A barbárie, de novo

31-05-2004
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A Barbárie, de Novo

Por MANUEL CARVALHO

Segunda-feira, 19 de Abril de 2004

O historiador britânico Eric Hobsbawm retratou num título a contradição do século passado - "A Era dos Extremos". De um lado, o extraordinário desenvolvimento da democracia, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos humanos; do outro, a terrível barbárie de Verdun, do Somme, de Estalinegrado ou de Auschwitz. As lições do passado nunca são definitivas, mas fomos crescendo a acreditar que os assassínios premeditados eram exclusivo de ódios tribais, de ditadores sanguinários ou de estados párias que integram os apregoados "eixos do mal". Julgávamos que, pelo menos as democracias, tivessem acumulado ensinamentos suficientes para terem pudor em usar termos como "exterminar", "matar" ou "aniquilar".

Puro engano: o regresso em força de expressões que institucionalizam a violência como argumento político, que reclamam o assassínio como meio de garantir a segurança ou que insistem na guerra como o principal meio de alcançar a paz deixaram de ser apanágio de loucos como Pol Pot ou de idiotas com poder como Kim Il-sung. Tornaram-se lugares-comuns em Israel e nos Estados Unidos, apesar da evidente diferença de escala.

Por muito que se compreenda a ferida aberta pelo 11 de Setembro e se aceite que a ameaça terrorista não se combate com tergiversações, custa ouvir do presidente da mais antiga democracia do Mundo a apologia do assassínio invocada no "slogan" "cowboy" da captura de alguém "morto ou vivo". O simples facto de Bush se poder auto-intitular "presidente da guerra" sem que isso gere na América grandes arrepios é o melhor sinal de que o contexto da violência começa a conviver em paz com a democracia.

O pior é que o exemplo dos Estados Unidos faz curso, como sempre, em outros lugares. Outrora, Israel matava com bombas de retaliação dirigidas a alvos suspeitos e perpetrava atrocidades pelo recurso aos inimigos dos seus inimigos - aconteceu em Sabra e Chatila. Nos dias que correm, não há nada a esconder. Já não se raptam os inimigos do Hamas e, muito menos, não há quem ouse pensar em julgamentos, direitos ou garantias. A quem é suspeito de matar, responde-se com o assassínio. Frio, selectivo, planeado e executado com tempo e reflexão. Se isto não é terrorismo, alguém terá de nos ensinar de novo o que é o terrorismo.

Com Israel a transformar-se num estado de "gangsters" apoiado pelos Estados Unidos, as ameaças de regresso às trevas é real. A barbárie deixou de ser prerrogativa de tiranos ou de organizações terroristas, começa a contaminar países e povos que nos serviram de exemplo de civilização. Felizmente, a Europa protesta, resiste, não se conforma. Nem pode, nem deve. Porque se um dia perdermos a referência do que é essencial, como a rejeição pura e simples de assassínios a frio, deixaremos de poder invocar a superioridade moral e civilizacional das nossas democracias para combater sem tréguas os seus inimigos. Estaremos demasiadamente parecidos com eles.

A Barbárie, de Novo

Por MANUEL CARVALHO

Segunda-feira, 19 de Abril de 2004

O historiador britânico Eric Hobsbawm retratou num título a contradição do século passado - "A Era dos Extremos". De um lado, o extraordinário desenvolvimento da democracia, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos humanos; do outro, a terrível barbárie de Verdun, do Somme, de Estalinegrado ou de Auschwitz. As lições do passado nunca são definitivas, mas fomos crescendo a acreditar que os assassínios premeditados eram exclusivo de ódios tribais, de ditadores sanguinários ou de estados párias que integram os apregoados "eixos do mal". Julgávamos que, pelo menos as democracias, tivessem acumulado ensinamentos suficientes para terem pudor em usar termos como "exterminar", "matar" ou "aniquilar".

Puro engano: o regresso em força de expressões que institucionalizam a violência como argumento político, que reclamam o assassínio como meio de garantir a segurança ou que insistem na guerra como o principal meio de alcançar a paz deixaram de ser apanágio de loucos como Pol Pot ou de idiotas com poder como Kim Il-sung. Tornaram-se lugares-comuns em Israel e nos Estados Unidos, apesar da evidente diferença de escala.

Por muito que se compreenda a ferida aberta pelo 11 de Setembro e se aceite que a ameaça terrorista não se combate com tergiversações, custa ouvir do presidente da mais antiga democracia do Mundo a apologia do assassínio invocada no "slogan" "cowboy" da captura de alguém "morto ou vivo". O simples facto de Bush se poder auto-intitular "presidente da guerra" sem que isso gere na América grandes arrepios é o melhor sinal de que o contexto da violência começa a conviver em paz com a democracia.

O pior é que o exemplo dos Estados Unidos faz curso, como sempre, em outros lugares. Outrora, Israel matava com bombas de retaliação dirigidas a alvos suspeitos e perpetrava atrocidades pelo recurso aos inimigos dos seus inimigos - aconteceu em Sabra e Chatila. Nos dias que correm, não há nada a esconder. Já não se raptam os inimigos do Hamas e, muito menos, não há quem ouse pensar em julgamentos, direitos ou garantias. A quem é suspeito de matar, responde-se com o assassínio. Frio, selectivo, planeado e executado com tempo e reflexão. Se isto não é terrorismo, alguém terá de nos ensinar de novo o que é o terrorismo.

Com Israel a transformar-se num estado de "gangsters" apoiado pelos Estados Unidos, as ameaças de regresso às trevas é real. A barbárie deixou de ser prerrogativa de tiranos ou de organizações terroristas, começa a contaminar países e povos que nos serviram de exemplo de civilização. Felizmente, a Europa protesta, resiste, não se conforma. Nem pode, nem deve. Porque se um dia perdermos a referência do que é essencial, como a rejeição pura e simples de assassínios a frio, deixaremos de poder invocar a superioridade moral e civilizacional das nossas democracias para combater sem tréguas os seus inimigos. Estaremos demasiadamente parecidos com eles.

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