O comboio é muito longe

11-12-2004
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O Comboio É Muito Longe

Domingo, 05 de Dezembro de 2004

%Rui Cardoso Martins

O caso do senhor V. inclui alguns mistérios e uma certeza: o senhor V. tem amigos.

Pode cometer erros quando toma o caminho para casa, pode ser acusado de despiste na estrada ou na linha férrea, e, quando chega a casa, o senhor V. celebra a paralisia completa da sua vida. Mas, se é necessário, alguém aparece e diz, como este homem no tribunal:

- Por isso é que entre nós existe uma amizade de 50 e tal anos.

Vieram três amigos defendê-lo e foi estranho porque sendo todos "homens maduros", "a entrar no último terço da vida", e de facto não eram velhos, para acabar com as imagens gastas, acabaram por criar um efeito anacrónico: carecas, amarelados, reumáticos, falavam como miúdos, como vizinhos do bairro e colegas de escola. Não era o que diziam, mas o espírito da sua voz.

-Crescemos lado a lado, explicou o primeiro de todos.

Não é possível imaginar que cara teve este homem com seis, sete anos, e muito menos a do senhor V. em criança. Agora está borbulhenta e roxa de comprimidos e álcool. Por mais que todos o neguem, é isso que se vê no seu nariz, com afluentes grossos a desaguarem na ponta. Entre os dois, réu e testemunha de defesa, a essência da amizade parecia intacta. O senhor V. foi acusado de se ter embriagado e conduzido um carro em Lisboa, despistando-se para embater num vagão de comboio.

O senhor V. negou os factos do desastre na totalidade, só confirmou: estava alterado, por ter bebido em cima de comprimidos. Ele tem depressão e tomou inadvertidamente um copo que lhe aumentou o efeito dos psicotrópicos de forma brutal.

O terceiro dos amigos apresentou-se:

- Conheço-o desde que nasceu.

- Isso não o impede de dizer a verdade?

- Não. Direi a verdade, com certeza.

E disse que V. atravessa uma fase "muito complicada". Foi despedido e vive com a mãe.

- A mãe e uma prima entrevada.

A mãe dá dinheiro ao senhor V. para este comer e ele, em compensação, "ajuda fisicamente a mãe" e a "prima paralítica". À noite, depois de estar com os amigos, é para esse lar que ele regressa.

- Encontramo-nos muitas vezes.

- Ele costuma ingerir bebidas alcoólicas?

- O normal, o que toda a gente ingere.

Outro amigo confirmou que o normal português, no caso de V., anormaliza-se com facilidade.

- Toma um medicamento para dormir. Ele até costuma andar com o medicamento, se não me engano...

- Toma-o antes de ir para casa dormir?

- Sim.

O senhor V. estava direito no tribunal, talvez enervado com a descrição da sua vida, qualquer homem gostará de apresentar outro currículo quando avança para os 60 anos e ainda tem boa figura e sabe fazer o nó da gravata. Mas a sua inquietação tinha razão de ser: quem redigiu a acusação contra ele ou bebe mais, ou toma mais comprimidos do que o senhor V.

O polícia que o deteve, naquela noite, contou:

- Ele logo me disse que era dos medicamentos e mostrou o papel.

- Como é que ele embateu no vagão do comboio?

- Qual vagão?...

- Bom, segundo a acusação, ele despistou-se contra um vagão.

- Não, não o comboio é muito longe dali! Ele apenas estava a fazer marcha-a-trás e tocou na árvore com a traseira.

- Tem a certeza?!

- Eu vi, foi aliás isso que me chamou a atenção, a árvore... Não bateu em comboio nenhum.

E o polícia saiu, a torcer o nariz, a rodar os olhos admirados, e todos ficaram a pensar como é possível alguém ter escrito, inventado, trocado aquilo que chegou a julgamento. Foi confundir a árvore com os caminhos-de-ferro. À falta de melhor, deram outra vez a palavra ao senhor V., que falou deste modo:

- Em minha defesa, só tenho a lamentar que realmente na acusação que me é feita diz, claramente, que eu me despistei, que eu me fui enfiar num vagão. É completamente diferente de eu ter feito uma marcha-a-trás, em que vou andando, andando... e toco na árvore. Há aí uma, passe a expressão, falsidade, não digo de má-fé, mas quando uma pessoa se despista e vai bater num obstáculo, não tem nada a ver com fazer uma marcha-a-trás, até porque nesta não se vai, normalmente, em linha recta, pela própria natureza da manobra.

E os amigos, que ainda não o tinham ouvido falar, suspiraram de alívio com a clareza do argumento, olha o bom e velho V. ainda sabe defender-se.

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O Comboio É Muito Longe

Domingo, 05 de Dezembro de 2004

%Rui Cardoso Martins

O caso do senhor V. inclui alguns mistérios e uma certeza: o senhor V. tem amigos.

Pode cometer erros quando toma o caminho para casa, pode ser acusado de despiste na estrada ou na linha férrea, e, quando chega a casa, o senhor V. celebra a paralisia completa da sua vida. Mas, se é necessário, alguém aparece e diz, como este homem no tribunal:

- Por isso é que entre nós existe uma amizade de 50 e tal anos.

Vieram três amigos defendê-lo e foi estranho porque sendo todos "homens maduros", "a entrar no último terço da vida", e de facto não eram velhos, para acabar com as imagens gastas, acabaram por criar um efeito anacrónico: carecas, amarelados, reumáticos, falavam como miúdos, como vizinhos do bairro e colegas de escola. Não era o que diziam, mas o espírito da sua voz.

-Crescemos lado a lado, explicou o primeiro de todos.

Não é possível imaginar que cara teve este homem com seis, sete anos, e muito menos a do senhor V. em criança. Agora está borbulhenta e roxa de comprimidos e álcool. Por mais que todos o neguem, é isso que se vê no seu nariz, com afluentes grossos a desaguarem na ponta. Entre os dois, réu e testemunha de defesa, a essência da amizade parecia intacta. O senhor V. foi acusado de se ter embriagado e conduzido um carro em Lisboa, despistando-se para embater num vagão de comboio.

O senhor V. negou os factos do desastre na totalidade, só confirmou: estava alterado, por ter bebido em cima de comprimidos. Ele tem depressão e tomou inadvertidamente um copo que lhe aumentou o efeito dos psicotrópicos de forma brutal.

O terceiro dos amigos apresentou-se:

- Conheço-o desde que nasceu.

- Isso não o impede de dizer a verdade?

- Não. Direi a verdade, com certeza.

E disse que V. atravessa uma fase "muito complicada". Foi despedido e vive com a mãe.

- A mãe e uma prima entrevada.

A mãe dá dinheiro ao senhor V. para este comer e ele, em compensação, "ajuda fisicamente a mãe" e a "prima paralítica". À noite, depois de estar com os amigos, é para esse lar que ele regressa.

- Encontramo-nos muitas vezes.

- Ele costuma ingerir bebidas alcoólicas?

- O normal, o que toda a gente ingere.

Outro amigo confirmou que o normal português, no caso de V., anormaliza-se com facilidade.

- Toma um medicamento para dormir. Ele até costuma andar com o medicamento, se não me engano...

- Toma-o antes de ir para casa dormir?

- Sim.

O senhor V. estava direito no tribunal, talvez enervado com a descrição da sua vida, qualquer homem gostará de apresentar outro currículo quando avança para os 60 anos e ainda tem boa figura e sabe fazer o nó da gravata. Mas a sua inquietação tinha razão de ser: quem redigiu a acusação contra ele ou bebe mais, ou toma mais comprimidos do que o senhor V.

O polícia que o deteve, naquela noite, contou:

- Ele logo me disse que era dos medicamentos e mostrou o papel.

- Como é que ele embateu no vagão do comboio?

- Qual vagão?...

- Bom, segundo a acusação, ele despistou-se contra um vagão.

- Não, não o comboio é muito longe dali! Ele apenas estava a fazer marcha-a-trás e tocou na árvore com a traseira.

- Tem a certeza?!

- Eu vi, foi aliás isso que me chamou a atenção, a árvore... Não bateu em comboio nenhum.

E o polícia saiu, a torcer o nariz, a rodar os olhos admirados, e todos ficaram a pensar como é possível alguém ter escrito, inventado, trocado aquilo que chegou a julgamento. Foi confundir a árvore com os caminhos-de-ferro. À falta de melhor, deram outra vez a palavra ao senhor V., que falou deste modo:

- Em minha defesa, só tenho a lamentar que realmente na acusação que me é feita diz, claramente, que eu me despistei, que eu me fui enfiar num vagão. É completamente diferente de eu ter feito uma marcha-a-trás, em que vou andando, andando... e toco na árvore. Há aí uma, passe a expressão, falsidade, não digo de má-fé, mas quando uma pessoa se despista e vai bater num obstáculo, não tem nada a ver com fazer uma marcha-a-trás, até porque nesta não se vai, normalmente, em linha recta, pela própria natureza da manobra.

E os amigos, que ainda não o tinham ouvido falar, suspiraram de alívio com a clareza do argumento, olha o bom e velho V. ainda sabe defender-se.

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