"O Serviço Cívico abriu a possibilidade do 'contacto dos estudantes com o povo'"

10-08-2004
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"O Serviço Cívico Abriu a Possibilidade do 'Contacto dos Estudantes com o Povo'"

Sábado, 17 de Julho de 2004 %Margarida Medeiros No Outono de 1974, a vaga de alunos inscritos para a universidade ultrapassava largamente os números habituais. À espera de entrar, os candidatos ouvem no Natal, pela televisão, o ministro anunciar que as aulas do 1º ano não irão abrir. Em vez disso, será instituído um "serviço cívico nacional". Esta notícia, recebida entusiasticamente por muitos, imbuídos do espírito revolucionário da época, foi também duramente contestada, em diferentes sectores sociais e políticos. Numa época de intensificação de estudos sobre a situação política do pós-25 de Abril, o livro de Luísa Tiago de Oliveira "Estudantes e Povo na Revolução - o Serviço Cívico Estudantil" vem trazer um contributo extremamente importante para a história deste período. Partindo de fontes em grande parte orais e de documentação diversa recolhida arduamente, por vezes arrumada "na casa de banho do Ministério da Educação", analisa a complexidade das razões que conduziram os estudantes a aderir a esta medida governamental e apresenta um "estudo de caso" sobre um projecto específico de serviço cívico, o "Plano Trabalho e Cultura". Tratou-se de uma acção de recolha etnográfica e de intervenção junto das populações, da responsabilidade de Michel Giacometti, que envolveu 124 estudantes, organizados em equipas de quatro elementos com destino às mais remotas aldeias, "ao encontro do povo" e da sua cultura. Este livro enquadra esta experiência, fruto de uma conjuntura revolucionária, a nível nacional e internacional, e, o que é talvez o mais relevante, traz à superfície toda uma série de confrontos culturais entre os estudantes e o "povo", no decorrer dessa experiência. O PÚBLICO ouviu a autora sobre aspectos específicos da concretização deste projecto. Público - No seu entender, o serviço cívico português não foi obra de nenhuma organização política particular, ao contrário do que constitui o senso comum da época, que sempre o associou ao PCP... Luísa Tiago de Oliveira - Não, o Serviço Cívico Estudantil (SCE) não decorre de nenhum ponto programático desse partido. Surge nas franjas de várias correntes políticas: a socialista-republicana (como Vitorino Magalhães Godinho), a católica progressista e a comunista, e nem todas estas correntes estavam inteiramente de acordo sobre essa matéria. O que aconteceu foi que os que tinham responsabilidades políticas tiveram de resolver um problema: a incapacidade de os estabelecimentos de ensino superior acolherem todos os candidatos desse ano ao primeiro ano. Em 73/74, houve menos de 14.000 inscrições no 1º ano do ensino superior; em 74/75 estimavam-se 28.000 candidatos... Era uma problema de incapacidade estrutural... P. - ... mas não só, porque apesar de o SCE só ter sido oficializado praticamente no final do ano lectivo de 74/75, muitos acabaram por fazê-lo. Porquê? R. - A pesquisa das leis revelou que o SCE nesse primeiro ano de vigência foi facultativo e houve uma boa parte dos seus eventuais candidatos que não o fizeram. O SCE em 74/75 foi desempenhado por cerca de 9000 pessoas e o número dos que entraram na universidade no ano seguinte (75/76) foi sensivelmente 25.000. O que quer dizer uma percentagem pequena, mas nessa altura havia muitos trabalhadores estudantes, bem como militares que ingressavam no ensino superior, e em qualquer dos casos estavam dispensados de o fazer. A contestação surgiu de alguns sectores de esquerda não situada na esfera do PCP, mas nas frequentes manifestações às instalações do SCE (que mudou cinco vezes) teria sido fácil inviabilizá-lo, já que os papéis se encontravam em pilhas pelo chão acima... Mas voltando à sua questão, é de realçar que muita gente o fez ainda antes de ele estar legislado, o que mostra um interesse pela questão ou pelas possibilidades que este permitia. P. - Possibilidades como? R. - Possibilidades de "contacto com o povo", de intervir politicamente, de sair de casa dos pais, de "andar de comboio", possibilidade de "vir a Lisboa pela primeira vez" (estou a citar), ou de pela primeira vez contactar com "o campo", para quem nunca tinha saído da cidade. P. - Portanto, SCE foi uma oportunidade para experiências de vida... R. - O SCE é, segundo o testemunho de alguns, a esperança numa mudança, que não é expressa da mesma maneira por todos, mas que é claramente produto da conjuntura revolucionária. P. - Como é que a adesão e cumprimento do SCE se liga especificamente à conjuntura revolucionária? R. - De muitas maneiras. Há pessoas que até são contra o serviço cívico pelo seu posicionamento político, mas há outros que pelo contrário ultrapassam a sua corrente política, ou congregam as suas posições políticas com o desempenho do SCE. Mas digamos que a matriz de recusa, de adesão ou simples cumprimento pode referenciar-se a parâmetros ideológicos. No entanto, no terreno, ultrapassa-os. Porque a leitura da realidade deixa de ser através dos "óculos" da ideologia da luta de classes, alargando-se a um envolvimento com as questões sociais dos velhos "com direito a uma morte digna", das mulheres, da pobreza e, sobretudo, das crianças. Este tema é obviamente um tema que decorre da conjuntura revolucionária. P. - Por que escolheu fazer um "estudo de caso"? R. - Por ser um caso limite onde se podem ver as áreas de embate entre estudantes, na sua maioria urbanos, e camponeses. Primeiro, por ser uma acção do serviço cívico que obrigou à saída, por três meses, dos estudantes, em grupo de quatro, para habitarem nas mais remotas aldeias, tendo que se "desenrascar" em contextos profundamente diferentes, com maneiras de comer, de dormir, de se lavarem completamente diferentes do que estavam habituados. Segundo, porque se trata de uma recolha etnográfica, o que implicava a valorização da "cultura popular". Em vez de alfabetizar ou ensinar a combater a cólera, o estudante vai aprender as mezinhas populares ou gravar autos da paixão. P. - Sendo um tema que se baseia em larga medida na história oral, quais foram as dificuldades específicas encontradas nesta investigação? R. - A investigação teve de se basear em história oral, não só porque esta era obviamente importante para perceber o lado vivido das experiências, como por haver problemas com as fontes mais tradicionais da história: os arquivos de fontes primárias [documento da época] não estavam classificados nos arquivos do Ministério da Educação; existiam aos molhos, nas casas de banho, nos corredores, dispensas... ou então havia cópias em casas particulares. Essa documentação está agora toda no Centro de Documentação 25 de Abril, de Coimbra. Este foi, aliás, um dos saldos da minha investigação. P. - O seu objecto de investigação pode inserir-se num conjunto mais vasto de investigações que têm vindo a ser feitas sobre as questões relativas à revolução de Abril e ao pós-revolução. Este é um campo emergente na história de Portugal? R. - Sim, estão a surgir inúmeras investigações sobre o assunto, como a de Inácia Rezola, sobre o Conselho da Revolução, a de Sónia Almeida, sobre as campanhas de dinamização cultural do MFA. Mas já saíram outras obras, como, por exemplo, a de Medeiros Ferreira, sobre o comportamento dos militares em momentos-chave do século XX português, a de Duran Muñoz e Diego Palacios Cerezales, sobre movimentos sociais na conjuntura revolucionária do 25 de Abril. E outras mais antigas, como a de Charles Downes ou Nancy Bermeo. O estrangeiros começaram estas investigações antes de nós. "Estudantes e Povo na Revolução - O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977)"

Autor Luísa Tiago de Oliveira

Editor Celta Editora

... págs., ... euros

OUTROS TÍTULOS EM MIL FOLHAS ENTREVISTA

"O Serviço Cívico abriu a possibilidade do 'contacto dos estudantes com o povo'"

FICÇÃO

Do Não-Ser ao Não-Pensar

Quase gosto deste livro

POESIA

Petrarca na poesia portuguesa contemporânea

ENSAIOS

A longa guerra do homem contra o mosquito

MÚSICA CLÁSSICA

GEMINIANI

Concertos

Vargas, António Pinho (n. Vila Nova de Gaia, 1951)

Da fotografia às artes visuais

ARTES PLÁSTICAS

ARQUITECTURA

Sonho feliz de cidade

"O Serviço Cívico Abriu a Possibilidade do 'Contacto dos Estudantes com o Povo'"

Sábado, 17 de Julho de 2004 %Margarida Medeiros No Outono de 1974, a vaga de alunos inscritos para a universidade ultrapassava largamente os números habituais. À espera de entrar, os candidatos ouvem no Natal, pela televisão, o ministro anunciar que as aulas do 1º ano não irão abrir. Em vez disso, será instituído um "serviço cívico nacional". Esta notícia, recebida entusiasticamente por muitos, imbuídos do espírito revolucionário da época, foi também duramente contestada, em diferentes sectores sociais e políticos. Numa época de intensificação de estudos sobre a situação política do pós-25 de Abril, o livro de Luísa Tiago de Oliveira "Estudantes e Povo na Revolução - o Serviço Cívico Estudantil" vem trazer um contributo extremamente importante para a história deste período. Partindo de fontes em grande parte orais e de documentação diversa recolhida arduamente, por vezes arrumada "na casa de banho do Ministério da Educação", analisa a complexidade das razões que conduziram os estudantes a aderir a esta medida governamental e apresenta um "estudo de caso" sobre um projecto específico de serviço cívico, o "Plano Trabalho e Cultura". Tratou-se de uma acção de recolha etnográfica e de intervenção junto das populações, da responsabilidade de Michel Giacometti, que envolveu 124 estudantes, organizados em equipas de quatro elementos com destino às mais remotas aldeias, "ao encontro do povo" e da sua cultura. Este livro enquadra esta experiência, fruto de uma conjuntura revolucionária, a nível nacional e internacional, e, o que é talvez o mais relevante, traz à superfície toda uma série de confrontos culturais entre os estudantes e o "povo", no decorrer dessa experiência. O PÚBLICO ouviu a autora sobre aspectos específicos da concretização deste projecto. Público - No seu entender, o serviço cívico português não foi obra de nenhuma organização política particular, ao contrário do que constitui o senso comum da época, que sempre o associou ao PCP... Luísa Tiago de Oliveira - Não, o Serviço Cívico Estudantil (SCE) não decorre de nenhum ponto programático desse partido. Surge nas franjas de várias correntes políticas: a socialista-republicana (como Vitorino Magalhães Godinho), a católica progressista e a comunista, e nem todas estas correntes estavam inteiramente de acordo sobre essa matéria. O que aconteceu foi que os que tinham responsabilidades políticas tiveram de resolver um problema: a incapacidade de os estabelecimentos de ensino superior acolherem todos os candidatos desse ano ao primeiro ano. Em 73/74, houve menos de 14.000 inscrições no 1º ano do ensino superior; em 74/75 estimavam-se 28.000 candidatos... Era uma problema de incapacidade estrutural... P. - ... mas não só, porque apesar de o SCE só ter sido oficializado praticamente no final do ano lectivo de 74/75, muitos acabaram por fazê-lo. Porquê? R. - A pesquisa das leis revelou que o SCE nesse primeiro ano de vigência foi facultativo e houve uma boa parte dos seus eventuais candidatos que não o fizeram. O SCE em 74/75 foi desempenhado por cerca de 9000 pessoas e o número dos que entraram na universidade no ano seguinte (75/76) foi sensivelmente 25.000. O que quer dizer uma percentagem pequena, mas nessa altura havia muitos trabalhadores estudantes, bem como militares que ingressavam no ensino superior, e em qualquer dos casos estavam dispensados de o fazer. A contestação surgiu de alguns sectores de esquerda não situada na esfera do PCP, mas nas frequentes manifestações às instalações do SCE (que mudou cinco vezes) teria sido fácil inviabilizá-lo, já que os papéis se encontravam em pilhas pelo chão acima... Mas voltando à sua questão, é de realçar que muita gente o fez ainda antes de ele estar legislado, o que mostra um interesse pela questão ou pelas possibilidades que este permitia. P. - Possibilidades como? R. - Possibilidades de "contacto com o povo", de intervir politicamente, de sair de casa dos pais, de "andar de comboio", possibilidade de "vir a Lisboa pela primeira vez" (estou a citar), ou de pela primeira vez contactar com "o campo", para quem nunca tinha saído da cidade. P. - Portanto, SCE foi uma oportunidade para experiências de vida... R. - O SCE é, segundo o testemunho de alguns, a esperança numa mudança, que não é expressa da mesma maneira por todos, mas que é claramente produto da conjuntura revolucionária. P. - Como é que a adesão e cumprimento do SCE se liga especificamente à conjuntura revolucionária? R. - De muitas maneiras. Há pessoas que até são contra o serviço cívico pelo seu posicionamento político, mas há outros que pelo contrário ultrapassam a sua corrente política, ou congregam as suas posições políticas com o desempenho do SCE. Mas digamos que a matriz de recusa, de adesão ou simples cumprimento pode referenciar-se a parâmetros ideológicos. No entanto, no terreno, ultrapassa-os. Porque a leitura da realidade deixa de ser através dos "óculos" da ideologia da luta de classes, alargando-se a um envolvimento com as questões sociais dos velhos "com direito a uma morte digna", das mulheres, da pobreza e, sobretudo, das crianças. Este tema é obviamente um tema que decorre da conjuntura revolucionária. P. - Por que escolheu fazer um "estudo de caso"? R. - Por ser um caso limite onde se podem ver as áreas de embate entre estudantes, na sua maioria urbanos, e camponeses. Primeiro, por ser uma acção do serviço cívico que obrigou à saída, por três meses, dos estudantes, em grupo de quatro, para habitarem nas mais remotas aldeias, tendo que se "desenrascar" em contextos profundamente diferentes, com maneiras de comer, de dormir, de se lavarem completamente diferentes do que estavam habituados. Segundo, porque se trata de uma recolha etnográfica, o que implicava a valorização da "cultura popular". Em vez de alfabetizar ou ensinar a combater a cólera, o estudante vai aprender as mezinhas populares ou gravar autos da paixão. P. - Sendo um tema que se baseia em larga medida na história oral, quais foram as dificuldades específicas encontradas nesta investigação? R. - A investigação teve de se basear em história oral, não só porque esta era obviamente importante para perceber o lado vivido das experiências, como por haver problemas com as fontes mais tradicionais da história: os arquivos de fontes primárias [documento da época] não estavam classificados nos arquivos do Ministério da Educação; existiam aos molhos, nas casas de banho, nos corredores, dispensas... ou então havia cópias em casas particulares. Essa documentação está agora toda no Centro de Documentação 25 de Abril, de Coimbra. Este foi, aliás, um dos saldos da minha investigação. P. - O seu objecto de investigação pode inserir-se num conjunto mais vasto de investigações que têm vindo a ser feitas sobre as questões relativas à revolução de Abril e ao pós-revolução. Este é um campo emergente na história de Portugal? R. - Sim, estão a surgir inúmeras investigações sobre o assunto, como a de Inácia Rezola, sobre o Conselho da Revolução, a de Sónia Almeida, sobre as campanhas de dinamização cultural do MFA. Mas já saíram outras obras, como, por exemplo, a de Medeiros Ferreira, sobre o comportamento dos militares em momentos-chave do século XX português, a de Duran Muñoz e Diego Palacios Cerezales, sobre movimentos sociais na conjuntura revolucionária do 25 de Abril. E outras mais antigas, como a de Charles Downes ou Nancy Bermeo. O estrangeiros começaram estas investigações antes de nós. "Estudantes e Povo na Revolução - O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977)"

Autor Luísa Tiago de Oliveira

Editor Celta Editora

... págs., ... euros

OUTROS TÍTULOS EM MIL FOLHAS ENTREVISTA

"O Serviço Cívico abriu a possibilidade do 'contacto dos estudantes com o povo'"

FICÇÃO

Do Não-Ser ao Não-Pensar

Quase gosto deste livro

POESIA

Petrarca na poesia portuguesa contemporânea

ENSAIOS

A longa guerra do homem contra o mosquito

MÚSICA CLÁSSICA

GEMINIANI

Concertos

Vargas, António Pinho (n. Vila Nova de Gaia, 1951)

Da fotografia às artes visuais

ARTES PLÁSTICAS

ARQUITECTURA

Sonho feliz de cidade

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