Combates
A TALHE DE FOICE Henrique Custódio
U m estudo feito pela Universidade do Minho anunciou, esta semana, que a exploração do trabalho infantil no Norte do País continuava na mesma, mas com uma diferença: agora as crianças trabalham menos nas fábricas e mais em casa, onde os próprios familiares lhes levam as empreitadas de roupas e calçado para elas manufacturarem ao abrigo das fiscalizações, para sossego das consciências piedosas e, sobretudo, dos industriais que as exploram.
O trabalho infantil é «a conspiração do passado contra o futuro das crianças», respondeu entretanto no Canal-2 o Secretário de Estado do Trabalho e Formação Profissional, Paulo Pedroso, quando questionado sobre o assunto.
Não conheço o Sr. Secretário de Estado, mas sei reconhecer uma boa frase. Esta tem que se lhe diga e, a mim, disse-me algumas coisas.
A mais óbvia foi a de que a exploração do trabalho infantil está, manifestamente, «contra o futuro das crianças».
A mais produtiva foi definir o fenómeno como «conspiração do passado».
Pelo que sempre na esteira de frase tão bem construída me imaginei acompanhado pelo Sr. Secretário de Estado no entendimento de que «o passado» que assim conspira contra o futuro das crianças não pode ser outro se não o passado de miséria e injustiça sociais que aí continua, bem vivo e actuante, a dominar o quotidiano do país, conforme o estudo da Universidade do Minho confirmou.
Mas não. Dita a frase, o Sr. Secretário de Estado trilhou por outras leituras.
A mais inesperada foi identificar algo de «positivo» nesta alteração de expediente.
É que, assim, as crianças já não trabalham oito horas num «contexto industrial», só laborando algumas horas à noite ou nos «intervalos» e até ficando com tempo para irem à escola!
Por esta ordem de ideias (e dando de barato que a «carga horária» das crianças se «aliviou», como supõe Paulo Pedroso), podemos concluir que os famintos de África ou da Ásia passam a morrer mais felizes quando lhes chega alguma ajuda humanitária que lhes prolongue a agonia, enquanto os países doadores podem dormir mais descansados porque fizeram algo de «positivo»...
Mas o Sr. Secretário de Estado aliás muito competente na exposição da política oficial do Governo nesta matéria não deixou de manifestar consciência social e espírito reformador. E explicou que o fenómeno da exploração da mão-de-obra infantil se combate com legislação que obrigue os empresários a dar e a exigir formação profissional aos jovens que recrutam, com abonos e rendimentos mínimos às famílias carenciadas, mais intervenção escolar, etc., etc.
São passos também «positivos».
Mas nem uma palavra, quanto mais um passo, sobre os beneficiários desta exploração os industriais de todos os matizes e vãos de escada -, nem uma palavra sobre a impunidade com que esta gente actua nas relações de trabalho ou se apodera de mais-valias de proveniência nunca averiguada, nem uma palavra sobre a brutal desregulamentação socio-laboral que, a montante do trabalho infantil, avoluma o caudal de miséria nas famílias ao ponto de as pôr a atirar os filhos aos predadores.
E as crianças são apenas as últimas vítimas desta enxurrada.
Combater a enxurrada, Sr. Secretário de Estado, é que responde verdadeiramente ao problema.
Mas esse combate é uma «utopia», como se diz no partido do seu Governo.
Pelo que o melhor é dar umas esmolas e jogar na Bolsa.
«Avante!» Nº 1405 - 2.Novembro.2000
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A TALHE DE FOICE Henrique Custódio
U m estudo feito pela Universidade do Minho anunciou, esta semana, que a exploração do trabalho infantil no Norte do País continuava na mesma, mas com uma diferença: agora as crianças trabalham menos nas fábricas e mais em casa, onde os próprios familiares lhes levam as empreitadas de roupas e calçado para elas manufacturarem ao abrigo das fiscalizações, para sossego das consciências piedosas e, sobretudo, dos industriais que as exploram.
O trabalho infantil é «a conspiração do passado contra o futuro das crianças», respondeu entretanto no Canal-2 o Secretário de Estado do Trabalho e Formação Profissional, Paulo Pedroso, quando questionado sobre o assunto.
Não conheço o Sr. Secretário de Estado, mas sei reconhecer uma boa frase. Esta tem que se lhe diga e, a mim, disse-me algumas coisas.
A mais óbvia foi a de que a exploração do trabalho infantil está, manifestamente, «contra o futuro das crianças».
A mais produtiva foi definir o fenómeno como «conspiração do passado».
Pelo que sempre na esteira de frase tão bem construída me imaginei acompanhado pelo Sr. Secretário de Estado no entendimento de que «o passado» que assim conspira contra o futuro das crianças não pode ser outro se não o passado de miséria e injustiça sociais que aí continua, bem vivo e actuante, a dominar o quotidiano do país, conforme o estudo da Universidade do Minho confirmou.
Mas não. Dita a frase, o Sr. Secretário de Estado trilhou por outras leituras.
A mais inesperada foi identificar algo de «positivo» nesta alteração de expediente.
É que, assim, as crianças já não trabalham oito horas num «contexto industrial», só laborando algumas horas à noite ou nos «intervalos» e até ficando com tempo para irem à escola!
Por esta ordem de ideias (e dando de barato que a «carga horária» das crianças se «aliviou», como supõe Paulo Pedroso), podemos concluir que os famintos de África ou da Ásia passam a morrer mais felizes quando lhes chega alguma ajuda humanitária que lhes prolongue a agonia, enquanto os países doadores podem dormir mais descansados porque fizeram algo de «positivo»...
Mas o Sr. Secretário de Estado aliás muito competente na exposição da política oficial do Governo nesta matéria não deixou de manifestar consciência social e espírito reformador. E explicou que o fenómeno da exploração da mão-de-obra infantil se combate com legislação que obrigue os empresários a dar e a exigir formação profissional aos jovens que recrutam, com abonos e rendimentos mínimos às famílias carenciadas, mais intervenção escolar, etc., etc.
São passos também «positivos».
Mas nem uma palavra, quanto mais um passo, sobre os beneficiários desta exploração os industriais de todos os matizes e vãos de escada -, nem uma palavra sobre a impunidade com que esta gente actua nas relações de trabalho ou se apodera de mais-valias de proveniência nunca averiguada, nem uma palavra sobre a brutal desregulamentação socio-laboral que, a montante do trabalho infantil, avoluma o caudal de miséria nas famílias ao ponto de as pôr a atirar os filhos aos predadores.
E as crianças são apenas as últimas vítimas desta enxurrada.
Combater a enxurrada, Sr. Secretário de Estado, é que responde verdadeiramente ao problema.
Mas esse combate é uma «utopia», como se diz no partido do seu Governo.
Pelo que o melhor é dar umas esmolas e jogar na Bolsa.
«Avante!» Nº 1405 - 2.Novembro.2000