Fernando Calhau: Olhos tácteis na noite

28-10-2002
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Fernando Calhau: Olhos Tácteis na Noite

Por VANESSA RATO

Sábado, 28 de Setembro de 2002

Fernando Calhau morreu a 12 de Junho deste ano. O último ano da sua vida foi, porventura, dos mais intensos do seu percurso artístico, com a produção de um imenso número de novas obras e a realização de várias exposições fundamentais. Foi o caso da antológica organizada pela Gulbenkian com comissariado de Delfim Sardo - a maior e mais esclarecedora alguma vez dedicada ao seu trabalho (ainda que deixasse de fora todo o desenho, um corpo de trabalho ainda por ver de forma sistemática). Mas houve também "Um Passo no Escuro", a exposição que Calhau se empenhou em concretizar com Rui Chafes, com quem partilhava o fascinio pelo romantismo alemão. Foi depois dessa exposição que surgiu ainda a ideia de uma parceria com Julião Sarmento. Amigos íntimos e inseparáveis desde os tempos da Escola Superior de Belas Artes, passando pelo trabalho comum na Secretaria de Estado da Cultura, juntos constataram a falta de um momento de exposição a dois, de um para um. Decidiram apanhar essa ponta solta. O espaço a recebê-los seria a Galeria Mário Sequeira, em Braga. Julião Sarmento com obras da sua mais recente série, "Domestic Isolation", Calhau com 14 novos trabalhos, pintura, e duas peças em ferro e néon - um desses neóns com as palavras "Dead Stop". Estes últimos acabaram por ficar apenas em croqui. Estão lá os trabalhos de Julião Sarmento. As paredes e espaços que deveriam receber os de Fernando Calhau têm inscrito, a preto, claro, o seu nome. A coincidir com a inauguração desta exposição, hoje, situamos alguns momentos fundamentais da obra e da reflexão de Fernando Calhau.

As três páginas seguintes acolhem textos e imagens de Rui Chafes, Delfim Sardo, Clara Ferreira Alves, Ana Nobre Gusmão, Manuel Maria Carrilho, Helena Vasconcelos, Jorge Molder, Michael Biberstein e Julião Sarmento - que também concebeu a capa deste Mil Folhas. A homenagem de quem, de uma forma ou de outra, fez (faz) parte do percurso de Fernando Calhau.

Era Outono, como agora. Há quase um ano certo. Fernando Calhau, um corpo estreito, seco, encolhido, contrariava o afundamento insistente numa esponjosa poltrona de pele preta com uma urgência frenética. Um cigarro permanentemente na mão direita. Uma coluna de fumo fina a ameaçar persistentemente transformar-se em nuvem. Entre pequenas baforadas sincopadas, um sorrizinho semi-irónico - ele podia ser terrivelmente irónico, dizem - para lançar: "Todos os pintores contam a mesma história durante toda a vida."

O espaço, o tempo, o vazio e o negro - o negro de uma constante paisagem nocturna, densa e silenciosa, como um horizonte envolvente, circular, esférico que os olhos tentam perscrutar como quem toca. Olhos tácteis na noite: podiamos resumir a história assim, ao seu carácter romântico - afinal ele ouvia Wagner e dizia ver, na luz dos néons azuis sobre o veludo negro de algumas das suas obras em ferro, o reflexo da lua cheia sobre o céu. Mas não fiquemos por aí. Pelo menos não para já.

Quando Fernando Calhau (1948-2002) morreu a 12 de Junho (ver PÚBLICO de 13/06/02) tinham passado 36 anos desde que fizera a sua primeira exposição, aos 18 anos, ainda antes de entrar para a Escola de Belas Artes. 36 anos de produção artística persistente e profícua na constituição de uma obra individual entre as mais importantes da segunda metade do século XX português. Tinham passado também 25 anos (encerrados, na altura, há pouco mais de um ano) de dedicação ao serviço público, primeiro através da Secretaria de Estado da Cultura, depois à frente do Instituto de Arte Contemporânea, persistentemente apostado em promover e divulgar o trabalho artístico alheio, com a perfeita noção de com isso condicionar a visibilidade do seu próprio trabalho - ele era, dizem também, implacavelmente lúcido, com uma capacidade de intuição, visão e juízo raros.

Entenda-se: Fernando Calhau não tentava nem desejava ser um homem público, queria, com o voluntarismo e a disponibilidade de quem luta por uma causa que acredita ser a justa, prestar um serviço público. Ainda que isso remetesse o seu percurso artístico à condição de uma certa invisibilidade, ou silêncio. Até porque, de qualquer forma, ele, o mesmo que era capaz de um humor derrisório, desbragado, grosseiro até, era também (paradoxalmente?) capaz da delicadeza mais cavalheiresca e da máxima discrição. Até porque, ele, que amava o cinismo corrosivo, e, no fundo, a infinita tristeza de Thomas Bernhardt, era um ser essencialmente discreto. E ele, de qualquer forma, apreciava o silêncio. (O silêncio, a memória, o tempo - "Cheguei, a certa altura, à conclusão de que não valia a pena combater o que para mim é incombatível", diria.)

Nessa sua senda pública, Calhau ajudou a criar a geração de 80, por vezes histriónica, num zigue-zague entre tendências, fugas para a frente e retornos; depois, ajudou a fazer emergir daí a geração dos anos 90. Entretanto, obstinadamente, regressava a casa, a que horas fosse - à mesma casa onde quase sempre viveu e trabalhou, com a grande sala pombalina virada para a Sé e o estúdio coberto de negro, como fuligem, como se ali tivesse ocorrido um incêndio, como se tudo estivesse carbonizado, dos acrílicos com que pintava -, e obstinava-se numa pesquisa formal e estética de incorruptível coerência e constância.

"No início da minha carreira ficaram definidas as minhas grandes áreas de trabalho. Ficou logo muito claro que não ia ser um pintor figurativo, que ia ter um trabalho mais dedicado às coisas que são os elementos essenciais da pintura, aquilo com que se define a pintura ocidental. Criei uma paleta extremamente limitada, extremamente seca, muito gráfica, em que as coisas teriam mais um valor simbólico que de representação. Depois foi uma questão de, passo a passo, através do tempo, ir fazendo e desenvolvendo as minhas ideias, de ir aprofundando, de ir sendo surpreendido, sempre."

Fica claro: Fernando Calhau tinha um programa a cumprir, tinha uma ideia e, portanto, tinha que lhe dar forma(s) - "O Donal Judd dizia que um artista, quando é bom, tem uma ideia durante toda a vida. Não podemos é pensar que a ideia trabalha para nós. Nós é que trabalhamos para a ideia, acrescentamos sempre um ponto, sem gongorismo. (...) É preciso trabalhar sempre sem nada na manga e sem rede. Vamos sempre a tremer, mas um quadro ajuda o seguinte. É a nossa responsabilidade."

Começou pela gravura, na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. E foi lá, muito cedo, aos 18 anos, ainda antes de entrar para a Escola Superior de Belas Artes, que fez a sua primeira exposição individual. Vivia-se uma ditadura fascista. Para o citar, isso traduzia-se no acesso a muito pouca informação, a uma cultura essencialmente populista, a "um modo de vida atávico", a uma paisagem pontuada "pelo lenço preto das mulheres pelas estradas de Portugal" onde, mesmo num ermo, se falava baixo "com medo que as árvores tivessem microfones".

Fora de Portugal, contudo, sobretudo no mundo anglófono, ouviam-se Rolling Stones, Kinks, Bob Dylan, e estava-se em pleno período Pop e minimal. Era para aí - ao contrário do que acontecera com a anterior geração de artistas, como René Bertholo ou Lourdes Castro, que se tinham virado para França e sido atraídos a Paris pelo apelo da Nouvelle Vague e do Nouveau Realisme - que a sua atenção se virava. Seria, de resto, em Londres, que, mais tarde, durante os anos 70, a estudar na Slade com uma bolsa da Gulbenkian, ao regressar à gravura (em Lisboa já tinha começado a pintar), daria continuidade à sua pesquisa.

Aí definir-se-iam, decididamente, dois aspectos constantes da sua obra: a dedicação à serialização (ou a uma ideia dela, na procura de uma possíbilidade de reprodução mecânica da obra), e ao monocramatismo - revelado sobretudo, no branco, no verde e no preto. Já aqui, a tentativa de redução, de apagamento de formas expressivas, a centralização do trabalho em problemas formais a resolver.

O mesmo tipo de problemas colocar-se-iam em experiências com a fotografia e o vídeo (meio de expressão absolutamente inovador na época). E, ultrapassado um período de "aversão por pincéis, por pintura" (em que importava "o rigor da fotografia, o rigor dos procedimentos que analisassem a pintura quase ao microscópio") de novo, na pintura, num regresso, e reconciliação com o seu genuíno fascínio por ela, apesar do reconhecimento da falência desta enquanto medium.

1979 marcaria um momento de confluências, com uma exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, tida como um momento charneira do seu percurso: "Night Works". Nela Calhau fazia finalmente coexistir telas monocromáticas, pretas, pela primeira vez néons, e fotografia. Fotografia, néons sobre veludo, e pintura monocrómatica como suportes expressivos expostos sem nenhum tipo de clivagem entre eles. Mas ainda sem trabalhos em ferro, o último elemento essencial da sua obra, a integrar o corpo de trabalho.

O ferro surge a partir de 1988. A início, parcialmente pintado, e, a partir de 1991, com uma exposição na galeria Luís Serpa, só o ferro e argon. Esse período vai até 1995. Até então, os quadros de Fernando Calhau (bem como a maioria das suas peças) eram feitos primeiro em croquis - às vezes em folhas minúsculas, no verso de uma carteira de fósforos. Tudo era decidido em anotações. A partir de 1995, e até aos trabalhos efectuados já este ano, como diz Delfim Sardo, ele começa a trabalhar "à pintor", ou seja, a ir pintando de forma a que do próprio fazer da pintura nasça a resolução ulterior da peça - o que o faz reequacionar toda a sua pintura anterior. "Ele próprio tinha alguma relutância em perceber se continuava a seguir o plano conceptual que tinha vindo a seguir até então. É uma altura em que ele olha outra vez para o que tinha feito antes e recupera o espírito do "Night Works", que tinha um fundo romântico importante."

Dizia Fernando Calhau: o silêncio, a memória, o tempo - "todos esses factores são, provavelmente, ingredientes românticos. Cheguei, a certa altura, à conclusão de que não valia a pena combater o que, para mim, é incombatível." O espaço, o tempo, o vazio e o negro, portanto. Ou a noite: "É uma sensação vital estarmos à mercê de um espaço sem orientação."

Todas as citações provêm de uma entrevista concedida por Fernando Calhau ao PÚBLICO em Setembro de 2001, na altura da inauguração na Fundação Gulbenkian da exposição antológica "Work in Progress" (ver edição de 21/10/01), bem como do respectivo catálogo. O texto parte ainda de conversas com Delfim Sardo, Julião Sarmento e João Pinharanda.

Fernando Calhau: Olhos Tácteis na Noite

Por VANESSA RATO

Sábado, 28 de Setembro de 2002

Fernando Calhau morreu a 12 de Junho deste ano. O último ano da sua vida foi, porventura, dos mais intensos do seu percurso artístico, com a produção de um imenso número de novas obras e a realização de várias exposições fundamentais. Foi o caso da antológica organizada pela Gulbenkian com comissariado de Delfim Sardo - a maior e mais esclarecedora alguma vez dedicada ao seu trabalho (ainda que deixasse de fora todo o desenho, um corpo de trabalho ainda por ver de forma sistemática). Mas houve também "Um Passo no Escuro", a exposição que Calhau se empenhou em concretizar com Rui Chafes, com quem partilhava o fascinio pelo romantismo alemão. Foi depois dessa exposição que surgiu ainda a ideia de uma parceria com Julião Sarmento. Amigos íntimos e inseparáveis desde os tempos da Escola Superior de Belas Artes, passando pelo trabalho comum na Secretaria de Estado da Cultura, juntos constataram a falta de um momento de exposição a dois, de um para um. Decidiram apanhar essa ponta solta. O espaço a recebê-los seria a Galeria Mário Sequeira, em Braga. Julião Sarmento com obras da sua mais recente série, "Domestic Isolation", Calhau com 14 novos trabalhos, pintura, e duas peças em ferro e néon - um desses neóns com as palavras "Dead Stop". Estes últimos acabaram por ficar apenas em croqui. Estão lá os trabalhos de Julião Sarmento. As paredes e espaços que deveriam receber os de Fernando Calhau têm inscrito, a preto, claro, o seu nome. A coincidir com a inauguração desta exposição, hoje, situamos alguns momentos fundamentais da obra e da reflexão de Fernando Calhau.

As três páginas seguintes acolhem textos e imagens de Rui Chafes, Delfim Sardo, Clara Ferreira Alves, Ana Nobre Gusmão, Manuel Maria Carrilho, Helena Vasconcelos, Jorge Molder, Michael Biberstein e Julião Sarmento - que também concebeu a capa deste Mil Folhas. A homenagem de quem, de uma forma ou de outra, fez (faz) parte do percurso de Fernando Calhau.

Era Outono, como agora. Há quase um ano certo. Fernando Calhau, um corpo estreito, seco, encolhido, contrariava o afundamento insistente numa esponjosa poltrona de pele preta com uma urgência frenética. Um cigarro permanentemente na mão direita. Uma coluna de fumo fina a ameaçar persistentemente transformar-se em nuvem. Entre pequenas baforadas sincopadas, um sorrizinho semi-irónico - ele podia ser terrivelmente irónico, dizem - para lançar: "Todos os pintores contam a mesma história durante toda a vida."

O espaço, o tempo, o vazio e o negro - o negro de uma constante paisagem nocturna, densa e silenciosa, como um horizonte envolvente, circular, esférico que os olhos tentam perscrutar como quem toca. Olhos tácteis na noite: podiamos resumir a história assim, ao seu carácter romântico - afinal ele ouvia Wagner e dizia ver, na luz dos néons azuis sobre o veludo negro de algumas das suas obras em ferro, o reflexo da lua cheia sobre o céu. Mas não fiquemos por aí. Pelo menos não para já.

Quando Fernando Calhau (1948-2002) morreu a 12 de Junho (ver PÚBLICO de 13/06/02) tinham passado 36 anos desde que fizera a sua primeira exposição, aos 18 anos, ainda antes de entrar para a Escola de Belas Artes. 36 anos de produção artística persistente e profícua na constituição de uma obra individual entre as mais importantes da segunda metade do século XX português. Tinham passado também 25 anos (encerrados, na altura, há pouco mais de um ano) de dedicação ao serviço público, primeiro através da Secretaria de Estado da Cultura, depois à frente do Instituto de Arte Contemporânea, persistentemente apostado em promover e divulgar o trabalho artístico alheio, com a perfeita noção de com isso condicionar a visibilidade do seu próprio trabalho - ele era, dizem também, implacavelmente lúcido, com uma capacidade de intuição, visão e juízo raros.

Entenda-se: Fernando Calhau não tentava nem desejava ser um homem público, queria, com o voluntarismo e a disponibilidade de quem luta por uma causa que acredita ser a justa, prestar um serviço público. Ainda que isso remetesse o seu percurso artístico à condição de uma certa invisibilidade, ou silêncio. Até porque, de qualquer forma, ele, o mesmo que era capaz de um humor derrisório, desbragado, grosseiro até, era também (paradoxalmente?) capaz da delicadeza mais cavalheiresca e da máxima discrição. Até porque, ele, que amava o cinismo corrosivo, e, no fundo, a infinita tristeza de Thomas Bernhardt, era um ser essencialmente discreto. E ele, de qualquer forma, apreciava o silêncio. (O silêncio, a memória, o tempo - "Cheguei, a certa altura, à conclusão de que não valia a pena combater o que para mim é incombatível", diria.)

Nessa sua senda pública, Calhau ajudou a criar a geração de 80, por vezes histriónica, num zigue-zague entre tendências, fugas para a frente e retornos; depois, ajudou a fazer emergir daí a geração dos anos 90. Entretanto, obstinadamente, regressava a casa, a que horas fosse - à mesma casa onde quase sempre viveu e trabalhou, com a grande sala pombalina virada para a Sé e o estúdio coberto de negro, como fuligem, como se ali tivesse ocorrido um incêndio, como se tudo estivesse carbonizado, dos acrílicos com que pintava -, e obstinava-se numa pesquisa formal e estética de incorruptível coerência e constância.

"No início da minha carreira ficaram definidas as minhas grandes áreas de trabalho. Ficou logo muito claro que não ia ser um pintor figurativo, que ia ter um trabalho mais dedicado às coisas que são os elementos essenciais da pintura, aquilo com que se define a pintura ocidental. Criei uma paleta extremamente limitada, extremamente seca, muito gráfica, em que as coisas teriam mais um valor simbólico que de representação. Depois foi uma questão de, passo a passo, através do tempo, ir fazendo e desenvolvendo as minhas ideias, de ir aprofundando, de ir sendo surpreendido, sempre."

Fica claro: Fernando Calhau tinha um programa a cumprir, tinha uma ideia e, portanto, tinha que lhe dar forma(s) - "O Donal Judd dizia que um artista, quando é bom, tem uma ideia durante toda a vida. Não podemos é pensar que a ideia trabalha para nós. Nós é que trabalhamos para a ideia, acrescentamos sempre um ponto, sem gongorismo. (...) É preciso trabalhar sempre sem nada na manga e sem rede. Vamos sempre a tremer, mas um quadro ajuda o seguinte. É a nossa responsabilidade."

Começou pela gravura, na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. E foi lá, muito cedo, aos 18 anos, ainda antes de entrar para a Escola Superior de Belas Artes, que fez a sua primeira exposição individual. Vivia-se uma ditadura fascista. Para o citar, isso traduzia-se no acesso a muito pouca informação, a uma cultura essencialmente populista, a "um modo de vida atávico", a uma paisagem pontuada "pelo lenço preto das mulheres pelas estradas de Portugal" onde, mesmo num ermo, se falava baixo "com medo que as árvores tivessem microfones".

Fora de Portugal, contudo, sobretudo no mundo anglófono, ouviam-se Rolling Stones, Kinks, Bob Dylan, e estava-se em pleno período Pop e minimal. Era para aí - ao contrário do que acontecera com a anterior geração de artistas, como René Bertholo ou Lourdes Castro, que se tinham virado para França e sido atraídos a Paris pelo apelo da Nouvelle Vague e do Nouveau Realisme - que a sua atenção se virava. Seria, de resto, em Londres, que, mais tarde, durante os anos 70, a estudar na Slade com uma bolsa da Gulbenkian, ao regressar à gravura (em Lisboa já tinha começado a pintar), daria continuidade à sua pesquisa.

Aí definir-se-iam, decididamente, dois aspectos constantes da sua obra: a dedicação à serialização (ou a uma ideia dela, na procura de uma possíbilidade de reprodução mecânica da obra), e ao monocramatismo - revelado sobretudo, no branco, no verde e no preto. Já aqui, a tentativa de redução, de apagamento de formas expressivas, a centralização do trabalho em problemas formais a resolver.

O mesmo tipo de problemas colocar-se-iam em experiências com a fotografia e o vídeo (meio de expressão absolutamente inovador na época). E, ultrapassado um período de "aversão por pincéis, por pintura" (em que importava "o rigor da fotografia, o rigor dos procedimentos que analisassem a pintura quase ao microscópio") de novo, na pintura, num regresso, e reconciliação com o seu genuíno fascínio por ela, apesar do reconhecimento da falência desta enquanto medium.

1979 marcaria um momento de confluências, com uma exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, tida como um momento charneira do seu percurso: "Night Works". Nela Calhau fazia finalmente coexistir telas monocromáticas, pretas, pela primeira vez néons, e fotografia. Fotografia, néons sobre veludo, e pintura monocrómatica como suportes expressivos expostos sem nenhum tipo de clivagem entre eles. Mas ainda sem trabalhos em ferro, o último elemento essencial da sua obra, a integrar o corpo de trabalho.

O ferro surge a partir de 1988. A início, parcialmente pintado, e, a partir de 1991, com uma exposição na galeria Luís Serpa, só o ferro e argon. Esse período vai até 1995. Até então, os quadros de Fernando Calhau (bem como a maioria das suas peças) eram feitos primeiro em croquis - às vezes em folhas minúsculas, no verso de uma carteira de fósforos. Tudo era decidido em anotações. A partir de 1995, e até aos trabalhos efectuados já este ano, como diz Delfim Sardo, ele começa a trabalhar "à pintor", ou seja, a ir pintando de forma a que do próprio fazer da pintura nasça a resolução ulterior da peça - o que o faz reequacionar toda a sua pintura anterior. "Ele próprio tinha alguma relutância em perceber se continuava a seguir o plano conceptual que tinha vindo a seguir até então. É uma altura em que ele olha outra vez para o que tinha feito antes e recupera o espírito do "Night Works", que tinha um fundo romântico importante."

Dizia Fernando Calhau: o silêncio, a memória, o tempo - "todos esses factores são, provavelmente, ingredientes românticos. Cheguei, a certa altura, à conclusão de que não valia a pena combater o que, para mim, é incombatível." O espaço, o tempo, o vazio e o negro, portanto. Ou a noite: "É uma sensação vital estarmos à mercê de um espaço sem orientação."

Todas as citações provêm de uma entrevista concedida por Fernando Calhau ao PÚBLICO em Setembro de 2001, na altura da inauguração na Fundação Gulbenkian da exposição antológica "Work in Progress" (ver edição de 21/10/01), bem como do respectivo catálogo. O texto parte ainda de conversas com Delfim Sardo, Julião Sarmento e João Pinharanda.

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