Carlos Manuel Benfica-Boavista

04-03-2004
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Carlos Manuel Benfica-Boavista

Domingo, 22 de Fevereiro de 2004

%Paulo Anunciação

Ao longo da minha carreira, estive em grandes jogos e marquei muitos golos importantes, mas tenho a certeza de que o meu nome ficará para sempre associado à noite mágica de 16 de Outubro de 1985, em Estugarda, na Alemanha. A selecção portuguesa venceu, então, graças ao golo que marquei aos 53 minutos - um tiro que encaixou no ângulo superior esquerdo da baliza de Harald Schumacher - e qualificou-se surpreendentemente para o Mundial de 86, no México. Foi uma vitória inesquecível. Três dias antes, a nossa equipa jogara muito mal frente à selecção de Malta. Ganhámos por 3-2, aflitos, com o Gomes a marcar o golo decisivo quase no fim do jogo. A imprensa portuguesa caíu-nos em cima. Toda a gente garantia que aquela mesma equipa que quase escorregou frente aos pequeninos de Malta iria ser cilindrada, certamente, pelos gigantes alemães.

Mas não foi. Durante a viagem para o Neckarstadion, em Estugarda, recebemos a notícia, ainda no autocarro, de que a Suécia tinha acabado de perder o jogo na Checoslováquia. Foi um momento importante, que nos reforçou o alento. Mexeu connosco. Ficámos a saber, logo ali, que uma vitória na Alemanha colocaria Portugal de forma automática na fase final do campeonato do mundo. No balneário, depois da palestra do treinador José Torres, notei que havia qualquer coisa de especial nos olhos dos nossos jogadores, uma vontade, um querer, uma união muito grande.

A verdade é que Portugal jogou muito bem, apesar de alguns de nós - como o Mário Jorge, o José António, o Frederico ou o José Rafael - não terem muita experiência de selecção. A Alemanha já estava apurada mas alinhou, mesmo assim, na máxima força, com estrelas como Rummenigge, Allofs, Littbarski ou Briegel. Fizemos uma primeira parte muito boa. Estivemos bem na marcação, fomos rigorosos tacticamente e controlámos o jogo. A Alemanha não conseguia entrar e nós saíamos bem no contra, chegando a criar duas ou três oportunidades. Depois do golo, recuámos demasiado, quase para dentro da área. Passámos um mau bocado. Os alemães eram muito fortes no futebol aéreo e foi um enorme sufoco até ao fim. O Bento fez grandes defesas, duas ou três bolas embateram na madeira e tivemos alguma sorte. Mas derrotámos uma selecção que ao longo das décadas não tinha perdido um único jogo em casa a contar para o Mundial.

Nessa noite, depois do jogo, acho que nem cheguei a sair do bar do hotel. Fomos rodeados por centenas de emigrantes portugueses e foi impressionante sentir a alegria de todas aquelas pessoas. Marcou-me muito. Eles estavam eufóricos e já esperavam, ansiosamente, pela manhã seguinte e pelo momento em que poderiam entrar nas fábricas alemãs de cachecol português e enorme sorriso nos lábios. Foi uma das experiências mais comoventes que eu vivi ao longo da minha carreira.

Outro jogo que recordo com um carinho particular foi uma vitória do Barreirense, por 3-0, no campo do Boavista. Nessa altura, em Outubro de 1978, eu tinha apenas 20 anos e ainda trabalhava todos os dias como operário nas oficinas da CP. Treinava à noite e jogava ao fim-de-semana. O Barreirense, nessa época, tinha uma equipa forte, com jogadores como o Arnaldo, o Coentro Faria, o Frederico e o Araújo. O treinador, Manuel Oliveira, era uma raposa sabida que levou o Barreirense, no final da primeira volta, ao terceiro lugar do campeonato. Nesse jogo, frente ao Boavista, fizemos uma grande exibição e foi, certamente, um dos melhores jogos da minha carreira. Quando fui substituído, a dois minutos do fim, recebi uma ovação enorme de todo o público da casa. Poucos dias depois, o jornal "A Bola" publicava uma reportagem sobre mim, com fotografias tiradas nas oficinas da CP.

O jogo da minha vida, no entanto, tem um cariz totalmente diferente. Nele joguei apenas 30 minutos e a minha equipa, o Benfica, perdeu em casa com o Boavista. No início da época de 1979-80, eu tentava afirmar-me na primeira equipa da Luz. Em geral entrava para jogar alguns minutos no final das partidas. Na 11ª jornada, no entanto, o Alves e o Chalana não puderam jogar e eu entrei como titular frente ao Boavista. Estava a jogar muito bem, a fazer boas aberturas e era, provavelmente, o melhor em campo. Mas o ambiente estava muito tenso porque o Benfica perdera na Póvoa do Varzim na jornada anterior. Depois de meia hora de jogo ainda não havia golos e o treinador Mário Wilson decidiu substituir-me pelo Cavungi. A ideia talvez fosse boa, tirar um médio e abrir a frente de ataque. Mas o público não gostou. A minha substituição foi recebida com uma assobiadela infernal. O Boavista acabou por vencer e no final os sócios queriam bater no Mário Wilson. Por ironia do destino, porém, aquela derrota lançou definitivamente a minha carreira. Tinha 21 anos e nunca mais deixei de ser titular da equipa do Benfica.

Jogo

25 de Novembro de 1979

Estádio da Luz (Lisboa)

Benfica - Boavista 1-2

11ª jornada do campeonato nacional da 1ª Divisão (1979-80)

Equipas

Benfica: Bento; Bastos Lopes, Humberto Coelho (cap.), Alhinho e Alberto; Nené, Carlos Manuel (30' Cavungi) e Shéu; Fonseca, Reinaldo e Jorge Gomes (46' Toni)

Treinador Mário Wilson

Boavista Matos; Barbosa, Artur (cap.), Adão e Taí; Almeida, Eliseu, Ailton e Folha (81' Jarbas); Júlio (75' Moinhos) e Vítor Baptista

Treinador Mário Lino

Golos

Júlio (40'), Vítor Baptista (41'), Cavungi (90')

Perfil Jogador

Carlos Manuel Correia dos Santos nasceu na Moita (1958) e começou a jogar futebol nas equipas juvenis da CUF numa altura em que já trabalhava como operário da CP. Aos 20 anos, com a camisola do Barreirense, foi uma das grandes revelações do campeonato nacional da 1ª Divisão de 1978-79. No ano seguinte foi contratado pelo Benfica. Permaneceu quase nove épocas no Estádio da Luz, conquistando quatro títulos nacionais e cinco Taças de Portugal. Carlos Manuel jogou posteriormente no Sion (Suíça), Sporting, Boavista e Estoril. Jogou 42 vezes (oito golos) pela selecção, incluindo as fases finais do Europeu de 1984, na França, e do Mundial de 1986, no México. Foi treinador de vários clubes, incluindo Sporting, Braga, Campomaiorense e Salgueiros. Actualmente vive perto de Alenquer e está desempregado. Como técnico, o jogo mais saboroso foi uma vitória (3-4) do Salgueiros, em 1997, no Estádio da Luz: "Foi um jogo extremamente bonito. Marcou-me muito. O Salgueiros fez uma época excepcional, terminámos no sexto lugar e não nos qualificámos para a Europa por uma unha negra", recorda.

Carlos Manuel Benfica-Boavista

Domingo, 22 de Fevereiro de 2004

%Paulo Anunciação

Ao longo da minha carreira, estive em grandes jogos e marquei muitos golos importantes, mas tenho a certeza de que o meu nome ficará para sempre associado à noite mágica de 16 de Outubro de 1985, em Estugarda, na Alemanha. A selecção portuguesa venceu, então, graças ao golo que marquei aos 53 minutos - um tiro que encaixou no ângulo superior esquerdo da baliza de Harald Schumacher - e qualificou-se surpreendentemente para o Mundial de 86, no México. Foi uma vitória inesquecível. Três dias antes, a nossa equipa jogara muito mal frente à selecção de Malta. Ganhámos por 3-2, aflitos, com o Gomes a marcar o golo decisivo quase no fim do jogo. A imprensa portuguesa caíu-nos em cima. Toda a gente garantia que aquela mesma equipa que quase escorregou frente aos pequeninos de Malta iria ser cilindrada, certamente, pelos gigantes alemães.

Mas não foi. Durante a viagem para o Neckarstadion, em Estugarda, recebemos a notícia, ainda no autocarro, de que a Suécia tinha acabado de perder o jogo na Checoslováquia. Foi um momento importante, que nos reforçou o alento. Mexeu connosco. Ficámos a saber, logo ali, que uma vitória na Alemanha colocaria Portugal de forma automática na fase final do campeonato do mundo. No balneário, depois da palestra do treinador José Torres, notei que havia qualquer coisa de especial nos olhos dos nossos jogadores, uma vontade, um querer, uma união muito grande.

A verdade é que Portugal jogou muito bem, apesar de alguns de nós - como o Mário Jorge, o José António, o Frederico ou o José Rafael - não terem muita experiência de selecção. A Alemanha já estava apurada mas alinhou, mesmo assim, na máxima força, com estrelas como Rummenigge, Allofs, Littbarski ou Briegel. Fizemos uma primeira parte muito boa. Estivemos bem na marcação, fomos rigorosos tacticamente e controlámos o jogo. A Alemanha não conseguia entrar e nós saíamos bem no contra, chegando a criar duas ou três oportunidades. Depois do golo, recuámos demasiado, quase para dentro da área. Passámos um mau bocado. Os alemães eram muito fortes no futebol aéreo e foi um enorme sufoco até ao fim. O Bento fez grandes defesas, duas ou três bolas embateram na madeira e tivemos alguma sorte. Mas derrotámos uma selecção que ao longo das décadas não tinha perdido um único jogo em casa a contar para o Mundial.

Nessa noite, depois do jogo, acho que nem cheguei a sair do bar do hotel. Fomos rodeados por centenas de emigrantes portugueses e foi impressionante sentir a alegria de todas aquelas pessoas. Marcou-me muito. Eles estavam eufóricos e já esperavam, ansiosamente, pela manhã seguinte e pelo momento em que poderiam entrar nas fábricas alemãs de cachecol português e enorme sorriso nos lábios. Foi uma das experiências mais comoventes que eu vivi ao longo da minha carreira.

Outro jogo que recordo com um carinho particular foi uma vitória do Barreirense, por 3-0, no campo do Boavista. Nessa altura, em Outubro de 1978, eu tinha apenas 20 anos e ainda trabalhava todos os dias como operário nas oficinas da CP. Treinava à noite e jogava ao fim-de-semana. O Barreirense, nessa época, tinha uma equipa forte, com jogadores como o Arnaldo, o Coentro Faria, o Frederico e o Araújo. O treinador, Manuel Oliveira, era uma raposa sabida que levou o Barreirense, no final da primeira volta, ao terceiro lugar do campeonato. Nesse jogo, frente ao Boavista, fizemos uma grande exibição e foi, certamente, um dos melhores jogos da minha carreira. Quando fui substituído, a dois minutos do fim, recebi uma ovação enorme de todo o público da casa. Poucos dias depois, o jornal "A Bola" publicava uma reportagem sobre mim, com fotografias tiradas nas oficinas da CP.

O jogo da minha vida, no entanto, tem um cariz totalmente diferente. Nele joguei apenas 30 minutos e a minha equipa, o Benfica, perdeu em casa com o Boavista. No início da época de 1979-80, eu tentava afirmar-me na primeira equipa da Luz. Em geral entrava para jogar alguns minutos no final das partidas. Na 11ª jornada, no entanto, o Alves e o Chalana não puderam jogar e eu entrei como titular frente ao Boavista. Estava a jogar muito bem, a fazer boas aberturas e era, provavelmente, o melhor em campo. Mas o ambiente estava muito tenso porque o Benfica perdera na Póvoa do Varzim na jornada anterior. Depois de meia hora de jogo ainda não havia golos e o treinador Mário Wilson decidiu substituir-me pelo Cavungi. A ideia talvez fosse boa, tirar um médio e abrir a frente de ataque. Mas o público não gostou. A minha substituição foi recebida com uma assobiadela infernal. O Boavista acabou por vencer e no final os sócios queriam bater no Mário Wilson. Por ironia do destino, porém, aquela derrota lançou definitivamente a minha carreira. Tinha 21 anos e nunca mais deixei de ser titular da equipa do Benfica.

Jogo

25 de Novembro de 1979

Estádio da Luz (Lisboa)

Benfica - Boavista 1-2

11ª jornada do campeonato nacional da 1ª Divisão (1979-80)

Equipas

Benfica: Bento; Bastos Lopes, Humberto Coelho (cap.), Alhinho e Alberto; Nené, Carlos Manuel (30' Cavungi) e Shéu; Fonseca, Reinaldo e Jorge Gomes (46' Toni)

Treinador Mário Wilson

Boavista Matos; Barbosa, Artur (cap.), Adão e Taí; Almeida, Eliseu, Ailton e Folha (81' Jarbas); Júlio (75' Moinhos) e Vítor Baptista

Treinador Mário Lino

Golos

Júlio (40'), Vítor Baptista (41'), Cavungi (90')

Perfil Jogador

Carlos Manuel Correia dos Santos nasceu na Moita (1958) e começou a jogar futebol nas equipas juvenis da CUF numa altura em que já trabalhava como operário da CP. Aos 20 anos, com a camisola do Barreirense, foi uma das grandes revelações do campeonato nacional da 1ª Divisão de 1978-79. No ano seguinte foi contratado pelo Benfica. Permaneceu quase nove épocas no Estádio da Luz, conquistando quatro títulos nacionais e cinco Taças de Portugal. Carlos Manuel jogou posteriormente no Sion (Suíça), Sporting, Boavista e Estoril. Jogou 42 vezes (oito golos) pela selecção, incluindo as fases finais do Europeu de 1984, na França, e do Mundial de 1986, no México. Foi treinador de vários clubes, incluindo Sporting, Braga, Campomaiorense e Salgueiros. Actualmente vive perto de Alenquer e está desempregado. Como técnico, o jogo mais saboroso foi uma vitória (3-4) do Salgueiros, em 1997, no Estádio da Luz: "Foi um jogo extremamente bonito. Marcou-me muito. O Salgueiros fez uma época excepcional, terminámos no sexto lugar e não nos qualificámos para a Europa por uma unha negra", recorda.

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