«Avante!» Nº 1405

12-12-2002
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Combates

A TALHE DE FOICE • Henrique Custódio

U m estudo feito pela Universidade do Minho anunciou, esta semana, que a exploração do trabalho infantil no Norte do País continuava na mesma, mas com uma diferença: agora as crianças trabalham menos nas fábricas e mais em casa, onde os próprios familiares lhes levam as empreitadas de roupas e calçado para elas manufacturarem ao abrigo das fiscalizações, para sossego das consciências piedosas e, sobretudo, dos industriais que as exploram.

O trabalho infantil é «a conspiração do passado contra o futuro das crianças», respondeu entretanto no Canal-2 o Secretário de Estado do Trabalho e Formação Profissional, Paulo Pedroso, quando questionado sobre o assunto.

Não conheço o Sr. Secretário de Estado, mas sei reconhecer uma boa frase. Esta tem que se lhe diga e, a mim, disse-me algumas coisas.

A mais óbvia foi a de que a exploração do trabalho infantil está, manifestamente, «contra o futuro das crianças».

A mais produtiva foi definir o fenómeno como «conspiração do passado».

Pelo que – sempre na esteira de frase tão bem construída – me imaginei acompanhado pelo Sr. Secretário de Estado no entendimento de que «o passado» que assim conspira contra o futuro das crianças não pode ser outro se não o passado de miséria e injustiça sociais que aí continua, bem vivo e actuante, a dominar o quotidiano do país, conforme o estudo da Universidade do Minho confirmou.

Mas não. Dita a frase, o Sr. Secretário de Estado trilhou por outras leituras.

A mais inesperada foi identificar algo de «positivo» nesta alteração de expediente.

É que, assim, as crianças já não trabalham oito horas num «contexto industrial», só laborando algumas horas à noite ou nos «intervalos» e até ficando com tempo para irem à escola!

Por esta ordem de ideias (e dando de barato que a «carga horária» das crianças se «aliviou», como supõe Paulo Pedroso), podemos concluir que os famintos de África ou da Ásia passam a morrer mais felizes quando lhes chega alguma ajuda humanitária que lhes prolongue a agonia, enquanto os países doadores podem dormir mais descansados porque fizeram algo de «positivo»...

Mas o Sr. Secretário de Estado – aliás muito competente na exposição da política oficial do Governo nesta matéria – não deixou de manifestar consciência social e espírito reformador. E explicou que o fenómeno da exploração da mão-de-obra infantil se combate com legislação que obrigue os empresários a dar e a exigir formação profissional aos jovens que recrutam, com abonos e rendimentos mínimos às famílias carenciadas, mais intervenção escolar, etc., etc.

São passos também «positivos».

Mas nem uma palavra, quanto mais um passo, sobre os beneficiários desta exploração – os industriais de todos os matizes e vãos de escada -, nem uma palavra sobre a impunidade com que esta gente actua nas relações de trabalho ou se apodera de mais-valias de proveniência nunca averiguada, nem uma palavra sobre a brutal desregulamentação socio-laboral que, a montante do trabalho infantil, avoluma o caudal de miséria nas famílias ao ponto de as pôr a atirar os filhos aos predadores.

E as crianças são apenas as últimas vítimas desta enxurrada.

Combater a enxurrada, Sr. Secretário de Estado, é que responde verdadeiramente ao problema.

Mas esse combate é uma «utopia», como se diz no partido do seu Governo.

Pelo que o melhor é dar umas esmolas e jogar na Bolsa.

«Avante!» Nº 1405 - 2.Novembro.2000

Combates

A TALHE DE FOICE • Henrique Custódio

U m estudo feito pela Universidade do Minho anunciou, esta semana, que a exploração do trabalho infantil no Norte do País continuava na mesma, mas com uma diferença: agora as crianças trabalham menos nas fábricas e mais em casa, onde os próprios familiares lhes levam as empreitadas de roupas e calçado para elas manufacturarem ao abrigo das fiscalizações, para sossego das consciências piedosas e, sobretudo, dos industriais que as exploram.

O trabalho infantil é «a conspiração do passado contra o futuro das crianças», respondeu entretanto no Canal-2 o Secretário de Estado do Trabalho e Formação Profissional, Paulo Pedroso, quando questionado sobre o assunto.

Não conheço o Sr. Secretário de Estado, mas sei reconhecer uma boa frase. Esta tem que se lhe diga e, a mim, disse-me algumas coisas.

A mais óbvia foi a de que a exploração do trabalho infantil está, manifestamente, «contra o futuro das crianças».

A mais produtiva foi definir o fenómeno como «conspiração do passado».

Pelo que – sempre na esteira de frase tão bem construída – me imaginei acompanhado pelo Sr. Secretário de Estado no entendimento de que «o passado» que assim conspira contra o futuro das crianças não pode ser outro se não o passado de miséria e injustiça sociais que aí continua, bem vivo e actuante, a dominar o quotidiano do país, conforme o estudo da Universidade do Minho confirmou.

Mas não. Dita a frase, o Sr. Secretário de Estado trilhou por outras leituras.

A mais inesperada foi identificar algo de «positivo» nesta alteração de expediente.

É que, assim, as crianças já não trabalham oito horas num «contexto industrial», só laborando algumas horas à noite ou nos «intervalos» e até ficando com tempo para irem à escola!

Por esta ordem de ideias (e dando de barato que a «carga horária» das crianças se «aliviou», como supõe Paulo Pedroso), podemos concluir que os famintos de África ou da Ásia passam a morrer mais felizes quando lhes chega alguma ajuda humanitária que lhes prolongue a agonia, enquanto os países doadores podem dormir mais descansados porque fizeram algo de «positivo»...

Mas o Sr. Secretário de Estado – aliás muito competente na exposição da política oficial do Governo nesta matéria – não deixou de manifestar consciência social e espírito reformador. E explicou que o fenómeno da exploração da mão-de-obra infantil se combate com legislação que obrigue os empresários a dar e a exigir formação profissional aos jovens que recrutam, com abonos e rendimentos mínimos às famílias carenciadas, mais intervenção escolar, etc., etc.

São passos também «positivos».

Mas nem uma palavra, quanto mais um passo, sobre os beneficiários desta exploração – os industriais de todos os matizes e vãos de escada -, nem uma palavra sobre a impunidade com que esta gente actua nas relações de trabalho ou se apodera de mais-valias de proveniência nunca averiguada, nem uma palavra sobre a brutal desregulamentação socio-laboral que, a montante do trabalho infantil, avoluma o caudal de miséria nas famílias ao ponto de as pôr a atirar os filhos aos predadores.

E as crianças são apenas as últimas vítimas desta enxurrada.

Combater a enxurrada, Sr. Secretário de Estado, é que responde verdadeiramente ao problema.

Mas esse combate é uma «utopia», como se diz no partido do seu Governo.

Pelo que o melhor é dar umas esmolas e jogar na Bolsa.

«Avante!» Nº 1405 - 2.Novembro.2000

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