O passado como modo de vida

13-12-2004
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O Passado como Modo de Vida

Por OS NOVOS ALMOCREVES

Domingo, 05 de Dezembro de 2004 %Clara Viana Fotos Nelson garrido Às mãos de Micha, o ferro está a ser moldado como o era antes de os homens terem inventado as máquinas industriais e mudado com elas o mundo. À míngua de outras referências, na aldeia serrana do concelho de Oliveira do Hospital há pessoas que se espantam: "É como no Senhor dos Anéis!". Seja na remota Meruge ou em urbes mais cosmopolitas, a constatação é quase garantida: em matéria de saber, foi a ficção que triunfou. Como o passado volta sempre a estar na moda - é mesmo um valor refúgio, como noutras situações o são a arte ou o ouro -, este êxito explica também o sucesso dos que se chamam "fazedores de História ao vivo". É o caso da companhia de teatro Viv'Arte, protagonista de muitas das recriações medievais que, sobretudo por iniciativa das câmaras municipais, têm tomado o país de assalto, num movimento que é comum a vários outros países europeus. É domingo, está frio e eles encontram-se já em fim de época. Com Meruge, contabilizaram este ano 33 recriações de rua, na maioria feiras medievais, o que representa cerca de 30 vezes mais do que as realizadas quando da sua profissionalização, em 1999, altura em que o grupo iniciou a sua metamorfose para a espécie de tribo nómada que hoje é. Estava-se no rescaldo das comemorações dos Descobrimentos e da Expo-98, que por cá deram um novo impulso às encenações do passado, no caso sobretudo quinhentistas. Hoje a companhia dá trabalho a 22 profissionais, mas de Norte a Sul do país, com passagem habitual por Itália - e para o ano também por França e pela Holanda -, entre actores, músicos, artistas de circo, artesãos e figurantes, chegam a movimentar 200 a 300 pessoas para os eventos de maior porte, como as feiras medievais de Óbidos ou de Castro Marim. Responsável pela produção de muitas destas encenações, o Viv'Arte conta com o apoio de uma rede de grupos amadores. É o que chamam de Vivarte &Companhias, onde tanto enfileiram quase desconhecidos, como agrupamentos de renome, caso do Galandum Galadaina, que recuperou a música tradicional mirandesa. Em conjunto parecem uma trupe de saltimbancos ou de hippies, ou uma mistura de ambos. Quase se diria gente duplamente anacrónica - não só porque encontrou no passado um meio de vida, mas sobretudo vive de paixões duradouras. Como a de Micha pela arte do ferro, a de Estela pelos teares, a de Pedro pelo teatro ou a de Mário pela História, que está aliás na origem da história deles, ocorrida numa escola de província já lá vão 16 anos. A meio caminho entre Coimbra e Aveiro, a tribo teve no seu início um grupo de teatro escolar. Mais precisamente, o grupo de teatro da escola secundária de Oliveira do Bairro, vila que é ainda a sede actual da companhia. Em 1988, Mário da Costa, que é o seu director e agora tem 45 anos, era "apenas" um docente de História de teimas persistentes. Diz ele que lhe chamavam "professor caga barcos": pelas escolas onde passava construía sempre um, com a ajuda dos alunos. Para o primeiro utilizou 400 caixas de transporte de peixe: "Cheirava a mar". Era para estes barcos que transportava as suas aulas, dando curso a viagens por toda a Antiguidade. Hoje Fenícia, amanhã Cartago e por aí fora. Quando novas colocações o obrigavam a mudar de escola, acontecia que os seus barcos eram sempre destruídos a mando de alguém. Aconteceu também que, a certa altura, Mário deu por si a pensar que, afinal, os seus alunos estavam a sair prejudicados da experiência - do barco para os livros em salas de aulas normais, a História sabia a pouco. Uma questão de expectativas defraudadas. Mas na escola secundária de Oliveira do Bairro, Mário da Costa conseguiu deixar para trás algo mais perene. Natural de Sangalhos, estudante em Oliveira do Bairro, foi ali que Pedro Nuno experimentou o que é a sua vida actual e que desde então não mais abandonou. Tinha 12 anos quando ingressou no teatro da escola. O docente de História já lá não estava, mas o grupo permanecia em actividade. Hoje Pedro tem 25, é actor e, em conjunto com Mário, o que mais tempo conta na companhia profissional de que foi um dos fundadores, pouco depois de completar o 12º ano. Quanto ao grupo de teatro escolar talvez renasça este ano, pela mão do actual presidente da associação de estudantes, que no Verão acompanhou as deambulações do Viv'Arte e, por causa disso, fez do ressurgimento do teatro na escola de Oliveira do Bairro uma das bandeiras do seu programa. Há cada vez mais estudantes nas deambulações do grupo, jovens que pedem para passar as férias com eles e também estrangeiros - russos, franceses, espanhóis que permanecem uns tempos e, por vezes, se tornam permanentes. Como o escocês da companhia, que é mesmo escocês e foi descoberto, já lá vão três anos, nas ruas do Porto quando tocava gaita-de-foles com um amigo polaco. Revelou-se um "homem dos sete instrumentos", conta João Cardoso, 45 anos, que também foi professor de História e é responsável pelas produções da companhia. Para além de músico, o rapaz tornou-se espadachim, sendo que já tinha com ele um curso de design de moda. Português, o jovem André será um Dom Godofredo a quem murchou a virilidade, mas por enquanto vai-nos dando conta do que para ele ainda é motivo de espanto: - "Até há bons", diz - "Bons homens?" - "Boas notas", responde ele. O André tem 22 anos, foi criado numa instituição, onde lhe deram o 9º ano, mas de onde saiu sem saber, por exemplo, que actor se diz no feminino actriz. É ele que o diz. Saiu da instituição com 17 anos e acabou acolhido pelo Viv'Arte, que se tornou , para ele, a sua "casa mãe". Talvez por isso o que o espanta ainda hoje não seja o facto de existirem boas almas, mas sim, e dado o seu passado escolar, as boas notas que tem alcançado numa escola de artes do Porto que agora frequenta. André é um dos vários casos de que tem sido feita a vertente menos visível do trabalho desta companhia, algo que lhes alimenta o ego e a vontade de existir. "Alguns dos nossos actores eram miúdos que estavam na rua", revela João Cardoso. Como o seu trabalho pode funcionar também como terapia ocupacional, eles, para além de grupo de teatro, são uma instituição de reinserção social ou seja, funcionam como ponto de destino de "jovens em risco", que lhes são enviados por outras instituições no âmbito de um protocolo com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, ou simplesmente atraídos por esta gente, que elegem como casa. "Somos como o circo que passa pela aldeia", diz João, sobre o poder de atracção que o grupo exerce. Como nas velhas histórias circenses, também o Viv'Arte chega geralmente ao fim de época com mais uns tantos que vieram atrás. Uns ficam, outros são recusados. Apesar de não parecer, existem regras precisas no grupo. A ausência de consumo de drogas é uma delas. Outra é a de que cada um tem de ser útil ao trabalho de recriação do passado e respeitar-lhe o ambiente. Os dois professores de História que estão à frente do projecto sabem, por experiência, que o contraponto à vitória da ficção não é necessariamente um maior rigor, mas muitas vezes a ignorância e o desinteresse. Sendo um grupo de teatro, eles privilegiam as recriações, mais livres, em detrimento das chamadas reconstituições, mais puristas e também muito mais dispendiosas. Por exemplo, nas ceias medievais que animam - e que são o prato forte dos seus Invernos - existem duas regras: a proibição de alimentos que foram introduzidos com os Descobrimentos, como a batata e o milho, e a recomendação genérica de que quanto mais próximos os pratos estiverem da cozinha tradicional, maiores probabilidades terão de se aproximarem daqueles que eram consumidos nesse passado remoto. Certezas não existem, diz João Cardoso, lembrando que as receitas da época não chegaram até nós. Eles têm a oferecer uma Idade Média bem mais limpa e suave do que foi aquela época obscura. Mas será que alguém quer mesmo a verdade? Daquele tempo diz curiosamente Pedro Nuno: "Uma altura confusa, mas que é fácil transpor para a actualidade". Com 32 anos, Micha, que se chama na verdade Michel Redrado, é o mais "jovem ferreiro" de Navarra, uma garantia de futuro e portanto a "esperança" da profissão naquela província de Espanha. O ofício abraçou-o ele por gosto: ainda foi soldador, com curso feito, mas acabou por se decidir pela oficina onde fabrica mobiliário em ferro. Um negócio seu e da mulher, com quem partilha a vida e a profissão: uma jovem ferreira de longos cabelos louros, que também o acompanha nas feiras medievais. Por ano, são oito ou nove incursões a Portugal, e várias outras por Navarra e no país Basco. As espadas utilizadas pelos actores do Viv'Arte nos seus torneios e combate medievais têm a assinatura de Micha. Com um fole que atiça lume no carvão de pedra, onde o ferro é amolecido a uma temperatura que tem de ser calculada com mestria - perto dos 1500 graus, mas antes de ali chegar, porque este é o ponto em que ocorre a fundição -, e uma bigorna onde o metal é trabalhado a martelo, o espanhol vai dando forma a facas e foices. Foram os primeiros instrumentos a serem fabricados por Micha - ferramentas de trabalho em que se afincava ainda miúdo, na altura em que outros pequenos como ele lhe chamavam rei Artur, de tal modo andava já encantado por espadas. Estela Ribeiro de Melo, 37 anos, integra também o lote de meia centena de artesãos "certificados" pelo grupo para o acompanhar nestas viagens. O uso de vestes medievais é obrigatório e o do telemóvel proibido, pelo menos enquanto estão na venda. Os novos almocreves são descobertos em outros certames, ou escolhidos, entre os muitos que vêm propor-se à companhia, em função do que têm a oferecer e do modo como é feita a confecção dos seus artigos. É uma lista que está sempre em aberto. Estela, que é uma engenheira civil de Coimbra, anda agora agarrada a um tear onde fia lã. À excepção da tosquia, sabe percorrer toda a cadeia de produção que termina na peça de roupa feita, incluindo as tintagens feitas com plantas: "Tenho esta paixão antiga pelos teares. Sempre fiz roupa, mas faltava-me saber como fazer os tecidos". A oportunidade surgiu-lhe quando se reformou de ser mãe, como ela, diz, ou melhor, corrige, quando, com os seus quatro filhos mais crescidos, passou a mãe em "part-time", o que aconteceu em Janeiro passado. Fez um curso, concluído com um fim-de semana intensivo em Londres onde aprendeu a fiar de tudo, desde seda a lã de camelo. O louro Andrés, natural de Orença, diz algo de surpreendente: que trabalha em madeira há 28 anos, sendo que tem 35. Mas não subsistem dúvidas na sua asserção: o ofício de marceneiro aprendeu-o ele com o pai e pratica-o desde os sete anos, quando recebeu o primeiro "brinquedo" que lhe deu verdadeiro gozo - um par de ferramentas para trabalhar a madeira. Há pouco mais de um mês completou a sua presença habitual nestes eventos com uma espécie de tetravô dos actuais tornos mecânicos, que ele próprio fabricou comparando imagens atrás de imagens, e que agora lhe puxa pelo corpo como já não é hábito as máquinas fazerem. Sobre a pedra granítica, de espadas na mão, jovens actores empinam os quadris num jeito claro de macho que é saudado pelos homens da aldeia. O humor brejeiro do grupo é uma lança certeira. Palavras de Henrique, que tem uma pequena fábrica de calçado em São João da Madeira, e ajuda a mulher a vender sapatos medievais, feitos a partir de moldes também retirados de velhas imagens: "Nestas feiras as pessoas estão menos carrancudas, observam, espantam-se, gastam o dinheiro a sorrir. Andam como que espantadas". Assunção Castro, 38 anos, uma costureira de Santa Maria da Feira que acompanha o grupo há três anos, descobriu algo mais: são raros os que querem ser da plebe. Foi o que ela constatou a alugar os seus fatos medievais aos visitantes que querem experimentar o espírito da época. Também os figurantes contratados pelo grupo têm o mesmo pendor para escolher os que estão acima, que isto de ser ralé já todos temos que baste. Esta vontade de evasão - que aliás foi sempre apanágio do Carnaval - faz com que Mário da Costa não duvide que o seu sonho maior, e ainda não concretizado, venha a ser coroado de êxito. Ele quer ter uma espécie de parque temático medieval, com uma fronteira no tempo, castelo e aldeia fixas, actores residentes e mais espaço para acolher os tais "jovens em risco". O projecto está já a ser passado ao papel por uma arquitecta desempregada, que lhes faz também as cotas de malha utilizadas nos torneiros. Os nómadas querem assentar. Resta saber onde. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Polar Express

O passado como modo de vida

Do negócio à identidade

Imperador

Maria Sharapova

Arte

Há uma insurreição internacional que usa o terrorismo Fred Halliday

O Índex Paulo Anunciação 05 Dez 04

Presos pelo alfinete

Escanção Manuel Moreira

Recuperar o clitóris

Ordem na cozinha

O homem do saco

Mexilhões com leite de coco

Artigo

Descontrair os músculos

CRÓNICAS

O comboio é muito longe

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

O Passado como Modo de Vida

Por OS NOVOS ALMOCREVES

Domingo, 05 de Dezembro de 2004 %Clara Viana Fotos Nelson garrido Às mãos de Micha, o ferro está a ser moldado como o era antes de os homens terem inventado as máquinas industriais e mudado com elas o mundo. À míngua de outras referências, na aldeia serrana do concelho de Oliveira do Hospital há pessoas que se espantam: "É como no Senhor dos Anéis!". Seja na remota Meruge ou em urbes mais cosmopolitas, a constatação é quase garantida: em matéria de saber, foi a ficção que triunfou. Como o passado volta sempre a estar na moda - é mesmo um valor refúgio, como noutras situações o são a arte ou o ouro -, este êxito explica também o sucesso dos que se chamam "fazedores de História ao vivo". É o caso da companhia de teatro Viv'Arte, protagonista de muitas das recriações medievais que, sobretudo por iniciativa das câmaras municipais, têm tomado o país de assalto, num movimento que é comum a vários outros países europeus. É domingo, está frio e eles encontram-se já em fim de época. Com Meruge, contabilizaram este ano 33 recriações de rua, na maioria feiras medievais, o que representa cerca de 30 vezes mais do que as realizadas quando da sua profissionalização, em 1999, altura em que o grupo iniciou a sua metamorfose para a espécie de tribo nómada que hoje é. Estava-se no rescaldo das comemorações dos Descobrimentos e da Expo-98, que por cá deram um novo impulso às encenações do passado, no caso sobretudo quinhentistas. Hoje a companhia dá trabalho a 22 profissionais, mas de Norte a Sul do país, com passagem habitual por Itália - e para o ano também por França e pela Holanda -, entre actores, músicos, artistas de circo, artesãos e figurantes, chegam a movimentar 200 a 300 pessoas para os eventos de maior porte, como as feiras medievais de Óbidos ou de Castro Marim. Responsável pela produção de muitas destas encenações, o Viv'Arte conta com o apoio de uma rede de grupos amadores. É o que chamam de Vivarte &Companhias, onde tanto enfileiram quase desconhecidos, como agrupamentos de renome, caso do Galandum Galadaina, que recuperou a música tradicional mirandesa. Em conjunto parecem uma trupe de saltimbancos ou de hippies, ou uma mistura de ambos. Quase se diria gente duplamente anacrónica - não só porque encontrou no passado um meio de vida, mas sobretudo vive de paixões duradouras. Como a de Micha pela arte do ferro, a de Estela pelos teares, a de Pedro pelo teatro ou a de Mário pela História, que está aliás na origem da história deles, ocorrida numa escola de província já lá vão 16 anos. A meio caminho entre Coimbra e Aveiro, a tribo teve no seu início um grupo de teatro escolar. Mais precisamente, o grupo de teatro da escola secundária de Oliveira do Bairro, vila que é ainda a sede actual da companhia. Em 1988, Mário da Costa, que é o seu director e agora tem 45 anos, era "apenas" um docente de História de teimas persistentes. Diz ele que lhe chamavam "professor caga barcos": pelas escolas onde passava construía sempre um, com a ajuda dos alunos. Para o primeiro utilizou 400 caixas de transporte de peixe: "Cheirava a mar". Era para estes barcos que transportava as suas aulas, dando curso a viagens por toda a Antiguidade. Hoje Fenícia, amanhã Cartago e por aí fora. Quando novas colocações o obrigavam a mudar de escola, acontecia que os seus barcos eram sempre destruídos a mando de alguém. Aconteceu também que, a certa altura, Mário deu por si a pensar que, afinal, os seus alunos estavam a sair prejudicados da experiência - do barco para os livros em salas de aulas normais, a História sabia a pouco. Uma questão de expectativas defraudadas. Mas na escola secundária de Oliveira do Bairro, Mário da Costa conseguiu deixar para trás algo mais perene. Natural de Sangalhos, estudante em Oliveira do Bairro, foi ali que Pedro Nuno experimentou o que é a sua vida actual e que desde então não mais abandonou. Tinha 12 anos quando ingressou no teatro da escola. O docente de História já lá não estava, mas o grupo permanecia em actividade. Hoje Pedro tem 25, é actor e, em conjunto com Mário, o que mais tempo conta na companhia profissional de que foi um dos fundadores, pouco depois de completar o 12º ano. Quanto ao grupo de teatro escolar talvez renasça este ano, pela mão do actual presidente da associação de estudantes, que no Verão acompanhou as deambulações do Viv'Arte e, por causa disso, fez do ressurgimento do teatro na escola de Oliveira do Bairro uma das bandeiras do seu programa. Há cada vez mais estudantes nas deambulações do grupo, jovens que pedem para passar as férias com eles e também estrangeiros - russos, franceses, espanhóis que permanecem uns tempos e, por vezes, se tornam permanentes. Como o escocês da companhia, que é mesmo escocês e foi descoberto, já lá vão três anos, nas ruas do Porto quando tocava gaita-de-foles com um amigo polaco. Revelou-se um "homem dos sete instrumentos", conta João Cardoso, 45 anos, que também foi professor de História e é responsável pelas produções da companhia. Para além de músico, o rapaz tornou-se espadachim, sendo que já tinha com ele um curso de design de moda. Português, o jovem André será um Dom Godofredo a quem murchou a virilidade, mas por enquanto vai-nos dando conta do que para ele ainda é motivo de espanto: - "Até há bons", diz - "Bons homens?" - "Boas notas", responde ele. O André tem 22 anos, foi criado numa instituição, onde lhe deram o 9º ano, mas de onde saiu sem saber, por exemplo, que actor se diz no feminino actriz. É ele que o diz. Saiu da instituição com 17 anos e acabou acolhido pelo Viv'Arte, que se tornou , para ele, a sua "casa mãe". Talvez por isso o que o espanta ainda hoje não seja o facto de existirem boas almas, mas sim, e dado o seu passado escolar, as boas notas que tem alcançado numa escola de artes do Porto que agora frequenta. André é um dos vários casos de que tem sido feita a vertente menos visível do trabalho desta companhia, algo que lhes alimenta o ego e a vontade de existir. "Alguns dos nossos actores eram miúdos que estavam na rua", revela João Cardoso. Como o seu trabalho pode funcionar também como terapia ocupacional, eles, para além de grupo de teatro, são uma instituição de reinserção social ou seja, funcionam como ponto de destino de "jovens em risco", que lhes são enviados por outras instituições no âmbito de um protocolo com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, ou simplesmente atraídos por esta gente, que elegem como casa. "Somos como o circo que passa pela aldeia", diz João, sobre o poder de atracção que o grupo exerce. Como nas velhas histórias circenses, também o Viv'Arte chega geralmente ao fim de época com mais uns tantos que vieram atrás. Uns ficam, outros são recusados. Apesar de não parecer, existem regras precisas no grupo. A ausência de consumo de drogas é uma delas. Outra é a de que cada um tem de ser útil ao trabalho de recriação do passado e respeitar-lhe o ambiente. Os dois professores de História que estão à frente do projecto sabem, por experiência, que o contraponto à vitória da ficção não é necessariamente um maior rigor, mas muitas vezes a ignorância e o desinteresse. Sendo um grupo de teatro, eles privilegiam as recriações, mais livres, em detrimento das chamadas reconstituições, mais puristas e também muito mais dispendiosas. Por exemplo, nas ceias medievais que animam - e que são o prato forte dos seus Invernos - existem duas regras: a proibição de alimentos que foram introduzidos com os Descobrimentos, como a batata e o milho, e a recomendação genérica de que quanto mais próximos os pratos estiverem da cozinha tradicional, maiores probabilidades terão de se aproximarem daqueles que eram consumidos nesse passado remoto. Certezas não existem, diz João Cardoso, lembrando que as receitas da época não chegaram até nós. Eles têm a oferecer uma Idade Média bem mais limpa e suave do que foi aquela época obscura. Mas será que alguém quer mesmo a verdade? Daquele tempo diz curiosamente Pedro Nuno: "Uma altura confusa, mas que é fácil transpor para a actualidade". Com 32 anos, Micha, que se chama na verdade Michel Redrado, é o mais "jovem ferreiro" de Navarra, uma garantia de futuro e portanto a "esperança" da profissão naquela província de Espanha. O ofício abraçou-o ele por gosto: ainda foi soldador, com curso feito, mas acabou por se decidir pela oficina onde fabrica mobiliário em ferro. Um negócio seu e da mulher, com quem partilha a vida e a profissão: uma jovem ferreira de longos cabelos louros, que também o acompanha nas feiras medievais. Por ano, são oito ou nove incursões a Portugal, e várias outras por Navarra e no país Basco. As espadas utilizadas pelos actores do Viv'Arte nos seus torneios e combate medievais têm a assinatura de Micha. Com um fole que atiça lume no carvão de pedra, onde o ferro é amolecido a uma temperatura que tem de ser calculada com mestria - perto dos 1500 graus, mas antes de ali chegar, porque este é o ponto em que ocorre a fundição -, e uma bigorna onde o metal é trabalhado a martelo, o espanhol vai dando forma a facas e foices. Foram os primeiros instrumentos a serem fabricados por Micha - ferramentas de trabalho em que se afincava ainda miúdo, na altura em que outros pequenos como ele lhe chamavam rei Artur, de tal modo andava já encantado por espadas. Estela Ribeiro de Melo, 37 anos, integra também o lote de meia centena de artesãos "certificados" pelo grupo para o acompanhar nestas viagens. O uso de vestes medievais é obrigatório e o do telemóvel proibido, pelo menos enquanto estão na venda. Os novos almocreves são descobertos em outros certames, ou escolhidos, entre os muitos que vêm propor-se à companhia, em função do que têm a oferecer e do modo como é feita a confecção dos seus artigos. É uma lista que está sempre em aberto. Estela, que é uma engenheira civil de Coimbra, anda agora agarrada a um tear onde fia lã. À excepção da tosquia, sabe percorrer toda a cadeia de produção que termina na peça de roupa feita, incluindo as tintagens feitas com plantas: "Tenho esta paixão antiga pelos teares. Sempre fiz roupa, mas faltava-me saber como fazer os tecidos". A oportunidade surgiu-lhe quando se reformou de ser mãe, como ela, diz, ou melhor, corrige, quando, com os seus quatro filhos mais crescidos, passou a mãe em "part-time", o que aconteceu em Janeiro passado. Fez um curso, concluído com um fim-de semana intensivo em Londres onde aprendeu a fiar de tudo, desde seda a lã de camelo. O louro Andrés, natural de Orença, diz algo de surpreendente: que trabalha em madeira há 28 anos, sendo que tem 35. Mas não subsistem dúvidas na sua asserção: o ofício de marceneiro aprendeu-o ele com o pai e pratica-o desde os sete anos, quando recebeu o primeiro "brinquedo" que lhe deu verdadeiro gozo - um par de ferramentas para trabalhar a madeira. Há pouco mais de um mês completou a sua presença habitual nestes eventos com uma espécie de tetravô dos actuais tornos mecânicos, que ele próprio fabricou comparando imagens atrás de imagens, e que agora lhe puxa pelo corpo como já não é hábito as máquinas fazerem. Sobre a pedra granítica, de espadas na mão, jovens actores empinam os quadris num jeito claro de macho que é saudado pelos homens da aldeia. O humor brejeiro do grupo é uma lança certeira. Palavras de Henrique, que tem uma pequena fábrica de calçado em São João da Madeira, e ajuda a mulher a vender sapatos medievais, feitos a partir de moldes também retirados de velhas imagens: "Nestas feiras as pessoas estão menos carrancudas, observam, espantam-se, gastam o dinheiro a sorrir. Andam como que espantadas". Assunção Castro, 38 anos, uma costureira de Santa Maria da Feira que acompanha o grupo há três anos, descobriu algo mais: são raros os que querem ser da plebe. Foi o que ela constatou a alugar os seus fatos medievais aos visitantes que querem experimentar o espírito da época. Também os figurantes contratados pelo grupo têm o mesmo pendor para escolher os que estão acima, que isto de ser ralé já todos temos que baste. Esta vontade de evasão - que aliás foi sempre apanágio do Carnaval - faz com que Mário da Costa não duvide que o seu sonho maior, e ainda não concretizado, venha a ser coroado de êxito. Ele quer ter uma espécie de parque temático medieval, com uma fronteira no tempo, castelo e aldeia fixas, actores residentes e mais espaço para acolher os tais "jovens em risco". O projecto está já a ser passado ao papel por uma arquitecta desempregada, que lhes faz também as cotas de malha utilizadas nos torneiros. Os nómadas querem assentar. Resta saber onde. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Polar Express

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Do negócio à identidade

Imperador

Maria Sharapova

Arte

Há uma insurreição internacional que usa o terrorismo Fred Halliday

O Índex Paulo Anunciação 05 Dez 04

Presos pelo alfinete

Escanção Manuel Moreira

Recuperar o clitóris

Ordem na cozinha

O homem do saco

Mexilhões com leite de coco

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CRÓNICAS

O comboio é muito longe

CARTAS DA MAYA

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