Braço-de-ferro euro-americano em Cancun

21-09-2003
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Braço-de-ferro Euro-americano em Cancun

Por MANUEL CARVALHO

Quarta-feira, 10 de Setembro de 2003 Durante décadas, agricultura resistiu à globalização das trocas. Na Ronda do Uruguai, deram-se os primeiros passos para congelar o volume global das ajudas e as revisões da Política Agrícola Comum (PAC) de 1992 ou do "Farm Act" da administração Clinton, de 1996, interromperam o caminho inflacionário dos subsídios e tornaram-nos menos distorsores do comércio. Em Doha, no Qatar, os EUA e a UE acordaram lançar uma nova fase de negociações para acabar com as subvenções à exportação e as barreiras alfandegárias, agora no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os EUA precisaram o seu objectivo: promover um "corte radical" nos subsídios. A promessa foi feita em Novembro de 2001, mas desde então os Estados Unidos aumentaram a sua despesa com a ajuda aos agricultores para 180 mil milhões de dólares (63,6 mil milhões de euros) em dez anos. Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia pôs o dedo na ferida: o novo programa "é a perfeita ilustração da hipocrisia da Administração Bush quando fala da liberalização do comércio". O próprio representante da Administração para as questões comerciais, Robert Zoellick, foi honesto: "Merecemos as críticas que nos dirigiram". Em face do retrocesso do Farm Bill, até o comissário europeu da agricultura, Franz Fishler, passou ao ataque. "Esta política sublinha a falta de credibilidade dos Estados Unidos na OMC, na qual os EUA apresentaram uma agenda voltada para a liberalização que não tem nada a ver com o novo programa. Não podemos negociar na base do 'faz como eu digo, não como eu faço'". Pela primeira vez, a UE assumia uma posição confortável nas negociações. Ainda assim, os europeus gastam muito mais no apoio à agricultura que os americanos. Em cada ano, Bruxelas distribui 67 mil milhões de dólares (60,9 mil milhões de euros) de subsídios contra cerca de 19,1 mil milhões dos seus parceiros além-mar. Claro que na Europa há mais agricultores, muito mais, mas em termos médios o rendimento dos americanos depende em 18 por cento do Estado contra 32 por cento dos europeus. Com tantas pedras no sapato, as duas principais potências agrícolas mundiais e em simultâneo os campeões dos subsídios voltaram a aproximar-se. Em Agosto, Pascal Lamy, o comissário europeu do comércio, e Robert Zoellick anunciaram um acordo bilateral para avançar com o "desarmamento" dos subsídios. Mas ficaram-se por meras declarações formais. A principal proposta negocial em cima da mesa continua assim a ser a avançada no princípio do ano por Stuart Harbison, presidente do comité agrícola da OMC que previa um corte faseado de 60 por cento do volume total das ajudas ao longo de cinco anos. Os europeus não a recusaram liminarmente, embora não a tenham elogiado. Mas o poderoso American "Farm Bureau" considerou-a "desgraçadamente inadequada" e foi dizendo que "é melhor não haver nenhum acordo na OMC do que um mau acordo". As razões são perceptíveis: se o plano Harbison fosse cumprido, ao fim de seis anos os americanos teriam reduzido a sua factura de subsídios para 7,6 mil milhões de dólares, contra 27 mil milhões dos europeus. A incerteza vai manter-se até ao final da ronda de Cancun. Depois de os Estados Unidos terem acordado com países em desenvolvimento novas regras para o comércio mundial de medicamentos genéricos, a agricultura é o passo que falta para que o projecto da OMC possa sobreviver em Cancun. Clayton Yeutter, que foi secretário da Agricultura da Administração Bush, definiu com precisão ao PÚBLICO o que está em jogo: "Cancun não vai ser um sucesso estrondoso, mas também não vai ser como Seattle. Não vai ser, não pode ser", diz. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Futuro da mundialização joga-se em Cancun

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Braço-de-ferro euro-americano em Cancun

Entre a fome e a obesidade

O drama africano

A América rural sob pressão

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Quarta-feira, 10 de Setembro de 2003 Durante décadas, agricultura resistiu à globalização das trocas. Na Ronda do Uruguai, deram-se os primeiros passos para congelar o volume global das ajudas e as revisões da Política Agrícola Comum (PAC) de 1992 ou do "Farm Act" da administração Clinton, de 1996, interromperam o caminho inflacionário dos subsídios e tornaram-nos menos distorsores do comércio. Em Doha, no Qatar, os EUA e a UE acordaram lançar uma nova fase de negociações para acabar com as subvenções à exportação e as barreiras alfandegárias, agora no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os EUA precisaram o seu objectivo: promover um "corte radical" nos subsídios. A promessa foi feita em Novembro de 2001, mas desde então os Estados Unidos aumentaram a sua despesa com a ajuda aos agricultores para 180 mil milhões de dólares (63,6 mil milhões de euros) em dez anos. Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia pôs o dedo na ferida: o novo programa "é a perfeita ilustração da hipocrisia da Administração Bush quando fala da liberalização do comércio". O próprio representante da Administração para as questões comerciais, Robert Zoellick, foi honesto: "Merecemos as críticas que nos dirigiram". Em face do retrocesso do Farm Bill, até o comissário europeu da agricultura, Franz Fishler, passou ao ataque. "Esta política sublinha a falta de credibilidade dos Estados Unidos na OMC, na qual os EUA apresentaram uma agenda voltada para a liberalização que não tem nada a ver com o novo programa. Não podemos negociar na base do 'faz como eu digo, não como eu faço'". Pela primeira vez, a UE assumia uma posição confortável nas negociações. Ainda assim, os europeus gastam muito mais no apoio à agricultura que os americanos. Em cada ano, Bruxelas distribui 67 mil milhões de dólares (60,9 mil milhões de euros) de subsídios contra cerca de 19,1 mil milhões dos seus parceiros além-mar. Claro que na Europa há mais agricultores, muito mais, mas em termos médios o rendimento dos americanos depende em 18 por cento do Estado contra 32 por cento dos europeus. Com tantas pedras no sapato, as duas principais potências agrícolas mundiais e em simultâneo os campeões dos subsídios voltaram a aproximar-se. Em Agosto, Pascal Lamy, o comissário europeu do comércio, e Robert Zoellick anunciaram um acordo bilateral para avançar com o "desarmamento" dos subsídios. Mas ficaram-se por meras declarações formais. A principal proposta negocial em cima da mesa continua assim a ser a avançada no princípio do ano por Stuart Harbison, presidente do comité agrícola da OMC que previa um corte faseado de 60 por cento do volume total das ajudas ao longo de cinco anos. Os europeus não a recusaram liminarmente, embora não a tenham elogiado. Mas o poderoso American "Farm Bureau" considerou-a "desgraçadamente inadequada" e foi dizendo que "é melhor não haver nenhum acordo na OMC do que um mau acordo". As razões são perceptíveis: se o plano Harbison fosse cumprido, ao fim de seis anos os americanos teriam reduzido a sua factura de subsídios para 7,6 mil milhões de dólares, contra 27 mil milhões dos europeus. A incerteza vai manter-se até ao final da ronda de Cancun. Depois de os Estados Unidos terem acordado com países em desenvolvimento novas regras para o comércio mundial de medicamentos genéricos, a agricultura é o passo que falta para que o projecto da OMC possa sobreviver em Cancun. Clayton Yeutter, que foi secretário da Agricultura da Administração Bush, definiu com precisão ao PÚBLICO o que está em jogo: "Cancun não vai ser um sucesso estrondoso, mas também não vai ser como Seattle. Não vai ser, não pode ser", diz. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Futuro da mundialização joga-se em Cancun

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