Recuperar o clitóris

11-12-2004
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Recuperar o Clitóris

Domingo, 05 de Dezembro de 2004 %Maria João Guimarães "Disseram-nos tantas vezes que estava tudo acabado para nós...", lembra Marie, uma mulher que sofreu uma mutilação genital feminina quando era criança. Marie é uma das mais de 300 mulheres que se submeteram ao procedimento cirúrgico de Pierre Foldès e que falou ao jornal francês "Nouvel Observateur". Muitas mulheres contam que afinal não estava tudo acabado: depois da operação passaram a ter sensações onde antes não havia nada e sobretudo sentem que recuperaram a sua feminilidade. Pierre Foldès é um médico francês que aperfeiçoou uma intervenção de recuperação do clitóris em mulheres que foram submetidas a mutilação genital feminina. A operação recebeu agora comparticipação da Segurança Social francesa e os seus resultados vão ser alvo de um estudo alargado, com quase 300 mulheres, por parte da Sociedade francesa de Sexologia Clínica. O objectivo é saber até que ponto a recuperação do clitóris permite a recuperação das sensações - ou, na maior parte dos casos, a descoberta, já que muitas mulheres foram excisadas numa idade em que não tinham ainda sensações sexuais. Pierre Foldès, que trabalhou na África e Ásia, do Burkina Faso ao Camboja, com a organização não governamental Médicos do Mundo, é o único homem a realizar esta operação. Começou a pensá-la há 15 anos e pratica-a há oito anos. Para quem achar estranho, Foldès explica à Pública porque acha que ninguém mais faz esta cirurgia. Primeiro: "Esta é uma questão delicada em que é preciso dedicar tempo às mulheres, que muitas vezes têm vergonha, ou nem sabem bem o que lhes aconteceu". Depois, há quem não se queira submeter às ameaças de que é alvo, ao enfrentr uma tradição por parte dos líderes comunitários - Pierre Foldès foi ameaçado tanto em África como em França. "É preciso um grande envolvimento." Ao machismo dominante da medicina junta-se a falta de lucro do procedimento, já que a técnica beneficia uma população feminina essencialmente africana e pobre: "Claro, a comunidade médica é muito relutante em pegar em assuntos exclusivos de mulheres e ainda por cima pobres. Nenhum médico ficaria rico a fazer estas cirurgias." O próprio Foldès não ganha dinheiro com esta operação. Faz as cirurgias na Clínica Louis XIV, em St Germain en Laye, perto de Paris - para além do seu horário normal no hospital. "Estas mulheres foram vítimas de um crime, já pagaram, já sofreram o suficiente. É a continuação da minha actividade como voluntário." A operação já é paga, em parte, pela Segurança Social francesa. "Já que em França a mutilação genital feminina é proibida há muito tempo, e recentemente foi mesmo declarada crime, faz sentido que o Estado participe na reparação do crime". Cada operação custará - em clínica privada que tem um custo mais baixo, explica Foldès - cerca de 1500 euros. Se não tiver um dia de hospitalização, se aceitar anestesia local ou em regime ambulatório, sai ainda mais barato, à roda de 700 euros (este regime permite ainda realizar a cirurgia em África). "Mas a segurança social paga uma parte e a outra eu não cobro, por isso continua a ser gratuita", diz Foldès. No entanto, o cirurgião considera que é de evitar a anestesia local, já que a uma grande parte das mulheres poderá lembrar o próprio ritual da excisão e reavivar memórias dolorosas. Foldès tinha descoberto o fenómeno da Mutilação Genital Feminina (que implica o corte do clitóris, dos pequenos lábios e por vezes dos grandes lábios) há 25 anos, numa missão da Organização Mundial de Saúde no Burkina Faso. "Na altura, as mulheres queixavam-se das dores, que surgiam por complicações surgidas após as excisões", a mais comum era uma espécie de "colagem" da parte cicatrizada ao osso do púbis, o que tornava os movimentos dolorosos. Então, o objectivo era apenas aliviar a dor. Depois, Foldès passou a pensar numa espécie de "operação plástica", e começou a investigar, mais tarde, no sentido de descobrir se era possível fazer alguma coisa quanto ao clitóris. "Fiquei estarrecido ao descobrir que na literatura médica não havia absolutamente nada sobre a anatomia do clitóris, nada. Havia milhares de coisas sobre o pénis: técnicas cirúrgicas para alongamento, alargamento ou reparação. Do clitóris, nada." "Adaptei então princípios de cirurgia plástica que já havia para o homem, o que foi bastante fácil. Não se sabia realmente que o clitóris tinha 11 cm. Assim, a cirurgia que eu faço é uma recuperação, o que lá está é o clitóris da mulher, não é qualquer implante", conta Foldès. "No fundo, de uma maneira muito simplista, trata-se de o trazer mais para cima - e tecnicamente, nem sequer é muito difícil." Marc Ganem, o presidente da Sociedade francesa de Sexologia Clínica, comentou ao "Nouvel Observateur": "Ninguém pensava que o clitóris se poderia recuperar. A intuição de Foldès foi genial." Depois dos seis anos de investigação, Pierre Foldès começou a fazer a cirurgia. Em oito anos, operou mais de 300 mulheres em França. Muitas tinham sido excisadas em França, outras em África - no Mali, Senegal, Guiné.... Em África terá operado mais de 100, conta. A maior parte das mulheres que se submeteram à cirurgia são francesas de origem africana. Descobrem entretanto, num outro país, que o que na sua terra natal era normal e desejável não é afinal tão comum. Como conta a uma reportagem no jornal "The Scotsman" Elham, que tinha sido recentemente operada por Foldès: "Todas as raparigas na minha cidade tinham feito [a excisão]. Ninguém quer casar com uma mulher não excisada, e enquanto criança ninguém se lembra do que é ser completa. Nessa idade ainda não se teve nenhuma experiência sexual, por isso como se sabe o que se está a perder?" Quando descobriu, Elham sentiu-se "muito zangada". "Nunca soube o que é ter uma vida sexual normal. Não sou uma verdadeira mulher. Sinto-me sempre envergonhada - e suja". Agora, isso mudou: "Agora sinto qualquer coisa: não sei se muito se pouco, porque é novo para mim. Mas não tenho nada a esconder. Finalmente, tenho o meu corpo de volta e já não tenho medo de ser rejeitada. Posso pensar no futuro." Foldès continua a contactar com as mulheres que operou, mas garante que as complicações depois da cirurgia são raras. Segundo as estimativas disponíveis, no mínimo 75 por cento recuperam algum grau de sensibilidade - "não sabemos exactamente quanto", sublinha o cirurgião e urologista. Por isso espera os importantes resultados do estudo da Associação de Sexologia Clínica, que deverão estar prontos dentro de nove meses. "Mas o que eu destacaria, em termos de resultados, é uma espécie de recuperação de identidade como mulheres", diz o cirurgião. As declarações de Fatou, uma das mulheres operadas por Foldès, ao "Nouvel Observateur", parecem confirmar esta ideia: "Tinha contado que tinha uma coisa nos ovários. Não queria que as pessoas soubessem. Mas hoje tenho uma sensação de estar inteira. Quando olho para mim nua, o meu sexo já não é o mesmo. Até o mostrei às minhas amigas." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Polar Express

O passado como modo de vida

Do negócio à identidade

Imperador

Maria Sharapova

Arte

Há uma insurreição internacional que usa o terrorismo Fred Halliday

O Índex Paulo Anunciação 05 Dez 04

Presos pelo alfinete

Escanção Manuel Moreira

Recuperar o clitóris

Ordem na cozinha

O homem do saco

Mexilhões com leite de coco

Artigo

Descontrair os músculos

CRÓNICAS

O comboio é muito longe

CARTAS DA MAYA

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O objectivo é saber até que ponto a recuperação do clitóris permite a recuperação das sensações - ou, na maior parte dos casos, a descoberta, já que muitas mulheres foram excisadas numa idade em que não tinham ainda sensações sexuais. Pierre Foldès, que trabalhou na África e Ásia, do Burkina Faso ao Camboja, com a organização não governamental Médicos do Mundo, é o único homem a realizar esta operação. Começou a pensá-la há 15 anos e pratica-a há oito anos. Para quem achar estranho, Foldès explica à Pública porque acha que ninguém mais faz esta cirurgia. Primeiro: "Esta é uma questão delicada em que é preciso dedicar tempo às mulheres, que muitas vezes têm vergonha, ou nem sabem bem o que lhes aconteceu". Depois, há quem não se queira submeter às ameaças de que é alvo, ao enfrentr uma tradição por parte dos líderes comunitários - Pierre Foldès foi ameaçado tanto em África como em França. "É preciso um grande envolvimento." Ao machismo dominante da medicina junta-se a falta de lucro do procedimento, já que a técnica beneficia uma população feminina essencialmente africana e pobre: "Claro, a comunidade médica é muito relutante em pegar em assuntos exclusivos de mulheres e ainda por cima pobres. Nenhum médico ficaria rico a fazer estas cirurgias." O próprio Foldès não ganha dinheiro com esta operação. Faz as cirurgias na Clínica Louis XIV, em St Germain en Laye, perto de Paris - para além do seu horário normal no hospital. "Estas mulheres foram vítimas de um crime, já pagaram, já sofreram o suficiente. É a continuação da minha actividade como voluntário." A operação já é paga, em parte, pela Segurança Social francesa. "Já que em França a mutilação genital feminina é proibida há muito tempo, e recentemente foi mesmo declarada crime, faz sentido que o Estado participe na reparação do crime". Cada operação custará - em clínica privada que tem um custo mais baixo, explica Foldès - cerca de 1500 euros. Se não tiver um dia de hospitalização, se aceitar anestesia local ou em regime ambulatório, sai ainda mais barato, à roda de 700 euros (este regime permite ainda realizar a cirurgia em África). "Mas a segurança social paga uma parte e a outra eu não cobro, por isso continua a ser gratuita", diz Foldès. No entanto, o cirurgião considera que é de evitar a anestesia local, já que a uma grande parte das mulheres poderá lembrar o próprio ritual da excisão e reavivar memórias dolorosas. Foldès tinha descoberto o fenómeno da Mutilação Genital Feminina (que implica o corte do clitóris, dos pequenos lábios e por vezes dos grandes lábios) há 25 anos, numa missão da Organização Mundial de Saúde no Burkina Faso. "Na altura, as mulheres queixavam-se das dores, que surgiam por complicações surgidas após as excisões", a mais comum era uma espécie de "colagem" da parte cicatrizada ao osso do púbis, o que tornava os movimentos dolorosos. Então, o objectivo era apenas aliviar a dor. Depois, Foldès passou a pensar numa espécie de "operação plástica", e começou a investigar, mais tarde, no sentido de descobrir se era possível fazer alguma coisa quanto ao clitóris. "Fiquei estarrecido ao descobrir que na literatura médica não havia absolutamente nada sobre a anatomia do clitóris, nada. Havia milhares de coisas sobre o pénis: técnicas cirúrgicas para alongamento, alargamento ou reparação. Do clitóris, nada." "Adaptei então princípios de cirurgia plástica que já havia para o homem, o que foi bastante fácil. Não se sabia realmente que o clitóris tinha 11 cm. Assim, a cirurgia que eu faço é uma recuperação, o que lá está é o clitóris da mulher, não é qualquer implante", conta Foldès. "No fundo, de uma maneira muito simplista, trata-se de o trazer mais para cima - e tecnicamente, nem sequer é muito difícil." Marc Ganem, o presidente da Sociedade francesa de Sexologia Clínica, comentou ao "Nouvel Observateur": "Ninguém pensava que o clitóris se poderia recuperar. 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Não sou uma verdadeira mulher. Sinto-me sempre envergonhada - e suja". Agora, isso mudou: "Agora sinto qualquer coisa: não sei se muito se pouco, porque é novo para mim. Mas não tenho nada a esconder. Finalmente, tenho o meu corpo de volta e já não tenho medo de ser rejeitada. Posso pensar no futuro." Foldès continua a contactar com as mulheres que operou, mas garante que as complicações depois da cirurgia são raras. Segundo as estimativas disponíveis, no mínimo 75 por cento recuperam algum grau de sensibilidade - "não sabemos exactamente quanto", sublinha o cirurgião e urologista. Por isso espera os importantes resultados do estudo da Associação de Sexologia Clínica, que deverão estar prontos dentro de nove meses. "Mas o que eu destacaria, em termos de resultados, é uma espécie de recuperação de identidade como mulheres", diz o cirurgião. As declarações de Fatou, uma das mulheres operadas por Foldès, ao "Nouvel Observateur", parecem confirmar esta ideia: "Tinha contado que tinha uma coisa nos ovários. Não queria que as pessoas soubessem. Mas hoje tenho uma sensação de estar inteira. Quando olho para mim nua, o meu sexo já não é o mesmo. Até o mostrei às minhas amigas." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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