Há uma outra política?

21-06-2003
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Há Uma Outra Política?

Sábado, 31 de Maio de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Não sei se há uma outra política, se há apenas a decomposição da política que havia, e momentos em que julgamos entrever algo que se assemelha ao que poderia ser uma outra política. Mas existe pelo menos um esforço de reflexão séria, empenhada, muito pouco ortodoxa ou rígida, muito disponível para avançar através de novos modelos e paradigmas. E depois de uma ofensiva da direita, que a levou com grande euforia ao poder em muitos países, mas que revelou muitas das suas fragilidades intrínsecas, porque a direita é sempre (ou ainda?) complexada em relação ao pensamento e à cultura, o que hoje se manifesta (e não escolho esta palavra por acaso) no campo da esquerda é algo de bem interessante e que merece ser lido com renovada atenção. Está claro que se compatibiliza mal com a posição dos autarcas de Felgueiras agarrados como lapas às franjas de poder que ainda detêm. É verdade também que estamos bastante desarmados para pensar o tenebroso caso político-jurídico-mediático em torno da pedofilia. Ou o que foi, na sua rede desmesurada, a concepção da Universidade Moderna. Mas se tais temas dominam a agenda da comunicação social, isso não deixa de nos exigir uma leitura mais distante e problematizante do que se vai publicando nestas áreas do pensamento de esquerda.

Temos uma já antiga revista (mas sou suspeito para falar dela, porque faço parte do conselho editorial) que dá pelo nome de "Finisterra" e que tem como director o nome agora tão celebrado de Eduardo Lourenço. Mas são António Reis e Fernando Pereira Marques que funcionam como os verdadeiros obreiros de um projecto que, no conjunto dos números já publicados, inclui textos de excepcional qualidade. No número de Outono (e por apelo lancinante de Pereira Marques no "JL" penso que o da Primavera apenas espera por um editorial do director, Eduardo Lourenço), temos como núcleo temático "A esquerda na encruzilhada" (com textos de Eduardo Lourenço, Guilherme d'Oliveira Martins, Fernando Pereira Marques, Joaquim Jorge Veiguinha e Filipe Nunes).

Entretanto, o sector renovador na área do PCP lançou-se no projecto de uma revista autónoma com um leque de participações muito diverso, a que deu o nome de "Ideias à Esquerda". Neste caso, o nº 1 corresponde à Primavera de 2003. A concepção é invulgarmente aberta e oscila entre a nota jornalística, o apontamento literário e a intervenção teórica. Para além de uma atenção particular em relação ao Brasil, com textos de Renato Lessa e Luiz Werneck Viana, temos um longo e admirável texto de Manuel Villaverde Cabral sobre "globalização, poder e cidadania".

Ligados a este projecto temos figuras tão diversas como Diana Andringa, José Bragança de Miranda, Mário de Carvalho, Vítor Serrão, Edgar Correia, Eugénio Lisboa, João Mário Grilo, João Teixeira Lopes, José Manuel Sobral, José Manuel Pureza, Mário Vieira de Carvalho, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Viriato Soromenho Marques ou Helena Roseta. A seguir com o maior interesse.

Por fim, a revista "Manifesto", que, tendo como director Miguel Portas, parece ligada ao Bloco de Esquerda. Vai também no nº 2, tem como directora adjunta Ana Drago e como editor Daniel Oliveira. Em princípio publica três números por ano. É precisamente a este número 2 que fui buscar o título para esta crónica: o tema essencial é "Crise e renascimento da política", e é nestas páginas que, de uma forma mais convicta e empolgada, encontramos a defesa da ideia de que há uma nova política. Diga-se de passagem que aqueles comentadores ou homens políticos que pretendem "arrumar" o Bloco de Esquerda no campo de um esquerdismo fora de prazo, feito de restos mal digeridos de maoísmo e trotskismo deveriam ser obrigados a recitar por inteiro, dias a a fio, algumas destas páginas: poupavam na propensão para a asneira.

O que aqui se encontra é uma mudança radical de referências que tem por pólos as experiências de democracia participativa do Partido Trabalhista no Brasil assim como a vitória de Lula nas eleições presidenciais, e por outro lado os movimentos de globalização alternativa e de contestação à guerra no Iraque e ao projecto imperial americano. Este nº 2 tem um artigo inicial (e muito importante) de Miguel Portas e José Manuel Pureza, uma mesa-redonda coordenada por Daniel Oliveira, com Medeiros Ferreira, António José Teixeira e António Cluny (título: "Os suspeitos do costume"), textos para uma reinvenção da democracia, de Nuno Ramos de Almeida. José Guilherme ou Luís Guerreiro, e uma entrevista com o brasileiro Luís Dulci, e um conjunto de três textos teóricos: o de Tarso Genro (que se pergunta até que ponto se pode avançar no aprofundamento da democracia sem que a própria democracia se volte perversamente contra si mesma), o de José Rebelo (reflexão no âmbito da análise do discurso) e por fim um ensaio extremamente sugestivo de José Maria Castro Caldas, intitulado "Não houve deles fala nem entendimento que aproveitasse".

É convicção dos organizadores deste "dossier" que é preciso reflectir sobre "o extraordinário momento que vivemos" e que estamos "numa mudança epocal: uma grande mudança, qualitativa, que assinala o fim do mundo herdado pelo final da II Grande Guerra". É ponto sobre o qual estou inteiramente de acordo. E parece-me interessante que os grandes partidos da esquerda tradicional se tenham movido tão lentamente em relação a estas problemáticas. Mas com raras excepções (entre as quais a mais notável foi sem dúvida Mário Soares), PS e PCP procuraram mais conter do que desenvolver as tendências claramente emergentes (e daí as oscilações verificadas na participação do PS nas manifestações contra a guerra ao mesmo tempo que o PS só parecia conceber estar presente se pudesse controlar os acontecimentos).

Como dizia há dias na sua crónica no "Diário de Notícias" Sarsfield Cabral, os objectivos políticos que justificaram a intervenção dos EUA no Iraque revelaram-se politicamente desastrosos e mesmo em relação ao carácter ditatorial do regime não havia um verdadeiro plano de democratização. A isto junta-se uma crise da própria qualidade da democracia que se vive (em Portugal, particularmente agravada). Daí a tese axial deste número da revista "Movimento": "A 'operação libertação' aumentou exponencialmente a crise da política, enquanto exercício do poder desvinculado da vontade popular. Mas, paradoxalmente, é este mesmo desrespeito que está a provocar o renascimento de uma 'outra' política, a que se apropria dos espaços públicos e que reclama o fim da agressão."

Todos nós temos consciência de que "o tratamento dado aos prisioneiros de Guantanamo, a contradição entre a pressão feita pelos EUA para a entrega de Milosevic a um tribunal internacional e o boicote que os próprios EUA fazem ao Tribunal Penal Internacional, que o próprio conceito de 'guerra preventiva' e a doutrina da afirmação da pura lógica da força pelos EUA e ainda o facto de os países europeus terem participado na guerra contra a vontade expressa das opiniões públicas são factores claros de uma deterioração da qualidade da democracia. Em Portugal, os abusos vergonhosos na utilização da prisão preventiva e a escandalosa elasticidade nas autorizações para escutas telefónicas vieram dar consciência aos cidadãos de que os direitos democráticos estavam longe de se apresentarem garantidos. Teria assim surgido, no decurso de impressionantes manifestações em todo o mundo, a ideia de um povo global. E que a partir desta nova realidade havia quem preenchesse o lugar de antagonista deixado vago pelo esvaziamento do papel do proletariado. Isto passaria também por um regresso da juventude enquanto categoria de mobilização política", como se pretende demonstrar no artigo de Ana Drago e João Teixeira Lopes: "Bem-vindos ao presente - Uma nova juventude em busca de uma acção política habitável".

Há Uma Outra Política?

Sábado, 31 de Maio de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Não sei se há uma outra política, se há apenas a decomposição da política que havia, e momentos em que julgamos entrever algo que se assemelha ao que poderia ser uma outra política. Mas existe pelo menos um esforço de reflexão séria, empenhada, muito pouco ortodoxa ou rígida, muito disponível para avançar através de novos modelos e paradigmas. E depois de uma ofensiva da direita, que a levou com grande euforia ao poder em muitos países, mas que revelou muitas das suas fragilidades intrínsecas, porque a direita é sempre (ou ainda?) complexada em relação ao pensamento e à cultura, o que hoje se manifesta (e não escolho esta palavra por acaso) no campo da esquerda é algo de bem interessante e que merece ser lido com renovada atenção. Está claro que se compatibiliza mal com a posição dos autarcas de Felgueiras agarrados como lapas às franjas de poder que ainda detêm. É verdade também que estamos bastante desarmados para pensar o tenebroso caso político-jurídico-mediático em torno da pedofilia. Ou o que foi, na sua rede desmesurada, a concepção da Universidade Moderna. Mas se tais temas dominam a agenda da comunicação social, isso não deixa de nos exigir uma leitura mais distante e problematizante do que se vai publicando nestas áreas do pensamento de esquerda.

Temos uma já antiga revista (mas sou suspeito para falar dela, porque faço parte do conselho editorial) que dá pelo nome de "Finisterra" e que tem como director o nome agora tão celebrado de Eduardo Lourenço. Mas são António Reis e Fernando Pereira Marques que funcionam como os verdadeiros obreiros de um projecto que, no conjunto dos números já publicados, inclui textos de excepcional qualidade. No número de Outono (e por apelo lancinante de Pereira Marques no "JL" penso que o da Primavera apenas espera por um editorial do director, Eduardo Lourenço), temos como núcleo temático "A esquerda na encruzilhada" (com textos de Eduardo Lourenço, Guilherme d'Oliveira Martins, Fernando Pereira Marques, Joaquim Jorge Veiguinha e Filipe Nunes).

Entretanto, o sector renovador na área do PCP lançou-se no projecto de uma revista autónoma com um leque de participações muito diverso, a que deu o nome de "Ideias à Esquerda". Neste caso, o nº 1 corresponde à Primavera de 2003. A concepção é invulgarmente aberta e oscila entre a nota jornalística, o apontamento literário e a intervenção teórica. Para além de uma atenção particular em relação ao Brasil, com textos de Renato Lessa e Luiz Werneck Viana, temos um longo e admirável texto de Manuel Villaverde Cabral sobre "globalização, poder e cidadania".

Ligados a este projecto temos figuras tão diversas como Diana Andringa, José Bragança de Miranda, Mário de Carvalho, Vítor Serrão, Edgar Correia, Eugénio Lisboa, João Mário Grilo, João Teixeira Lopes, José Manuel Sobral, José Manuel Pureza, Mário Vieira de Carvalho, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Viriato Soromenho Marques ou Helena Roseta. A seguir com o maior interesse.

Por fim, a revista "Manifesto", que, tendo como director Miguel Portas, parece ligada ao Bloco de Esquerda. Vai também no nº 2, tem como directora adjunta Ana Drago e como editor Daniel Oliveira. Em princípio publica três números por ano. É precisamente a este número 2 que fui buscar o título para esta crónica: o tema essencial é "Crise e renascimento da política", e é nestas páginas que, de uma forma mais convicta e empolgada, encontramos a defesa da ideia de que há uma nova política. Diga-se de passagem que aqueles comentadores ou homens políticos que pretendem "arrumar" o Bloco de Esquerda no campo de um esquerdismo fora de prazo, feito de restos mal digeridos de maoísmo e trotskismo deveriam ser obrigados a recitar por inteiro, dias a a fio, algumas destas páginas: poupavam na propensão para a asneira.

O que aqui se encontra é uma mudança radical de referências que tem por pólos as experiências de democracia participativa do Partido Trabalhista no Brasil assim como a vitória de Lula nas eleições presidenciais, e por outro lado os movimentos de globalização alternativa e de contestação à guerra no Iraque e ao projecto imperial americano. Este nº 2 tem um artigo inicial (e muito importante) de Miguel Portas e José Manuel Pureza, uma mesa-redonda coordenada por Daniel Oliveira, com Medeiros Ferreira, António José Teixeira e António Cluny (título: "Os suspeitos do costume"), textos para uma reinvenção da democracia, de Nuno Ramos de Almeida. José Guilherme ou Luís Guerreiro, e uma entrevista com o brasileiro Luís Dulci, e um conjunto de três textos teóricos: o de Tarso Genro (que se pergunta até que ponto se pode avançar no aprofundamento da democracia sem que a própria democracia se volte perversamente contra si mesma), o de José Rebelo (reflexão no âmbito da análise do discurso) e por fim um ensaio extremamente sugestivo de José Maria Castro Caldas, intitulado "Não houve deles fala nem entendimento que aproveitasse".

É convicção dos organizadores deste "dossier" que é preciso reflectir sobre "o extraordinário momento que vivemos" e que estamos "numa mudança epocal: uma grande mudança, qualitativa, que assinala o fim do mundo herdado pelo final da II Grande Guerra". É ponto sobre o qual estou inteiramente de acordo. E parece-me interessante que os grandes partidos da esquerda tradicional se tenham movido tão lentamente em relação a estas problemáticas. Mas com raras excepções (entre as quais a mais notável foi sem dúvida Mário Soares), PS e PCP procuraram mais conter do que desenvolver as tendências claramente emergentes (e daí as oscilações verificadas na participação do PS nas manifestações contra a guerra ao mesmo tempo que o PS só parecia conceber estar presente se pudesse controlar os acontecimentos).

Como dizia há dias na sua crónica no "Diário de Notícias" Sarsfield Cabral, os objectivos políticos que justificaram a intervenção dos EUA no Iraque revelaram-se politicamente desastrosos e mesmo em relação ao carácter ditatorial do regime não havia um verdadeiro plano de democratização. A isto junta-se uma crise da própria qualidade da democracia que se vive (em Portugal, particularmente agravada). Daí a tese axial deste número da revista "Movimento": "A 'operação libertação' aumentou exponencialmente a crise da política, enquanto exercício do poder desvinculado da vontade popular. Mas, paradoxalmente, é este mesmo desrespeito que está a provocar o renascimento de uma 'outra' política, a que se apropria dos espaços públicos e que reclama o fim da agressão."

Todos nós temos consciência de que "o tratamento dado aos prisioneiros de Guantanamo, a contradição entre a pressão feita pelos EUA para a entrega de Milosevic a um tribunal internacional e o boicote que os próprios EUA fazem ao Tribunal Penal Internacional, que o próprio conceito de 'guerra preventiva' e a doutrina da afirmação da pura lógica da força pelos EUA e ainda o facto de os países europeus terem participado na guerra contra a vontade expressa das opiniões públicas são factores claros de uma deterioração da qualidade da democracia. Em Portugal, os abusos vergonhosos na utilização da prisão preventiva e a escandalosa elasticidade nas autorizações para escutas telefónicas vieram dar consciência aos cidadãos de que os direitos democráticos estavam longe de se apresentarem garantidos. Teria assim surgido, no decurso de impressionantes manifestações em todo o mundo, a ideia de um povo global. E que a partir desta nova realidade havia quem preenchesse o lugar de antagonista deixado vago pelo esvaziamento do papel do proletariado. Isto passaria também por um regresso da juventude enquanto categoria de mobilização política", como se pretende demonstrar no artigo de Ana Drago e João Teixeira Lopes: "Bem-vindos ao presente - Uma nova juventude em busca de uma acção política habitável".

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