timorenses", contava Maria Guiomar de Lima.

Afinal, não houve imagens em directo, e a RTP teve de fazer uma emissão especial apenas com as vozes dos seus enviados e de Fernando Gaspar, 'caçado' à saída da ponte de comando pelo cameraman da RTP. O jornalista do 'Expresso' era, na altura, quem tinha uma melhor visão dos acontecimentos, depois de várias horas consecutivas na ponte.

O trabalho de Rodrigues dos Santos foi, talvez, o que mais deu que falar, alvo de inúmeros comentários dos seus colegas e da organização, na ressaca do 'show' mediático. "O Rui Araújo fez um trabalho emotivo, mas com informação, ao contrário do Rodrigues dos Santos, que era muito lamechas; o que é estranho, porque o José Rodrigues dos Santos até tem a escola da BBC, mas parece que não lhe serviu de muito...", consideraria o enviado da Lusa, numa opinião comum a grande parte dos jornalistas. Para Rui Marques, "com essa história de não saber gerir a informação convenientemente, as pessoas que seguiam tudo pela televisão foram tendo uma série de informações erradas. O Rodrigues dos Santos foi criando um limiar de expectativa tal, que parecia que as fragatas iam atirar no momento seguinte."

Para o jornalista do Canal 1, as críticas não tinham razão de ser. "Eu noticiei o que se estava a passar. Se havia uma situação de grande tensão, se havia o risco de o barco ser abordado, era isso que eu dizia."

- Papa Kilo Alfa India, aqui o Lusitânia Expresso. Estou a parar os meus motores, está a ouvir-me?

- Aqui, papa Kilo Alfa India. Pare já os seus motores.

- Sim, senhor. Presumo que estou a falar com o oficial comandante, certo?

- Sim, aqui fala o oficial comandante.

- Tenho, aqui, o fretador responsável por esta missão. Ele pede-me que lhe pergunte se poderia dar-lhe uma palavra. Será possível?

- Volto a repetir que está agora nas águas territoriais indonésias. ordeno-lhe directamente que abandone esta área sem demora e que prossiga a rota para o alto mar de acordo com as linhas normais de navegação internacionais, mais a Sul.

- Afirmativo, recebemos correctamente a sua mensagem e actuaremos de acordo com as suas ordens.

O barco começa a virar para bombordo, Timor vai ficar para trás. Já todos tinham consciência de que as flores do Lusitânia não iam chegar a Santa cruz. Como tinha sido previsto tantas vezes.

O GPS (posicionador por satélite) de bordo indica que a 'Missão Paz em Timor' tinha parado a 8º, 31' e 16" de latitude Sul e a 127º, 36' e 58" de longitude Leste.

Para os jornalistas, perdia-se também a oportunidade de pisar uma terra de que muitos falavam, mas que poucos conheciam. Dos que iam a bordo, só Rui Araújo já tinha entrado em Timor. Dez anos antes, após longos meses de negociações com as autoridades indonésias, era o primeiro jornalista português a ver de perto o sofrimento de um povo esquecido. "Naquela altura, o clima em Díli não era muito saudável. Até para comprar um maço de tabaco a 20 metros do hotel, éramos acompanhados. Muita gente foi proibida de falar connosco, e os que falavam, depois, eram interrogados pela Intel, a polícia secreta indonésia. Apesar daquele clima de medo, houve duas pessoas que nos passaram dois documentos. Um, foi entregue às escondidas ao Nuno Jorge, o cameraman que ia comigo, era um bilhete a dar-nos as boas vindas; o outro, foi-me entregue numa barraca, por um tipo de quem eu nem sequer via a cara, que me dá um encontrão e me mete na mão uma extensa lista com 114 nomes de pessoas desaparecidas, com a indicação da idade, localidade de origem, residência e profissão." A reportagem que resultou dessa viagem, se teve grande repercussão em Portugal, funcionando como um acordar das consciências adormecidas, também deu frutos em Jacarta, que achou por bem considerar Rui Araújo (ndr: durante 9 anos)'persona non grata' por aquelas bandas.

Mesmo conhecendo o mau génio dos indonésios, Manuel Acácio estava disposto a ficar em Timor, caso o Lusitânia Expresso atracasse em Díli. "Eu e o Pedro brinca, muito provavelmente não tínhamos voltado ao navio. Em Lisboa, falámos com o David Borges e colocámos a seguinte questão: perdemos o barco ou não? Por um lado, não fazíamos a reportagem da saída do barco, mas, por outro, podia dar uma boa história... ou então, seríamos presos, e perdíamos a reportagem toda..."

Para o caso de ficarem em Timor, os enviados da TSF aprenderam um vocabulário básico ("até os palavrões") em tetum. "temos fome", "temos sede", "somos amigos do povo de Timor", "levem-nos a tal sítio" e, fundamental, "escondam-nos depressa", foram alguns dos rudimentos de tetum com que Manuel Acácio e o seu técnico iam armados para sobreviver clandestinamente em Timor.

"Não chegámos a Timor, mas cumprimos a nossa missão. Fizemos recolocar Timor na agenda internacional. Nestes últimos dias, fizemos tudo o que estava ao nosso alcançe. Lutámos até ao fim. Demos um abraço ao povo de Timor e todos os timorenses que estavam ali. Hoje, é o primeiro dia da nova missão. Vamos a isto".

As palavras de Rui Marques, no convés do navio, eram acompanhadas pelo zumbir dos helicópteros indonésios, recebidos pelos estudantes com um "V" da vitória possível. José Manuel Lopes pintava assim o quadro: "Cotovelos cravados no corrimão da ré, dedos cruzados à frente da boca, olhos perdidos entre o horizonte e o aço das fragatas, Rui Marques via o sonho terminar. Nas suas costas, a mão do padre José Baptista era o seu conforto."

Muitos jornalistas, embora fossem ali apenas espectadores, não deixavam de lamentar o fim antecipado da Missão. Todos queriam chegar a Timor, embora poucos acreditassem na hipótese. Mais discutível, era a decisão do comandante de acatar as ordens indonésias "tão prontamente, depois de três meros avisos", como diria Rui Araújo.

Nem a homenagem aos timorenses levou muito tempo. Rezadas as bem aventuranças do Evangelho segundo São Mateus, lançadas ao mar as flores vermelhas e brancas, o Lusitânia rumava de novo para a Austrália, na rota de um helicóptero que devia recolher as imagens captadas a bordo para que fossem transmitidas o mais rapidamente possível. No circuito internacional de televisão, era preciso antecipar-se à história contada pela Indonésia.

O Lusitânia acelerou, mas acabou por se desencontrar do helicóptero.

Oito meses depois, Rui Araújo seria autorizado a voltar a Timor, na sequência da prisão do líder da resistência, Xanana Gusmão.

Em Díli, já ninguém falava do Lusitânia Expresso.

Já ninguém se lembrava de um barco que tinha parado, ali tão perto, a três fragatas de distância.

Carlos Filipe Santos Costa - Estudante de Comunicação Social

OS DIAS DO LUSITÂNIA

contados por um estudante português

"Missão Paz em Timor" permitiu a um jovem estudante português, Carlos Filipe Santos Costa, relatar o quotidiano dos repórteres a bordo do Lusitânia Expresso entre Darwin e Timor... onde nunca chegou por causa da prepotência de uns e da cobardia dos outros.

- Está aqui um navio, ponham-me em directo!

- Está tudo bem com vocês?

- Sim, está tudo bem, mete-me no ar...

- Mete-me no ar, f....! Eu tenho que contar isto, está cá um navio!....

- Mas não há problema com vocês?

A calma nocturna do Índico tinha a sua perfeita antítese do outro lado do Mundo, no nervosismo que se abatera sobre os estúdios da TSF, em Lisboa.

Torre 2 das Amoreiras, sexto andar, sala 4. Ainda há pouco acabou o noticiário das 13 horas que, mais uma vez, abriu com notícias do Lusitânia Expresso, um "cacilheiro melhorado", como alguns chamavam ao "ferry" que então se aproximava do mar de Timor.

De bordo do navio amarelo e azul, registado na Madeira, o enviado especial da "Rádio Jornal", Manuel Acácio, descreveu um princípio de noite quase igual à anterior. Depois de uma refeição de jardineira enlatada, a calma reina a bordo.

Por volta das 10 da noite (hora de Darwin, cerca das 12h30 em Lisboa), o Lusitânia encontra-se a oitenta e quatro milhas do limite das águas territoriais de Timor Leste.

O capitão do barco, Luís dos Santos, previa que a Marinha indonésia se apresentasse ao Lusitânia daí a umas cinco horas, quando naquelas paragens fosse já madrugada de quarta-feira, dia 11 de Março de 1992.

Por enquanto, viviam-se as últimas duas horas de um dia sem incidentes, apenas marcado pela ansiedade e expectativa que sempre acompanha os grandes momentos. Uma tempestade de cinco milhas passa, como tantas outras no último dia e meio, sem incomodar o navegar pachorrento do Lusitânia, que de Expresso só tem o nome.

Um navio não identificado é denunciado às 22h55 pelo radar de bordo. Vem a uma velocidade de 12 nós, no sentido contrário ao do "peace boat", como era conhecido o Lusitânia Expresso na terra dos cangurus.

A princípio, ninguém sabe se o navio, longínquo e silencioso, será um vaso de guerra. Durante cerca de meia hora, a dúvida mantém-se, pelo menos até ao nascer do dia.

- Primeiro, vimos uma luz muito, muito longe, à nossa frente. Esse barco depois passou pela nossa esquerda, fez um grande círculo e pôs-se ao nosso lado, recordaria mais tarde, Rui Araújo, enviado especial do Canal 2 da RTP.

O seu colega do primeiro canal, José Rodrigues dos Santos, tinha, pouco tempo antes, entrado em directo para o "Jornal da Tarde". As luzes que surgiam ao longe obrigaram-no, como aos repórteres da rádio, a estabelecer novo contacto com Portugal. Enquanto Manuel Acácio tentava convencer os seus colegas da TSF que ninguém a bordo do Lusitânia corria perigo pelo facto de terem surgido três luzes no horizonte, Rodrigues dos Santos entrava, pela segunda vez, em directo com o noticiário da RTP Porto.

Quinze minutos depois, não havia qualquer dúvida quanto à natureza da embarcação. A velocidade a que se deslocava, o silêncio, as três luzes características das fragatas de guerra. Tudo confirmava a antecipação do encontro do "barco da Paz" com a Marinha indonésia.

E a antecipação do circo mediático.

Dos cinquenta e oito jornalistas a bordo, vinte e um seriam os olhos e os ouvidos de Portugal, atentos a todos os pormenores das horas decisivas da "Missão Paz em Timor".

Anunciada dois meses antes, a 9 de Janeiro, a Missão era, até ver, o grande acontecimento mediático do ano, em Portugal.

A colocação de uma coroa de flores em Díli, no local onde, em Novembro de 1991, tinham sido massacrados dezenas de timorenses pelas tropas indonésias, era a finalidade da "Missão Paz em Timor", organizada por Rui Marques, vinte e oito anos, director da revista "Forum Estudante". Se a finalidade seria alcançada, as próximas horas o diriam.

O objectivo da iniciativa, esse, já tinha, de alguma forma, sido atingido.

"O objectivo era fazer passar uma mensagem - diria mais tarde Rui Marques - com uma acção que tinha todos os componentes que qualquer jornalista sabe que resultam para ser notícia".

Ficava tudo em família. Um acontecimento destinado aos media, programado por jornalistas. "O Lusitânia Expresso não podia ter sido pensado por outras pessoas que não os jornalistas. Toda a lógica é de cabeças viciadas - e Rui Marques ri-se da sua expressão - na forma de pensar do jornalista. A nossa preocupação era, depois de Santa Cruz, não deixar Timor cair no esquecimento."

Rui Marques rodeou-se de vários conselheiros na preparação do pseudo-acontecimento. Alguns, como os jornalistas Cáceres Monteiro, Fernando Madrinha e Paulo Veiga, convidados para a organização, acompanharam a Missão até à sua última base, Darwin. Outros, mantiveram-se nos bastidores. Roberto Carneiro, André Gonçalves Pereira, António Pinto Leite, Paulo Portas, Virgílio de Carvalho, foram alguns dos cérebros por detrás da "Missão Paz em Timor".

Rui Marques acompanhava, na minúscula ponte de comando, a progressão da fragata indonésia. No convés, os estudantes de vinte e três países e os convidados que aceitaram emprestar algum do seu brilho ao acontecimento, acotovelaram-se para ver os pontos luminosos, distinguindo, na escuridão, apenas os contornos do vaso de guerra.

À ré, onde estavam montadas as parabólicas, os repórteres contavam a Portugal o que se passava. José Manuel Lopes, da Rádio Comercial, e Carlos Barros, da Antena 1, partilhavam a "vaquinha", o telefone satélite mais popular da Missão, pequenino, com quatro patinhas que lhe valeram o apelido tão pitoresco. Para além deste, só havia mais um telefone satélite privado. Era o da TSF, o fiel amigo de Manuel Acácio e do seu técnico, Pedro Brinca. O Correio da manhã Rádio, com um emissor de ondas curtas a transmitir para Darwin e, daí, para Lisboa, fechava o grupo dos sortudos que dispunham de meios de comunicação próprios.

Os restantes jornalistas tinham que utilizar os telefones "públicos" instalados pela organização da viagem. Dois telefones satélite que ninguém se lembra de ter visto funcionar em simultâneo durante toda a viagem. As avarias sucediam-se e os repórteres menos abastados tinham de se inscrever e aguardar a sua vez em filas de espera que pareciam intermináveis, para poderem enviar o seu trabalho para Lisboa.

Passada a agitação inicial provocada pela fragata indonésia, devido mais à curiosidade do que ao nervosismo, os jornalistas portugueses eram os únicos passageiros a resistir ao apelo de algumas horas de sono.

"A fragata indonésia está mesmo ao lado, não despega, mas poucos lhe dão atenção, caídos pelos bancos e pelo chão, na luz eléctrica das salas, em sacos cama coloridos onde ninguém se enfia, rabos para o ar, barrrigas na horizontal, joelhos meio dobrados no bom sono dos inocentes. Aqui e ali, perto dos guarda-chuvas das parabólicas e rádios de onda curta, há focos de jornalistas com olheiras. Perderam o olhar frenético e vão emitindo como podem os directos que se esperam em Portugal - um país alarmado, por enquanto, sem motivo", escrevia Rui Cardoso Martins, o enviado do jornal "Público". Eram 4h45 da madrugada, as águas de Timor estavam ainda a vinte e nove milhas.

Em Lisboa, passava das sete da noite. Na Quinta do Lambert, no "Público", Adelino Gomes, um dos jornalistas portugueses com maior ligação a Timor, acompanhava o trabalho de Rui Cardoso Martins. Nessa noite de Março, a edição do jornal vai fechar mais tarde do que habitualmente. Lusitânia Expresso oblige.

A bordo, os jornalistas estrangeiros dormem quase todos. Não é esperado qualquer desenvolvimento para as próximas horas. Propositadamente, o Lusitânia mantém a velocidade, de forma a só chegar à zona de risco, o limite de 12 milhas das águas territoriais de Timor Leste, às sete da manhã. Se outra razão não houvesse para esta precaução, a luz do dia era fundamental para que as equipas de televisão pudessem colher boas imagens do encontro com a Marinha indonésia. ("A luz seria um elemento essencial para que resultasse o efeito mediático: precisávamos de boas imagens", escreveria Rui Marques, alguns dias depois).

Embora ninguém pudesse, nesta altura, prever o que iria acontecer nas próximas horas, o mais provável era que o barco nunca chegasse a Timor. Nas inúmeras reuniões de preparação de cenários ("este projecto deve ter sido a iniciativa com mais reuniões per capita", segundo a "Forum Estudante" do mês seguinte), a hipótese do bloqueio indonésio tinha sido eleita por 95%.

Estas reuniões, incontáveis desde a partida de Lisboa até ao fim da Missão, funcionavam como uma espécie de terapia de grupo, ou catarse colectiva. Algumas eram fechadas à Comunicação Social, o que causou algum mal estar, sobretudo entre os jornalistas estrangeiros. Não que os repórteres estivessem preocupados com o desfecho da Missão, ou com os perigos que esta lhes pudesse reservar (o enviado especial do "Jornal de Notícias" foi, de resto, o único a arranjar um impedimento de última hora para não embarcar, o que não deixou de inspirar alguns comentários mais sarcásticos). O motivo pelo qual ali estavam era profissional, pelo que estavam preparados para qualquer eventualidade. Também por motivos profissionais, reclamavam o direito de assistir às reuniões de preparação de acções futuras. O que, segundo a organização, podia pôr em risco uma certa confidencialidade. "Era um pouco como transmitir, num cenário de guerra, segredos ao inimigo", reconhece José Manuel Lopes, o homem que, então na Rádio Comercial, e mais tarde no CMR, tratava das questões de Timor.

A questão dos "segredos de Estado" não sensibilizava todos os jornalistas na mesma medida. "Isso não era problema meu. Eu relatava o que tivesse de relatar", diria o apresentador do telejornal do Canal 1, Rodrigues dos Santos. Já o tinha demonstrado em Darwin, quando um senador australiano que fazia parte da Missão, convocou os jornalistas portugueses para lhes pedir que não transmitissem notícias desfavoráveis à causa. Uma jornalista indonésia que assistia ao encontro foi expulsa da sala, o que provocou o protesto de Rodrigues dos Santos, bem como dos restantes enviados portugueses. O jornalista da RTP recusou-se, então, a continuar no encontro, "primeiro porque a jornalista indonésia tinha o direito de estar ali, e em segundo lugar, porque eu não tenho que estar a ocultar coisas desfavoráveis à Missão. Eu relato as coisas, pronto!"

Mas os jornalistas estrangeiros eram a maior dor de cabeça da organização. Rui Marques recordaria que "os estrangeiros não eram suficientemente honestos para nós dizermos "vocês vêm à reunião, mas portam-se como participantes, não relatam para fora o que se disse aqui". A situação dos jornalistas foi fértil em mel entendidos. Não participando na Missão, iam a bordo do Lusitânia Expresso. Diferença subtil, mas fundamental, difícil de explicar aos passageiros mais devotos à causa timorense e, por vezes, à organização.

Rui Marques e companhia tinham preparado uma enecenação mediática e os media acorreram em peso, pelo menos do lado português. Só que os jornalistas exigiam, como contrapartida, a possibilidade de, em todos os momentos, terem acesso directo ao "plateau" principal. O que implicava não só ir a bordo do Lusitânia Expresso, mas sobretudo terem acesso a tudo o que aí se passava, incluindo, necessariamente, a ponte de comando, o local onde tudo ia acontecer nas horas decisivas. Para a organização, tal hipótese estava fora de questão.

Em Darwin, no dia da chegada dos participantes da "Missão Paz em Timor", Rui Marques deu "depois de muita insistência, e contrariado", nas palavras de um jornalista, a primeira conferência de imprensa na Austrália. Ao princípio da noite, na piscina do Mirambeena Hotel, o director da Missão dava conta dos mais variados pormenores aos jornalistas, sem, no entanto, se referir à questão do acesso destes à ponte de comando do navio. Era o enviado do "Expresso", Fernando Gaspar quem tocava na ferida: os jornalistas podiam, ou não, estar na ponte durante a viagem e no momento do (previsível) encontro com as fragatas indonésias?

O "não" seco de Rui Marques acordou os outros jornalistas para a questão. A posição da direcção era clara: os jornalistas não teriam, em qualquer momento, acesso à ponte de comando, que ficaria reservada aos membros da tripulação, à organização e aos convidados julgados necessários. Os jornalistas ficavam dependentes das informações dadas por alguém, possivelmente o próprio Rui Marques, que seria uma espécie de "oficial de ligação".

"O Fernando Gaspar mandou-se ao ar - recordaria João Pedro Henriques - e é claro que depois nós o apoiámos. Não íamos ficar ali quietinhos à espera que alguém nos dissesse o que estava a acontecer."

Para Fernando Gaspar, que era com Rui Araújo e José Manuel Lopes, um dos jornalistas portugueses com mais experiência a bordo, a questão do acesso à ponte era fulcral. "Se o 'Expresso' manda um jornalista, não é para saber as notícias em segunda mão, da mesma maneira que os outros jornalistas todos. Eu não faço cópias, quero é ver o que se está a passar, sentir, descrever a emoção, a tensão, os silêncios... Se, por acaso, o Rui Marques me impedisse de ficar na ponte (ele não podia; quem mandava no barco era o comandante...), se acontecesse eu não poder estar lá, eu vinha-me embora. Telefonava para o 'Expresso' e dizia que não tinha condições de trabalho."

O Sol nascia às 5h35. A fragata indonésia continuava, silenciosa, a controlar o Lusitânia. Os jornalistas que estavam na ponte, iam passando as poucas informações disponíveis aos seus colegas. Afinal, o acesso da Comunicação Social à ponte de comando não era um assunto encerrado como pretendia a direcção da Missão. Acabaram por ser os próprios jornalistas a organizar um sistema de 'pool' rotativa, com o aval do comandante Luís dos Santos.

Quando na conferência de imprensa em Darwin, Fernando Gaspar lançava essa questão, Rui Marques estava longe de imaginar que o enviado especial do 'Expresso' já tinha o seu problema resolvido desde Lisboa, graças a um acordo estabelecido com o armador do Lusitânia, que lhe garantia o direito de estar na ponte de comando durante toda a viagem. Uma garantia que nenhum outro jornalista fora capaz de assegurar.

Mas Fernando Gaspar pretendia ir ainda mais longe. Quando saiu de Lisboa, duas semanas antes da data prevista para a chegada do Lusitânia a Darwin, não era com a intenção de apalpar terreno na Austrália, como fizeram os outros jornalistas. O seu programa incluía o embarque no 'ferry' de Christmas Island, última escala, rodeada de grande secretismo, antes de Darwin. Só as autoridades australianas, com um insuperável gosto pela burocracia, foram capazes de estragar o exclusivo que o 'Expresso' tinha assegurado. Não obstante, a presença na ponte do seu enviado estava garantida. Fernando Gaspar tinha, inclusivamente, jantado com o armador do navio, para acerto de pormenores, poucas horas antes do diálogo com o director da Missão.

Se, nesta viagem, alguém soube jogar com o trunfo dos contactos e relações pessoais, foi o enviado do 'Expresso'. Os seus contactos prévios com o comandante, aliados a uma série de coincidências quase insignificantes, como eram o facto de o jornalista ter o mesmo sobrenome de um dos marinheiros, ou de ter nascido na mesma localidade que o piloto, um jovem saído havia pouco tempo da escola Náutica e que efectuava a sua primeira viagem transatlântica. Esse clima de quase cumplicidade, que foi na maioria das vezes mal interpretado pelos outros jornalistas, ajudou, também, na solução do problema do acesso à ponte. "Eu falei com o comandante, que me pergunta que solução é que se podia arranjar, ao que eu sugeri uma 'pool', em que eu estaria sempre, em virtude do nosso acordo anterior, mais um colega da rádio e um jornalista internacional".

Foi mais ou menos esse o sistema adoptado. Uma 'pool' de três jornalistas, rotativa de hora a hora, em que, quem estava na ponte se comprometia a relatar aos outros jornalistas o que fosse acontecendo. Fernando Gaspar chegou a incluir-se no segundo turno, após o que esperava aproveitar o sossego da primeira noite para dormir algumas horas. Pediu um calmante à médica de bordo, confiante que, se algo acontecesse, seria imediatamente acordado por alguém. No salão onde dormia grande parte dos passageiros, foi abordado por outros jornalistas. Vinham pedir-lhe para continuar na ponte a fazer o relatório de actividades. Pelos vistos, para além de ser jornalista de um semanário, o que o tirava da 'corrida à caxa', Fernando Gaspar tinha-se mostrado um grande contador de histórias. Como diria Manuel Acácio, "o Fernando revelou-se um excelente repórter de rádio!" O único problema era o calmante, que ameaçava atacar a qualquer momento. "Eu concordei, com a condição de eles irem falar com a médica e pedir qualquer coisa para anular o efeito do calmante". A dita médica concordou, a muito, muito custo.

Entre os homens da Comunicação Social, as relações pautavam-se pela entreajuda e colaboração. "Houve uma coisa que funcionou muito bem no Lusitânia Expresso, que foi o companheirismo. É óbvio que éramos concorrentes, mas houve sempre troca de informações, tanto no barco como em Darwin", consideraria Manuel Acácio, possivelmente, a pensar ainda no mau bocado que havia passado na segunda-feira anterior, durante a saída do Lusitânia.

Após quatro horas de espera, motivada pelo zelo exasperante das autoridades portuárias australianas, a "Missão Paz em Timor" preparava-se para partir rumo a Díli. "Atenção!... Avisam-se os senhores passageiros que vamos partir neste momento", ouve-se às 19h07. No cais, lançam-se os últimos olhares para o cacilheiro que prometia levar a esperança a Timor. Pouco tempo antes, ainda em terra, José Manuel Lopes entrevistava, para a Rádio Comercial, uma timorense que, com voz insegura, fazia a sua profissão de fé no barco prestes a partir. "Esperamos que esta Missão de grande envergadura atinja os seus objectivos. Sabemos que, mesmo que não consigam entrar em Timor, mesmo que tenham que voltar, algo há-de mudar", dizia. Era com estas pessoas que se faziam os directos de rádio para Portugal. Mas, no momento mais esperado, quando o Lusitânia deixava o porto, Manuel Acácio vivia "a maior frustração" da sua vida. O directo que devia entrar no noticiário das 9h30, hora de Lisboa, não chegou a acontecer. "O barco está a partir e a merda da parabólica não funciona! Só me faltava chorar... O Pedro Brinca arrancava os cabelos..." Enquanto os seus colegas da rádio entravam em directo nos noticiários da manhã, e João Pedro Henriques enviava para a Lusa, via telefone 'público', o retrato da partida, os homens da TSF faziam das tripas coração, tentando descobrir a causa da birra inesperada do seu telefone satélite. Os contactos com Lisboa, através dos meios de comunicação do navio, não davam conta dos últimos desenvolvimentos da Missão, mas serviam, tão só, para tentar resolver, via telefone, uma avaria numa parabólica. Tão cedo, Manuel Acácio não esqueceria aqueles momentos. "Estávamos completamente f..., chateados. Telefonámos para o técnico da TSF, a dizer que o Pedro Brinca já tinha feito tudo o que podia... e o telefone nunca funcionava... Finalmente chega a resposta de Lisboa: 'Dêem-lhe pontapés'. Nós pensámos 'o tipo está maluco!' 'Não, pode ser um mau contacto - responderam-nos - pode ser que resolva se baterem na parabólica. Pior do que está, não fica!' Agarrámos na parabólica, que era pesada, e deixámos cair quinze mil contos... Pum!... 'OK, outra vez'... Pum. O pessoal a bordo olhava para nós, a pensar que éramos doidinhos." O jornalista da ABC, perante o desespero dos enviados da TSF, põe à sua disposição o telemóvel com que estava a trabalhar. Os enviados da RDP, dão também algum tempo de antena a Manuel Acácio. "Então, estou em directo pelo telemóvel da ABC, quando entra o Pedro Brinca aos berros..." Os ditos pontapés tinham resolvido o problema.

Mas Darwin já lá ia e, na confusão, tinha-se perdido o relato que os jornais publicavam no dia seguinte - "O barco faz-se finalmente ao largo, rezadas as avés-marias e os padre-nossos no cais. O hino nacional português, começado do outro lado do Mundo por uma voz fraca de homem, a que se juntam muitas outras, põe lágrimas dentro do Lusitânia. É já o pôr do Sol e, desembaraçado o navio do cais, as pessoas correm ao longe, como se quisessem dar um salto para o convés", podia ler-se na página três do 'Público' de terça-feira, dia 10 de Março.

O Sol de quarta-feira já devolvia o azul ao Índico, o oceano que havia de ficar na memória de todos os passageiros do Lusitânia. Em Março, as tempestades são frequentes naquelas latitudes, o que ameaçava, a qualquer momento, tornar a viagem a Timor num monumental duche ou uma gigantesca montanha russa. A chuva violenta que surpreendera a largada de Darwin, ensombrara as expectativas até do mais optimista. E as tempestades acabaram por se suceder, mas sempre à distância. O que proporcionava "um espectáculo indescritível", contaria Manuel Acácio. "Estava um calor insuportável, cerca de 90% de humidade, sem chuva. Só que olhávamos para todos os lados, e o barco estava numa autêntica clareira, completamente cercado por tempestades... No céu, havia uma electricidade estática incrível, e a toda a volta as nuvens tocavam a água, completamente carregadas."

O mar, sempre calmo, "mar de estanho", era um mau presságio para os tripulantes. Para os jornalistas, havia sempre mais qualquer coisa a dizer sobre o mar, um quase inesgotável tema de reportagem. "Era um oceano muito calmo, quase um espelho, mas havia sempre medo de o barco apanhar uma tempestade", recordaria Rui Cardoso Martins. "Não nos cansávamos de dizer que o mar era lindíssimo. Para a rádio, dizíamos que era um 'mar de senhoras', eufemismo para a expressão utilizada pelos marinheiros - 'mar de putas', como Manuel Acácio havia de explicar.

O café e as bolachas tinham acompanhado os jornalistas portugueses durante toda a noite. Entre uma espreitadela para a fragata muda, ali ao pé, e um jogo de 'king', poucos resistiam aos encantos de uma bica bem puxada (à excepção dos que, terminantemente, não bebiam café, como era o caso de Rodrigues dos Santos). Ao menos provisões não faltavam. Durante o dia que o 'ferry' passou atracado no porto de Darwin, no Norte da Austrália, o porão tinha sido recheado com mantimentos suficientes para dez dias. Pelas contas de Rui Cardoso Martins, foram compradas "dezenas de quilos de carne, atum e sardinhas (260 latas portuguesas), mil salsichas, mil litros de leite, cinco mil de água potável, milhares de pacotinhos de fruta e frutos secos", para além do café (que "era bom, era café português") e das latas de cerveja, que tinha de ser tomada com gelo, única maneira de arrefecer as 'loirinhas' no calor insuportável do Índico.

Durante as últimas horas, para além das fragatas de Soeharto, as atenções tinham-se centrado no enviado da CNN. Nos poucos intervalos que tinha imposto ao seu sono dos justos, o australiano que cobria a viagem para a Cable News Network tinha conquistado a antipatia de todos os passageiros do Lusitânia. "O tipo passava o tempo a dormir e, de vez em quando inventava uma história qualquer. - havia de contar José Manuel Lopes - Dizia que estávamos a ser seguidos por um submarino, ou que alguns estudantes radicais se preparavam para tomar conta do navio, caso a organização fosse forçada a voltar para trás. E ainda por cima, ele estava a usar o nosso telefone satélite!... É claro que, às tantas, tivemos que lhe dizer que, ou ele deixava de inventar histórias, ou nós cortávamo-lhe as comunicações."

Quando, havia poucas horas, surgia o primeiro vaso de guerra indonésio, o homem da CNN ("um tipo insuportável", segundo Rui Marques) anunciava que o Lusitânia estava a ser seguido por duas fragatas. Na TSF, onde a emissão da CNN estava a ser atentamente acompanhada, cresce o receio pelo que possa acontecer.

- Não, só há uma fragata. Está, aqui, ao meu lado direito.

- Mas a CNN...

- Não ligues à CNN. Só há um barco, está aqui, eu estou a vê-lo!

Antes deste episódio, Manuel Acácio nem sonhava que alguma vez estaria a desmentir a cadeia de informação norte-americana. "E ali estava o puto da TSF, em directo, a chamar mentiroso ao grande repórter da CNN. Era uma coisa que eu nunca tinha pensado fazer!..."

A televisão de Ted Turner foi, segundo José Manuel Lopes, "um dos mitos que se desfez durante a Missão. Em boa verdade, o 'timing' da viagem não ajudou nada. A CNN, naquela noite de 10 para 11 de Março, estava mais preocupada com a 'super terça-feira' das primárias norte-americanas, do que com a viagem de um grupo de estudantes a uma terra de que poucos tinham ouvido falar. Talvez por isso, só um dos seus noticiários europeus abriu com a 'Missão Paz em Timor'. Mas nada justificava "as bacoradas" do repórter que, a bordo, tinha perfeito conhecimento do que se estava a passar.

Bem ou mal, a CNN era o único órgão de informação de peso internacional a lembrar-se do Lusitânia (o que levaria um membro da organização a declarar à jornalista do 'Independente', Maria Guiomar Lima, que "os doze minutos a abrir o noticiário da CNN pagaram todo o nosso esforço.") Quanto às grandes agências de notícias, preferiram ignorar, mais uma vez, Timor. Numa posição de total inflexibilidade, a Associated Press, proibiu o seu correspondente em Sidney de se deslocar a Darwin, nem para cobrir a saída do navio. Uma baixa importante, tanto mais, por se tratar de um jornalista muito sensibilizado para o drama dos timorenses. Mais dramática foi a situação do correspondente da Reuter. Já em Darwin, estava preparado e autorizado pela organização a embarcar no Lusitânia. A Reuter, no entanto, tentava dissuadir o seu correspondente, afirmando que não se responsabilizava pela sua segurança. Como este não desistia, disposto a embarcar por sua conta e risco, a agência de notícias não esteve com contemplações: se o jornalista embarcasse, era simplesmente despedido.

A Reuter levaria a melhor, enviando um jornalista pouco preparado para a questão de Timor. No cais, ficava mais "um autêntico militante da causa timorense, um tipo que chorou, quando soube que não podia embarcar", recordaria Rui Marques, acusando as grandes agências de notícias de censura no caso do Lusitânia, sob pressão dos respectivos governos.

"Não é uma questão de censura. O facto é que a questão de Timor não interessa a mais ninguém a não ser Portugal e eventualmente a Indonésia e alguns países da região". A opinião de Rui Araújo podia facilmente ser provada, pelo grande número de jornalistas australianos que seguiam a bordo. Na Austrália, "nunca desde o massacre, e desta vez de forma tão positiva, se falou tanto sobre os problemas de Timor leste", escrevia o correspondente do 'Diário de Notícias', António Sampaio.

Quanto à imprensa indonésia, mostrava um interesse discreto, talvez o interesse possível, em relação ao acontecimento. Nos últimos dias, tinham sido várias as referências, pouco elogiosas, de resto, feitas pelos jornais indonésios à Missão. O 'Jakarta Post', por exemplo, citando a agência oficial indonésia, 'Antara', dava ampla cobertura às posições oficiais, segundo as quais, o Lusitânia seria apreendido como um vulgar barco de pesca, caso tentasse furar o bloqueio que a Armada indonésia lhe preparava. Para a Comunicação Social indonésia, o Lusitânia era produto da conspiração de extremistas, dispostos até a fazer explodir o barco com o objectivo de culpabilizar o regime de Soeharto. por esse motivo, o 'ferry' ia carregado de explosivos, afirmava-se em Jacarta.

Duas jornalistas indonésias tinham pedido à direcção da Missão a necessária autorização para embarcar no Lusitânia. Dewi Anegraenni, correspondente na Austrália da revista semanal 'Tempo', com uma tiragem de setecentos e cinquenta mil exemplares, foi a única repórter indonésia autorizada a cobrir a viagem a sua Jacarta se referia como 'provokasi' - provocação. A jornalista do diário 'Kompas', a segunda a candidatar-se a um bilhete de embarque no Lusitânia, ficou em terra. Segundo a organização, a quota de jornalistas indonésios estava já preenchida por Dewi Anegraenni, pelo que o segundo pedido tinha que ser recusado. Desculpa que convenceu pouca gente. "Porque razão recusaram a jornalista indonésia com o pretexto de não haver espaço? Porque razão a organização não assumiu que não queria uma segunda jornalista indonésia a bordo?" - questões para as quais Rui Araújo não encontraria uma resposta satisfatória.

Da última página do 'Público' de quarta-feira, 11 de Março de 1992: "Luís dos Santos, o comandante, sobe à ponte de comando às 5h50 a sorrir e a bocejar. Sabe que outro navio, ainda à distância, se está a aproximar. Sabe também que vai ter, dentro de pouco tempo, todo o peso do Mundo nos ombros."

Por esta altura, já Rui Cardoso Martins tinha enviado para o 'Público' três peças: o relato das últimas 24 horas, o diário de bordo de alguns passageiros seleccionados (desde o general Eanes, a dirigentes de associações de estudantes, passando por Donaciano Gomes, o único timorense a bordo, rapidamente transformado em VIP pelos media), bem como um ponto da situação, às 4h45.

No seu artigo seguinte, escrito umas cinco horas depois, quando em Lisboa já passava da uma da manhã, podia ler-se:

"Às 6h35, quando Rui Marques, muito pálido, se desdobra em telefonemas para Portugal - Governo e Presidência - dentro da cabine, surge, na direcção precisa de Timor, um navio na linha do mar. As duas fragatas da marinha de Jacarta aproximam-se e comunicam em morse de luzes azuis."

Começava a tomar forma o bloqueio naval tantas vezes previsto. Aos poucos todos vão acordando e recapitulam mentalmente o que têm de fazer, caso a hipótese se concretize. Ninguém deve reagir se Rui Marques, o comandante ou outro passageiro for preso. Porque o seguro morreu de velho, todas as fotografias e vídeos disponíveis foram guardados em "lugar seguro", não fossem os indonésios ter curiosidade em ver o que tinha acontecido a bordo desde a tarde de segunda-feira.

Na ponte de comando, Fernando Gaspar continua de pedra e cal, o que parece incomodar profundamente o director da Missão. Ambos têm oportunidade para mais uma 'troca de mimos', sempre por causa do acordo, já nada secreto, que dava ao jornalista do 'Expresso' livre acesso à ponte. Rui Marques tenta, antes de mais, proteger dos ouvidos do jornalista os contactos telefónicos que mantém com Lisboa e com Darwin, onde estava instalado um 'gabinete de crise'. Mas o gravador de Fernando Gaspar continuava, impassível, a guardar tudo o que se passava na ponte.

"Seis e quarenta: aquela que fez companhia toda a noite ao Lusitânia ruma direito ao convés cheio de estudantes. Ramalho Eanes, uma lata de água na mão, vira-se para outro dos convidados da 'Missão Paz em Timor': - Padre Baptista! Vamo-nos vestir?

"Um couraçado vira, repentinamente, e um outro acelera, fazendo escolta a pouca distância ao navio português. A onze milhas das águas territoriais de Timor, a uma hora e um quarto de viagem, avista-se a ilha de Leti. Se nada acontecer, é dobrar a ponta Leste de Timor e rumar a Oeste, para Díli."

Nos directos radiofónicos, crescia a expectativa. Ensaduichado entre as duas fragatas, o Lusitânia continuava a sua marcha rumo a Timor. Longo percurso para um barco que era suposto fazer as ligações entre o Algarve e Marrocos, e que, alguns meses mais tarde estaria a navegar entre a Madeira e Porto Santo. O barco que, após uma viagem de mais de quarenta dias, tinha sido recebido em autêntica festa à chegada a Darwin.

Rui Cardoso Martins e Fernando Gaspar foram os primeiros jornalistas a avistar o Lusitânia Expresso. Enquanto no porto se preparava uma recepção eufórica, os dois jornalistas navegavam ao encontro do navio azul e amarelo. Esperaram catorze milhas ao largo, a bordo de uma pequena lancha, a 'Venceremos', de Wes Smith, membro do grupo 'Australians for Free East Timor". Durante as várias horas que passaram a vigiar o horizonte, os dois jornalistas tiveram oportunidade de conhecer melhor um dos australianos mais empenhados na causa timorense. Wes Smith já tinha sido preso perto de Timor, quando tentava levar medicamentos a Díli. Para estar naquele momento à espera do Lusitânia Expresso com um grupo de amigos, tinha gasto três mil dólares na reparação do motor da lancha. "Gostei muito de os conhecer. Sentia imenso respeito por eles, porque se aplicavam mais naquela causa do que os próprios timorenses", recordaria Rui Cardoso Martins.

Quando finalmente o 'peace boat' começou a distinguir-se no horizonte, houve uma explosão de alegria a bordo do 'ferry' Billy J, a abarrotar de portugueses e timorenses que quiseram também antecipar o encontro com o Lusitânia, apanhados entre o riso e as lágrimas. "dentro da pequena lancha, estranhamente, fez-se um profundo silêncio. Os olhos de Wes e John estão fixos e vermelhos quando levantam os braços. Depois, grita-se a favor do vento: "Capitão! Capitão Luís dos Santos! Fez boa viagem? Fardado de kaki, o comandante do navio sai da ponte de comando e acena com a tripulação", escrevia Rui Cardoso Martins nessa noite.

A primeira entrevista a Luís dos Santos seria, no entanto, para Manuel Acácio. Entre a multidão que, no cais, aclamava o Lusitânia, o enviado da TSF fazia, mais encontrão, menos encontrão, um directo para Lisboa, desta vez, com um telemóvel emprestado por um timorense. "Preferi ficar no porto porque era o sítio onde podia fazer mais coisas. Havia toda aquela emoção, aquele amor pela terra que as pessoas demonstravam - aquelas pessoas falam da casa que tinham, da praia onde iam, do velhinho que morava na aldeia não-sei-quantos e que lhes contava histórias... É uma saudade saudável, sem ser só aquela coisa saloia da bandeirinha, aquele 'patrioteirismo' balofo... Havia também os aborígenes, que, antes, tinham dado o melhor concerto que eu vi na minha vida."

Por entre a festa da chegada e a burocracia alfandegária, os jornalistas são impedidos de entrar no barco. "Eu queria saber coisas, como é óbvio. Como as autoridades não nos deixavam ir a bordo, eu penduro-me num cabo do navio, meio no cais, meio no Lusitânia". O telemóvel permitia a Manuel Acácio uma grande mobilidade, impossível com a parabólica. "Eu, que nem tenho um físico de Indiana Jones, estava a entrevistar o comandante, a ver quando é que caía, porque tinha sempre as pernas a abrir e a fechar, conforme o balanço do barco. Alguma vez eu pensava fazer uma coisa daquelas..."

"Lusitânia Expresso. This is Papa Kilo Alfa India, indonesian warship. I am patrolling this area. You are now in the indonesian territorial sea. I tell you directly to leave this area and proceed your sailing without delay to the high sea. "

Timor à vista, as fragatas de Jacarta rompiam a mudez impenetrável das últimas horas." A voz sem rosto que de repente entrou a bordo, pelo canal 16 em VHF, lembrava a de um comandante militar japonês nos últimos filmes de guerra: autoritária mas estridente, num inglês sincopado que, fossem outras as circunstâncias, daria vontade de rir", poderia ler-se no 'Expresso' dessa semana.

O espectáculo tinha começado. Fora de cena quem não é de cena. No palco, só o comandante Luís dos Santos, Rui Marques, o General Ramalho Eanes, o oficial de comunicações, o imediato, o marinheiro ao leme, dois repórteres e uma equipa de televisão.

Sem aviso, o Lusitânia Expresso tornou-se mais sufocante, as escadas mais íngremes, as portas mais apertadas, os corredores mais longos. Entre a ponte e a ré, onde estavam os telefones satélite, os jornalistas apertavam-se, apressavam-se, perdiam tempo e informações. As poucas vias de comunicação entre o Lusitânia e Lisboa estavam superlotadas. Os guarda-chuva das parabólicas iam sendo dirigidos por estudantes para um satélite que ninguém sabia onde estava. Do local onde estavam os telefones satélite, não era possível aos jornalistas acompanhar a evolução dos acontecimentos, o que dificultava grandemente o seu trabalho. Por esta altura, já a 'pool' rotativa que tão bem tinha resultado, se havia desfeito. Os jornalistas acotovelavam-se à entrada da ponte, acompanhando como podiam o diálogo de surdos entre o Lusitânia Expresso e a muralha flutuante que lhe barrava o caminho.

- Entendido! Quer, então, dizer que não tenho autorização para prosseguir a minha viagem para Díli, não é assim?

- Aqui, Papa Kilo Alfa India, navio de guerra indonésio. É isso mesmo. Aviso-o que não está autorizado a parar, ancorar, baixar botes ou entrar em porto no mar territorial indonésio.

A voz robótica que chegava ao rádio do Lusitânia, tinha em autoridade o que faltava à de Luís dos Santos em segurança. A tensão crescia a bordo, perante a autêntica forquilha que a Marinha indonésia preparara com todo o cuidado. "Tive medo. Aqueles eram os tipos que tinham feito os massacres, que tinham morto centenas de milhar de pessoas. Eram esses tipos que ali estavam...", recordaria Rui Cardoso Martins.

"A algumas dezenas de metros, fuzileiros indonésios equipados com coletes de salvação, estão a postos. A movimentação nas cobertas revela que a abordagem do Lusitânia Expresso está por um fio", podia ouvir-se na Rádio Comercial e na Antena 1, que faziam uma edição especial em simultâneo. Os dois jornalistas da RDP tinham encontrado a solução ideal para resolver o problema da distância entre a ponte, onde tudo acontecia, e a ré, de onde os directos eram enviados. Com um 'walkie talkie', José Manuel Lopes, fazia o relato dos acontecimentos a Carlos Barros que, por sua vez, estava em directo com as duas estações de rádio, em Lisboa. Um sistema que resultou na perfeição, a julgar pelos elogios que os restantes jornalistas fariam, terminada a Missão.

Para quem não tinha os preciosos meios técnicos, fossem as parabólicas, fossem os emissores de onda curta, as coisas revelavam-se mais complicadas. João Pedro Henriques sabia que em Lisboa, o chefe da secção Nacional da Lusa, João Fernandes, estava a trabalhar com as informações que as rádios iam transmitindo em directo, única forma de dispor sempre das últimas notícias. É que o enviado especial da Lusa, só podia mandar alguma peça quando chegava a sua vez, na interminável fila do 'telefone público'. "Eu tinha uma falta de meios aflitiva, que senti ainda mais no momento em que há contacto com as fragatas indonésias, quando cai toda a gente em cima dos telefones."

Na RTP, como na RDP, a 'Missão Paz em Timor' teve honras de transmissão simultânea nos dois canais. Sem possibilidade de transmitir imagens, o trabalho de Rui Araújo e José Rodrigues dos Santos era, como tinha acontecido durante toda a viagem, um autêntico relato radiofónico. A televisão portuguesa, ao contrário do que o semanário 'O Independente' havia anunciado, não transmitia em directo as imagens da guerra de nervos que se desenrolava à vista de Timor.

Segundo a edição de 6 de Março de 'O Independente', a RTP admitia contratar um helicóptero equipado com satélite para cobrir em directo as horas 'quentes' da Missão. "A transmissão em directo (...) depende ainda do preço do seguro pedido pela empresa proprietária do helicóptero, que é muito elevado. Também será necessário que haja boas condições de tempo, pois em épocas de monção, são frequentes as tempestades. Finalmente, é preciso um helicóptero com autonomia de voo capaz de cobrir as quatrocentas milhas entre Darwin, na Austrália, e as águas territoriais timorenses", contava Maria Guiomar de Lima.

Afinal, não houve imagens em directo, e a RTP teve de fazer uma emissão especial apenas com as vozes dos seus enviados e de Fernando Gaspar, 'caçado' à saída da ponte de comando pelo cameraman da RTP. O jornalista do 'Expresso' era, na altura, quem tinha uma melhor visão dos acontecimentos, depois de várias horas consecutivas na ponte.

O trabalho de Rodrigues dos Santos foi, talvez, o que mais deu que falar, alvo de inúmeros comentários dos seus colegas e da organização, na ressaca do 'show' mediático. "O Rui Araújo fez um trabalho emotivo, mas com informação, ao contrário do Rodrigues dos Santos, que era muito lamechas; o que é estranho, porque o José Rodrigues dos Santos até tem a escola da BBC, mas parece que não lhe serviu de muito...", consideraria o enviado da Lusa, numa opinião comum a grande parte dos jornalistas. Para Rui Marques, "com essa história de não saber gerir a informação convenientemente, as pessoas que seguiam tudo pela televisão foram tendo uma série de informações erradas. O Rodrigues dos Santos foi criando um limiar de expectativa tal, que parecia que as fragatas iam atirar no momento seguinte."

Para o jornalista do Canal 1, as críticas não tinham razão de ser. "Eu noticiei o que se estava a passar. Se havia uma situação de grande tensão, se havia o risco de o barco ser abordado, era isso que eu dizia."

- Papa Kilo Alfa India, aqui o Lusitânia Expresso. Estou a parar os meus motores, está a ouvir-me?

- Aqui, papa Kilo Alfa India. Pare já os seus motores.

- Sim, senhor. Presumo que estou a falar com o oficial comandante, certo?

- Sim, aqui fala o oficial comandante.

- Tenho, aqui, o fretador responsável por esta missão. Ele pede-me que lhe pergunte se poderia dar-lhe uma palavra. Será possível?

- Volto a repetir que está agora nas águas territoriais indonésias. ordeno-lhe directamente que abandone esta área sem demora e que prossiga a rota para o alto mar de acordo com as linhas normais de navegação internacionais, mais a Sul.

- Afirmativo, recebemos correctamente a sua mensagem e actuaremos de acordo com as suas ordens.

O barco começa a virar para bombordo, Timor vai ficar para trás. Já todos tinham consciência de que as flores do Lusitânia não iam chegar a Santa cruz. Como tinha sido previsto tantas vezes.

O GPS (posicionador por satélite) de bordo indica que a 'Missão Paz em Timor' tinha parado a 8º, 31' e 16" de latitude Sul e a 127º, 36' e 58" de longitude Leste.

Para os jornalistas, perdia-se também a oportunidade de pisar uma terra de que muitos falavam, mas que poucos conheciam. Dos que iam a bordo, só Rui Araújo já tinha entrado em Timor. Dez anos antes, após longos meses de negociações com as autoridades indonésias, era o primeiro jornalista português a ver de perto o sofrimento de um povo esquecido. "Naquela altura, o clima em Díli não era muito saudável. Até para comprar um maço de tabaco a 20 metros do hotel, éramos acompanhados. Muita gente foi proibida de falar connosco, e os que falavam, depois, eram interrogados pela Intel, a polícia secreta indonésia. Apesar daquele clima de medo, houve duas pessoas que nos passaram dois documentos. Um, foi entregue às escondidas ao Nuno Jorge, o cameraman que ia comigo, era um bilhete a dar-nos as boas vindas; o outro, foi-me entregue numa barraca, por um tipo de quem eu nem sequer via a cara, que me dá um encontrão e me mete na mão uma extensa lista com 114 nomes de pessoas desaparecidas, com a indicação da idade, localidade de origem, residência e profissão." A reportagem que resultou dessa viagem, se teve grande repercussão em Portugal, funcionando como um acordar das consciências adormecidas, também deu frutos em Jacarta, que achou por bem considerar Rui Araújo (ndr: durante 9 anos)'persona non grata' por aquelas bandas.

Mesmo conhecendo o mau génio dos indonésios, Manuel Acácio estava disposto a ficar em Timor, caso o Lusitânia Expresso atracasse em Díli. "Eu e o Pedro brinca, muito provavelmente não tínhamos voltado ao navio. Em Lisboa, falámos com o David Borges e colocámos a seguinte questão: perdemos o barco ou não? Por um lado, não fazíamos a reportagem da saída do barco, mas, por outro, podia dar uma boa história... ou então, seríamos presos, e perdíamos a reportagem toda..."

Para o caso de ficarem em Timor, os enviados da TSF aprenderam um vocabulário básico ("até os palavrões") em tetum. "temos fome", "temos sede", "somos amigos do povo de Timor", "levem-nos a tal sítio" e, fundamental, "escondam-nos depressa", foram alguns dos rudimentos de tetum com que Manuel Acácio e o seu técnico iam armados para sobreviver clandestinamente em Timor.

"Não chegámos a Timor, mas cumprimos a nossa missão. Fizemos recolocar Timor na agenda internacional. Nestes últimos dias, fizemos tudo o que estava ao nosso alcançe. Lutámos até ao fim. Demos um abraço ao povo de Timor e todos os timorenses que estavam ali. Hoje, é o primeiro dia da nova missão. Vamos a isto".

As palavras de Rui Marques, no convés do navio, eram acompanhadas pelo zumbir dos helicópteros indonésios, recebidos pelos estudantes com um "V" da vitória possível. José Manuel Lopes pintava assim o quadro: "Cotovelos cravados no corrimão da ré, dedos cruzados à frente da boca, olhos perdidos entre o horizonte e o aço das fragatas, Rui Marques via o sonho terminar. Nas suas costas, a mão do padre José Baptista era o seu conforto."

Muitos jornalistas, embora fossem ali apenas espectadores, não deixavam de lamentar o fim antecipado da Missão. Todos queriam chegar a Timor, embora poucos acreditassem na hipótese. Mais discutível, era a decisão do comandante de acatar as ordens indonésias "tão prontamente, depois de três meros avisos", como diria Rui Araújo.

Nem a homenagem aos timorenses levou muito tempo. Rezadas as bem aventuranças do Evangelho segundo São Mateus, lançadas ao mar as flores vermelhas e brancas, o Lusitânia rumava de novo para a Austrália, na rota de um helicóptero que devia recolher as imagens captadas a bordo para que fossem transmitidas o mais rapidamente possível. No circuito internacional de televisão, era preciso antecipar-se à história contada pela Indonésia.

O Lusitânia acelerou, mas acabou por se desencontrar do helicóptero.

Oito meses depois, Rui Araújo seria autorizado a voltar a Timor, na sequência da prisão do líder da resistência, Xanana Gusmão.

Em Díli, já ninguém falava do Lusitânia Expresso.

Já ninguém se lembrava de um barco que tinha parado, ali tão perto, a três fragatas de distância.

Carlos Filipe Santos Costa - Estudante de Comunicação Social

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