Sermão dos bons anos
Patinha Antão
«Subliminarmente, o alvo é a insinuação de que a Guterres faltou apenas coragem; donde, apenas, será preciso mudar de intérprete e prometer a evolução na continuidade. Esfreguemos os olhos.»
VIVEMOS o tempo do despertar da anestesia-geral em que o interregno guterrista mergulhou o país.
Subsistem porém domínios onde o acordar é mais lento, como o da semântica das palavras e do discurso.
Mais depressa a natureza humana se liberta do engano do que admite que foi enganada, e ainda menos se previne contra a sua reedição - esta é a âncora em que assenta a demagogia do «marketing» político de Ferro Rodrigues.
Por isso, primeiro criou-se o efeito-surpresa da sua denúncia dos malefícios do guterrismo, qual Brutus apunhalando César, para demarcar a criatura do criador.
Seguiu-se o anúncio da sua marca da alteridade - eis o país inundado pelo cartaz de Ferro encimado pela palavra Coragem - qualidade nele até agora insuspeita.
Subliminarmente, o alvo é a insinuação de que a Guterres faltou apenas coragem; donde, apenas, será preciso mudar de intérprete e prometer a evolução na continuidade. Esfreguemos os olhos.
Dizia o Padre António Vieira, no Sermão dos Bons-Anos que, num mundo tão avarento de bens em que apenas se trocam bons-dias, ter a obrigação de dar bons-anos, é dificultoso empenho; que os bons-anos não dá quem os deseja, mas quem os assegura; e que, em profecias e governos começados, referir-lhes o passado é o mesmo que prognosticar-lhes o futuro.
Ora, a governação de Guterres não assegurou bons-anos, pelo contrário, comprometeu o próximo futuro, de forma grave e totalmente desnecessária.
Ferro, que foi seu ministro em várias pastas, nunca se lhe opôs nem se lhe notou a coragem que agora reclama.
E como em governos começados, referir-lhes o passado, é prognosticar-lhes o futuro, Vieira diria que Ferro - por não ter sido capaz de ajudar quem nos devia dar bons-anos quando a conjuntura os facilitou - também não será capaz de os dar agora que a conjuntura os dificulta.
Estará impressa, nos nossos genes de Nação antiga, a clarividência política deste português setecentista, génio da oratória, entre os maiores de todos os tempos; tanto bastará para rejeitar Ferro por aquilo que ele no fundo é, a reedição do logro dos últimos seis anos.
Seja como for, tiremos a prova dos nove.
Que precisa hoje o país, antes de mais?
Pôr em marcha a retoma da economia, cuja tendência resvala para a recessão, e controlar as finanças públicas, cujo descontrolo acaba de ser censurado por Bruxelas.
Que diz Ferro ou o seu programa eleitoral?
Nada, porque quer desvalorizar o problema que é muito negativo para a sua campanha.
E fez avançar fogo de barragem, a cargo dos seus ministeriáveis para as Finanças.
Pina Moura escreveu um artigo «Choque Fiscal, Choque Fatal».
Pretendia que fosse uma arma de arremesso, mas não reparou no efeito «boomerang» - é que o título assenta que nem uma luva à «sua» reforma fiscal para o mercado de capitais que se revelou tão desastrosa que o seu sucessor teve que a anular ou suspender (desde Dezembro de 2000 até hoje, o PSI-20 perdeu 25,8%, enquanto o Euronext 100 apenas caiu 7,7%).
E agora a «sua» reforma morreu mesmo, porque a integração da BVLP na Euronext acaba de ser consumada pelos seus órgãos sociais (salvando-a «in extremis» do destino de bolsita paroquial que o ex-ministro lhe reservava).
Quanto ao texto em si, é para esquecer - sobre política orçamental pró-activa atente-se antes no que fez Eduardo Catroga em 1994-95 (a melhor recuperação da economia portuguesa desde o 25 de Abril, como qualquer economista certificará).
Oliveira Martins não está, até por formação, neste combate de distorção demagógica de dados e argumentos de adversários políticos.
Está no pólo oposto, imperturbável e estóico, debitando um texto de Pangloss, de protecção à imagem de um Governo e de um Ministério que continuam a afundar-se.
Ele não merecia, por isso, ser flagelado pelos seus colegas, como o ministro da Justiça, que fez uma tabela de preços de notariado que acaba por ser um novo imposto absurdamente regressivo para a pequena propriedade e para os cidadãos de modestos rendimentos.
Bem bastaria, a Oliveira Martins, em fim de mandato, a censura que a Comissão Europeia acaba de fazer, invocando três razões, para emitir o «alerta rápido» que o Pacto de Estabilidade prevê.
Primeira, por ter deixado deslizar irresponsavelmente o défice em 2001 - a Comissão reparou, finalmente, que o défice ajustado da variação do ciclo atingiu o valor alarme de 2,5% do PIB no ano transacto (depois de subir metodicamente 2 p.p., ao longo dos últimos seis anos).
Segunda, por temer que o deslize continue a aumentar no corrente ano (o que será inevitável se não for rapidamente travado o aumento da evasão fiscal, que está em curso).
E terceira, por constatar que a previsão de anulação do défice em 2004 esconde contabilidade criativa - o Governo pretende atingir o resultado, aumentando ao mesmo tempo o rácio da dívida pública em 6 p.p., o que só pode, obviamente, significar desorçamentação.
Perante tudo isto, cala-se Ferro, porque só poderia dizer o que disse Lutero: «No Governo temporal vós nada fazeis, senão esfolar os povos e agravá-los com impostos».
E-mail: mpantao@ip.pt
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Sermão dos bons anos
Patinha Antão
«Subliminarmente, o alvo é a insinuação de que a Guterres faltou apenas coragem; donde, apenas, será preciso mudar de intérprete e prometer a evolução na continuidade. Esfreguemos os olhos.»
VIVEMOS o tempo do despertar da anestesia-geral em que o interregno guterrista mergulhou o país.
Subsistem porém domínios onde o acordar é mais lento, como o da semântica das palavras e do discurso.
Mais depressa a natureza humana se liberta do engano do que admite que foi enganada, e ainda menos se previne contra a sua reedição - esta é a âncora em que assenta a demagogia do «marketing» político de Ferro Rodrigues.
Por isso, primeiro criou-se o efeito-surpresa da sua denúncia dos malefícios do guterrismo, qual Brutus apunhalando César, para demarcar a criatura do criador.
Seguiu-se o anúncio da sua marca da alteridade - eis o país inundado pelo cartaz de Ferro encimado pela palavra Coragem - qualidade nele até agora insuspeita.
Subliminarmente, o alvo é a insinuação de que a Guterres faltou apenas coragem; donde, apenas, será preciso mudar de intérprete e prometer a evolução na continuidade. Esfreguemos os olhos.
Dizia o Padre António Vieira, no Sermão dos Bons-Anos que, num mundo tão avarento de bens em que apenas se trocam bons-dias, ter a obrigação de dar bons-anos, é dificultoso empenho; que os bons-anos não dá quem os deseja, mas quem os assegura; e que, em profecias e governos começados, referir-lhes o passado é o mesmo que prognosticar-lhes o futuro.
Ora, a governação de Guterres não assegurou bons-anos, pelo contrário, comprometeu o próximo futuro, de forma grave e totalmente desnecessária.
Ferro, que foi seu ministro em várias pastas, nunca se lhe opôs nem se lhe notou a coragem que agora reclama.
E como em governos começados, referir-lhes o passado, é prognosticar-lhes o futuro, Vieira diria que Ferro - por não ter sido capaz de ajudar quem nos devia dar bons-anos quando a conjuntura os facilitou - também não será capaz de os dar agora que a conjuntura os dificulta.
Estará impressa, nos nossos genes de Nação antiga, a clarividência política deste português setecentista, génio da oratória, entre os maiores de todos os tempos; tanto bastará para rejeitar Ferro por aquilo que ele no fundo é, a reedição do logro dos últimos seis anos.
Seja como for, tiremos a prova dos nove.
Que precisa hoje o país, antes de mais?
Pôr em marcha a retoma da economia, cuja tendência resvala para a recessão, e controlar as finanças públicas, cujo descontrolo acaba de ser censurado por Bruxelas.
Que diz Ferro ou o seu programa eleitoral?
Nada, porque quer desvalorizar o problema que é muito negativo para a sua campanha.
E fez avançar fogo de barragem, a cargo dos seus ministeriáveis para as Finanças.
Pina Moura escreveu um artigo «Choque Fiscal, Choque Fatal».
Pretendia que fosse uma arma de arremesso, mas não reparou no efeito «boomerang» - é que o título assenta que nem uma luva à «sua» reforma fiscal para o mercado de capitais que se revelou tão desastrosa que o seu sucessor teve que a anular ou suspender (desde Dezembro de 2000 até hoje, o PSI-20 perdeu 25,8%, enquanto o Euronext 100 apenas caiu 7,7%).
E agora a «sua» reforma morreu mesmo, porque a integração da BVLP na Euronext acaba de ser consumada pelos seus órgãos sociais (salvando-a «in extremis» do destino de bolsita paroquial que o ex-ministro lhe reservava).
Quanto ao texto em si, é para esquecer - sobre política orçamental pró-activa atente-se antes no que fez Eduardo Catroga em 1994-95 (a melhor recuperação da economia portuguesa desde o 25 de Abril, como qualquer economista certificará).
Oliveira Martins não está, até por formação, neste combate de distorção demagógica de dados e argumentos de adversários políticos.
Está no pólo oposto, imperturbável e estóico, debitando um texto de Pangloss, de protecção à imagem de um Governo e de um Ministério que continuam a afundar-se.
Ele não merecia, por isso, ser flagelado pelos seus colegas, como o ministro da Justiça, que fez uma tabela de preços de notariado que acaba por ser um novo imposto absurdamente regressivo para a pequena propriedade e para os cidadãos de modestos rendimentos.
Bem bastaria, a Oliveira Martins, em fim de mandato, a censura que a Comissão Europeia acaba de fazer, invocando três razões, para emitir o «alerta rápido» que o Pacto de Estabilidade prevê.
Primeira, por ter deixado deslizar irresponsavelmente o défice em 2001 - a Comissão reparou, finalmente, que o défice ajustado da variação do ciclo atingiu o valor alarme de 2,5% do PIB no ano transacto (depois de subir metodicamente 2 p.p., ao longo dos últimos seis anos).
Segunda, por temer que o deslize continue a aumentar no corrente ano (o que será inevitável se não for rapidamente travado o aumento da evasão fiscal, que está em curso).
E terceira, por constatar que a previsão de anulação do défice em 2004 esconde contabilidade criativa - o Governo pretende atingir o resultado, aumentando ao mesmo tempo o rácio da dívida pública em 6 p.p., o que só pode, obviamente, significar desorçamentação.
Perante tudo isto, cala-se Ferro, porque só poderia dizer o que disse Lutero: «No Governo temporal vós nada fazeis, senão esfolar os povos e agravá-los com impostos».
E-mail: mpantao@ip.pt