"Correio do Ribatejo" Uma viagem no tempo

15-06-2003
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"Correio do Ribatejo" Uma Viagem no Tempo

Por ELISABETE VILAR

Domingo, 15 de Junho de 2003 Numa esquina da Rua Serpa Pinto, em Santarém, há uma casa totalmente insuspeita que é uma máquina de viajar no tempo. Transpondo a entrada, fica-se com a impressão de se ter recuado uns bons anos e invadido um escritório ao género do de "Alves & Cia", de Eça de Queirós. Cheira a papéis antigos, que se acumulam, amarelecidos, nas prateleiras de madeira grossa. E também a tinta e produtos de impressão, exalados por máquinas pesadas que já mais ninguém tem. E até os três ou quatro computadores a uso são modelos que muitos jovens não sabem que existiram. Espalhada pelo espaço - uma sala ampla e um pequeno escritório para o qual se passa por uma porta envidraçada - uma dúzia de homens de dedos completamente negros dobra folhas de jornais. Esta é a sede do jornal regional mais antigo do continente português, o "Correio do Ribatejo" que, em Abril, comemorou 112 anos. A publicação conserva mais do que memórias: mantém vivas as metodologias e hábitos herdados do tempo do antigo proprietário, desaparecido há cerca de três décadas. Como o facto, raríssimo na actualidade, de todo o processo de feitura do jornal, incluíndo a sua impressão, estarem concentrados na sede. Ou o caso, hoje muito pouco visto, de serem os trabalhadores do jornal a dobrá-lo manualmente, folha a folha. Os actuais donos não se distinguem dos empregados: nem na sua apresentação, simples e acessível, nem nas suas tarefas - é que ambos estão ali, integrados na "linha de montagem", dobrando folhas impressas lado a lado com qualquer funcionário, sem distinções hierárquicas ou sequer de aparência. Mário Lopes e Manuel Oliveira Canelas são os sobreviventes do trio de empregados que, há 30 anos, recebeu a missão de prosseguir a publicação do "Correio do Ribatejo". O jornal foi fundado em 1891 por João Arruda, que, dois anos antes, lançara já "O Santareno". O primeiro título do semanário foi "Correio da Estremadura" tendo-se transformado em "Correio do Ribatejo" em 1945, seguindo a reforma administrativa que em 1937 "colocou" Santarém na província com aquele nome. Seguindo uma tradição que hoje não se pratica já, João Arruda foi proprietário e director do "Correio", onde publicou, entre muitos textos, relatos apaixonantes das exóticas viagens que empreendia. Em 1934, a sua morte abriu caminho ao filho, o dinâmico Virgílio Arruda, correspondente da Academia Portuguesa de História e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, também ele muito interessado pelas viagens e pela escrita. Nas paredes do "Correio" conservam-se as fotografias de ambos, ladeando a medalha de comendador da Ordem de Mérito, atribuída a João Arruda. De um lado, a imagem do pai, sério, de bigodes retorcidos. Do outro, a foto do filho, tal e qual o Vasco Santana, de gordas bochechas e cabelo ondulado, penteado para trás, com uns óculos redondinhos e ar cómico. Virgílio Arruda, que morreu sem herdeiros, resolveu perpetuar a obra deixando-a entregue aos três mais antigos trabalhadores da casa - um dos quais também já falecido, entretanto. Os actuais donos, Mário e Manuel, mantiveram quase tudo como estava e se fazia naqueles tempos. Sabem que a sua maneira de fazer as coisas é por muitos considerada ultrapassada e ineficaz. Mas com mais de 50 anos de casa e saudosos do "bom patrão" que tiveram, seria quase uma heresia transformar o "Correio do Ribatejo" noutra coisa qualquer. E a verdade é que há algo de mais humano e enriquecedor nessa escolha. "É melhor não mexer muito", sentencia Mário Lopes, que se iniciou no jornal como aprendiz de tipografia aos 12 anos e não lembra uma única história de invejas ou falta de camaradagem. No primeiro de Maio, "o único dia que era nosso", faziam pescarias e jantavam juntos. O facto de serem homens ajudava ao tipo de convívio. Na história do semanário só uma vez, e por pouco tempo, lá trabalhou uma mulher. Uma experiência que, não tendo deixado memórias negativas, também não chegou a marcar positivamente o ambiente. A par deste hábito, outro uso conservado pelos herdeiros do título foi o de honestidade para com os trabalhadores. "Não há empregados a recibos verdes nem estágios não remunerados. Quem aqui trabalha está no quadro", diz o actual director, João Paulo Narciso. Coisas que ficaram dos tempos antigos, como as máquinas tipográficas, os arquivos, as fotos antigas e os tipos em metal e madeira que vão acumulando pó ao lado de máquinas mais recentes. Um património que Narciso - director desde 2001 mas ligado ao jornal há nove anos - gostava de ver valorizado. Até porque foram já muitas as vezes que estudantes, investigadores e simples curiosos desfolharam edições antigas à cata de árvores genealógicas, relatos de acontecimentos perdidos no tempo e referências à herança histórica da região e até do país. João Paulo Narciso, que foi também colaborador de uma rádio local e do PÚBLICO, equaciona a criação de um museu nas instalações do "Correio do Ribatejo", transferindo-se a área de trabalho para o primeiro andar, hoje desocupado. A ideia do director, no qual os proprietários vêem "um puto de 37 anos", é renovar a publicação, "para a qual ainda há público", e "respeitar a memória dos fundadores, expondo o acervo fotográfico, os números do jornal e os equipamentos antigos". OUTROS TÍTULOS EM MEDIA "Correio do Ribatejo" Uma viagem no tempo

Um jornal sereno

As breves de antigamente

"Correio do Ribatejo" Uma Viagem no Tempo

Por ELISABETE VILAR

Domingo, 15 de Junho de 2003 Numa esquina da Rua Serpa Pinto, em Santarém, há uma casa totalmente insuspeita que é uma máquina de viajar no tempo. Transpondo a entrada, fica-se com a impressão de se ter recuado uns bons anos e invadido um escritório ao género do de "Alves & Cia", de Eça de Queirós. Cheira a papéis antigos, que se acumulam, amarelecidos, nas prateleiras de madeira grossa. E também a tinta e produtos de impressão, exalados por máquinas pesadas que já mais ninguém tem. E até os três ou quatro computadores a uso são modelos que muitos jovens não sabem que existiram. Espalhada pelo espaço - uma sala ampla e um pequeno escritório para o qual se passa por uma porta envidraçada - uma dúzia de homens de dedos completamente negros dobra folhas de jornais. Esta é a sede do jornal regional mais antigo do continente português, o "Correio do Ribatejo" que, em Abril, comemorou 112 anos. A publicação conserva mais do que memórias: mantém vivas as metodologias e hábitos herdados do tempo do antigo proprietário, desaparecido há cerca de três décadas. Como o facto, raríssimo na actualidade, de todo o processo de feitura do jornal, incluíndo a sua impressão, estarem concentrados na sede. Ou o caso, hoje muito pouco visto, de serem os trabalhadores do jornal a dobrá-lo manualmente, folha a folha. Os actuais donos não se distinguem dos empregados: nem na sua apresentação, simples e acessível, nem nas suas tarefas - é que ambos estão ali, integrados na "linha de montagem", dobrando folhas impressas lado a lado com qualquer funcionário, sem distinções hierárquicas ou sequer de aparência. Mário Lopes e Manuel Oliveira Canelas são os sobreviventes do trio de empregados que, há 30 anos, recebeu a missão de prosseguir a publicação do "Correio do Ribatejo". O jornal foi fundado em 1891 por João Arruda, que, dois anos antes, lançara já "O Santareno". O primeiro título do semanário foi "Correio da Estremadura" tendo-se transformado em "Correio do Ribatejo" em 1945, seguindo a reforma administrativa que em 1937 "colocou" Santarém na província com aquele nome. Seguindo uma tradição que hoje não se pratica já, João Arruda foi proprietário e director do "Correio", onde publicou, entre muitos textos, relatos apaixonantes das exóticas viagens que empreendia. Em 1934, a sua morte abriu caminho ao filho, o dinâmico Virgílio Arruda, correspondente da Academia Portuguesa de História e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, também ele muito interessado pelas viagens e pela escrita. Nas paredes do "Correio" conservam-se as fotografias de ambos, ladeando a medalha de comendador da Ordem de Mérito, atribuída a João Arruda. De um lado, a imagem do pai, sério, de bigodes retorcidos. Do outro, a foto do filho, tal e qual o Vasco Santana, de gordas bochechas e cabelo ondulado, penteado para trás, com uns óculos redondinhos e ar cómico. Virgílio Arruda, que morreu sem herdeiros, resolveu perpetuar a obra deixando-a entregue aos três mais antigos trabalhadores da casa - um dos quais também já falecido, entretanto. Os actuais donos, Mário e Manuel, mantiveram quase tudo como estava e se fazia naqueles tempos. Sabem que a sua maneira de fazer as coisas é por muitos considerada ultrapassada e ineficaz. Mas com mais de 50 anos de casa e saudosos do "bom patrão" que tiveram, seria quase uma heresia transformar o "Correio do Ribatejo" noutra coisa qualquer. E a verdade é que há algo de mais humano e enriquecedor nessa escolha. "É melhor não mexer muito", sentencia Mário Lopes, que se iniciou no jornal como aprendiz de tipografia aos 12 anos e não lembra uma única história de invejas ou falta de camaradagem. No primeiro de Maio, "o único dia que era nosso", faziam pescarias e jantavam juntos. O facto de serem homens ajudava ao tipo de convívio. Na história do semanário só uma vez, e por pouco tempo, lá trabalhou uma mulher. Uma experiência que, não tendo deixado memórias negativas, também não chegou a marcar positivamente o ambiente. A par deste hábito, outro uso conservado pelos herdeiros do título foi o de honestidade para com os trabalhadores. "Não há empregados a recibos verdes nem estágios não remunerados. Quem aqui trabalha está no quadro", diz o actual director, João Paulo Narciso. Coisas que ficaram dos tempos antigos, como as máquinas tipográficas, os arquivos, as fotos antigas e os tipos em metal e madeira que vão acumulando pó ao lado de máquinas mais recentes. Um património que Narciso - director desde 2001 mas ligado ao jornal há nove anos - gostava de ver valorizado. Até porque foram já muitas as vezes que estudantes, investigadores e simples curiosos desfolharam edições antigas à cata de árvores genealógicas, relatos de acontecimentos perdidos no tempo e referências à herança histórica da região e até do país. João Paulo Narciso, que foi também colaborador de uma rádio local e do PÚBLICO, equaciona a criação de um museu nas instalações do "Correio do Ribatejo", transferindo-se a área de trabalho para o primeiro andar, hoje desocupado. A ideia do director, no qual os proprietários vêem "um puto de 37 anos", é renovar a publicação, "para a qual ainda há público", e "respeitar a memória dos fundadores, expondo o acervo fotográfico, os números do jornal e os equipamentos antigos". OUTROS TÍTULOS EM MEDIA "Correio do Ribatejo" Uma viagem no tempo

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