Entrevista com Manuel Carvalho da Silva

14-06-2002
marcar artigo

Entrevista com Manuel Carvalho da Silva, coordenador da CGTP-IN

Os resultados do trabalho

dão confiança no futuro

Texto de Domingos Mealha

Foto de Jorge Caria

A 3ª Conferência de Organização Sindical, realizada no final de Novembro no Porto, ocorreu num momento de grande ofensiva contra direitos essenciais dos trabalhadores, mas que também coincide com a consolidação de uma viragem no sentido do fortalecimento do movimento sindical unitário e da CGTP.

Em entrevista ao «Avante!», Manuel Carvalho da Silva fala do trabalho desenvolvido por milhares de dirigentes e delegados sindicais durante a preparação da Conferência e sublinha a determinação em prosseguir pelos caminhos que os resultados obtidos confirmam como os mais acertados.

«Avante!» : — Face aos objectivos colocados e às expectativas criadas, como avalias os resultados da Conferência?

Manuel Carvalho da Silva : — A Conferência deu, sem dúvida, excelentes resultados, embora tenhamos de ser realistas e não nos iludirmos, pensando que os avanços conseguidos correspondem na dimensão maior àquilo que são as exigências de hoje. Pequenos avanços conseguidos no contexto em que se vive são, sem sombra de dúvida, resultados muito bons. Os trabalhadores são confrontados com uma grande ofensiva do capital em relação a direitos e mecanismos que historicamente foram conquistando com o equilíbrio das relações laborais. Neste contexto, significa muito conseguir-se clarificar com algum rigor, como penso que fizemos, aquilo que são as tendências essenciais da ofensiva, saber responder a elas e obter resultados positivos, e perspectivar a intervenção da central de uma forma dinâmica.

— Em que se reflecte a palavra de ordem da Conferência «fortalecer, reestruturar, inovar»?

— Tomando esses três objectivos da Conferência, verificamos que conseguimos uma boa leitura da situação; conseguimos, neste ano de preparação da Conferência, dinâmicas de reestruturação, em simultâneo com fortalecimento.

Quando se fala de reestruturação, tem que se observar acima de tudo o que se passa a partir da base. Tivemos um ano com uma significativa dinâmica de eleição de delegados e comissões sindicais. Está aqui um sentido concreto de reestruturar, depois completado com alguns processos de maior amplitude, como a fusão e reorganização do sector metalúrgico e do sector químico, ou como a consumação de alguns processos de filiação de sindicatos na central (caso do Sitava) ou o estabelecimento de protocolos de cooperação com organizações estratégicas na sociedade (como a Fenprof).

É um ano de fortalecimento, de aumento da intervenção e da luta sindical, de alargamento dos objectivos, e isso provoca mais participação dos trabalhadores na vida sindical e participações excepcionais em lutas.

Houve também inovação. Em muitos casos foi necessário inventar, e inventou-se. Estou a recordar-me de todo o processo de luta pela aplicação da Lei 21/96, das 40 horas. Todas as semanas se inventavam formas de manter a luta viva e presente na opinião pública. Também se inovava na sensibilização dos trabalhadores: a confiança conseguida na mensagem aos trabalhadores foi uma inovação. Por outro lado, houve interiorização de ideias dos trabalhadores sobre os seus direitos e sobre aquilo que a sociedade actual tem obrigação de lhes proporcionar, o que levou a dinâmicas novas na negociação colectiva.

Há também rejuvenescimento. Imensos delegados sindicais eleitos são jovens.

Outro dado extraordinariamente importante é o aumento da sindicalização verificado este ano, que confirma o fortalecimento da CGTP e do movimento sindical e que, na maior parte dos casos e como é natural, foi feito com trabalhadores jovens. Isso passou-se na hotelaria, no sector mineiro (que esteve quase desactivado), no sector dos serviços, no Sindicato dos Enfermeiros.

— Isso teve reflexos na Conferência?

— A média etária dos 612 delegados à Conferência é de 42 anos, próxima ou até ligeiramente inferior à média dos trabalhadores por conta de outrem, o que se verificou mesmo tendo em conta o apelo a que participassem nesta Conferência os quadros sindicais mais responsáveis e mais antigos.

— E que efeitos vai ter a Conferência daqui em diante, até ao próximo congresso da CGTP-IN?

Para a frente ficou-nos reflexão suficiente para caminhar. A Conferência dá-nos pequenos passos consolidados, que mostram coerência na nossa acção, criam credibilidade e dão objectivos. Na Conferência foi assumido com muita força que este trabalho de intensificação da acção na base tem que prosseguir com determinação no próximo ano.

Julgo que o conjunto das organizações sindicais vai assumir metas concretas para crescimento da sua organização de base. A Conferência mostra que somos um excelente colectivo, do ponto de vista da dimensão e também da qualidade. Temos 5 mil dirigentes e 15 mil delegados sindicais. Mas ficou o compromisso, assumido explicitamente por quadros bem destacados da nossa estrutura, de aumento deste número de delegados.

Já somos um grande colectivo, mas não tenho dúvida de que vamos chegar ao congresso com um maior número de delegados sindicais e com uma dinâmica de base mais forte.

Foi assumido nesta Conferência, através da reflexão sobre os números coligidos, que há um crescimento contínuo do emprego, há mais trabalhadores assalariados e há um maior peso das mulheres. Tem sido feito um trabalho excepcional dirigido à análise dos problemas das trabalhadoras, envolvendo até agora, no projecto NOW-Luna, 150 dirigentes e activistas, essencialmente mulheres, de um conjunto de empresas com 33 mil trabalhadores, dos quais 17500 são mulheres.

Talvez estejamos mais atrasados em relação aos jovens, mas na Conferência foram abertas perspectivas novas de intervenção e reivindicação, face à realidade actual de maior ocupação da juventude na formação escolar e profissional. Tal como já está a acontecer nalguns sectores, isso vai trazer mais jovens ao movimento sindical.

— E em relação aos serviços, onde o emprego cresceu muito mais que nos outros sectores?

— Também foi feita uma reflexão, até com bastante empenho no terreno. Foram dados exemplos de duas ou três grandes intervenções feitas no último ano, dirigidas aos trabalhadores das grandes superfícies comerciais, das novas áreas... Mas quando falamos de serviços, não podemos limitar-nos ao comércio e escritórios, temos que falar também da hotelaria - onde houve uma forte movimentação durante este ano -, de serviços directos na área da utilização de novas tecnologias, dos serviços mais diversos que são prestados à população.

A Conferência tratou com grande facilidade temas delicados, como a representatividade e as hipotéticas contribuições do Estado para o movimento sindical. Fizemos uma reflexão sobre a correlação de forças em presença no movimento sindical que, curiosamente, ainda não mereceu reparos de ninguém.

Foi assumido que o caminho é o rejuvenescimento e foi dito que não basta a uma parte significativa dos quadros assumirem que ele é necessário - é preciso confirmar com atitudes esse empenho no rejuvenescimento. E foi dito à Conferência que a Comissão Executiva, neste mandato, foi construindo um compromisso que hoje está perfeitamente interiorizado em todos os seus quadros: as mudanças têm que se fazer em ambiente dinâmico, de crescimento, de aumento do empenho de cada um dos elementos que compõem o colectivo.

— Os objectivos apontados correspondem ou não às grandes dificuldades com que os sindicatos e os trabalhadores se defrontam?

Há sempre que equilibrar entre o desejável e o possível. Mas o futuro impõe ter objectivos. Se forem ambiciosos, mas assumidos com empenho, têm alguma possibilidade de concretização. Não abandonamos a utopia, em nenhum dos seus aspectos, desde logo nos princípios: continuamos a lutar por uma sociedade onde não haja exploração do homem pelo homem.

Os sindicatos actuam num cenário de dificuldades que atravessam a sociedade toda. A fragilidade ideológica é muito grande, a nível de base, depois das turbulências dos últimos anos e do desaparecimento de referenciais que se poderiam assumir com alguma força, o que torna as pessoas vulneráveis e abre espaço a populismos, à substituição da reivindicação lógica e fundamentada por reivindicações imediatistas, sem conteúdo ético, moral ou ideológico, mas que penetram.

Definimos na Conferência quatro grandes áreas de objectivos, que acho que se situam bem entre o desejável e o possível.

Primeiro: a sociedade do futuro vai continuar a ser estruturada pelo trabalho. Assim sendo, há que dignificar o trabalho. Quando formulamos reivindicações, quer as mais directas, quer as indirectas (na área da saúde, da segurança social, do ensino, na área fiscal, extremamente importante), temos que ter sempre referências ao trabalho assalariado. Em nenhuma destas áreas o cidadão trabalhador deve ser penalizado, os seus direitos no trabalho não devem ser inferiores aos que tem quando está fora do trabalho.

Estamos numa sociedade que gera exclusões, mas a exclusão não é obra do acaso. Numa sociedade que tem por referência central o trabalho, a exclusão tem a dimensão mais central da sua origem exactamente no afastamento do direito ao trabalho. Mas há hoje uma outra camada, lá em cima, que tem o direito de se auto-excluir, que está isenta de ser solidária: a camada dos ricos e poderosos, que não pagam impostos ou pagam uma ninharia em função da riqueza que acumulam.

Um segundo grande objectivo confirmado na Conferência é interiorizarmos nos trabalhadores portugueses, até à medula, a consciência de que têm o direito de viver melhor e o dever de exigir viver melhor. Precisamos romper com pensamentos negativistas alimentados por cinco décadas de fascismo. Temos que forçar o crescimento dos salários, é uma vergonha o nível salarial em Portugal.

O terceiro grande objectivo é levar à percepção, na sociedade, de qual deve ser a nossa postura face às questões do Estado, das privatizações e dos serviços públicos. O Governo e as forças de direita estão a desarticular o Estado, a pôr as alavancas essenciais do Estado a serem geridas de forma privada, numa dimensão que em qualquer outro país da Europa é muito mais posta em causa que em Portugal.

O processo de privatizações é vergonhoso, mas não há disso uma percepção suficiente. O mesmo problema se coloca em relação aos serviços públicos, como direitos de cidadania que não podem ser submetidos à lógica do lucro privado.

O quarto objectivo, que emana destes três, é uma maior participação dos sindicatos no confronto ideológico, nas questões relativas ao seu espaço específico, combatendo o individualismo e o egoísmo e criando dinâmicas solidárias.

Estivemos doze anos sem fazer uma discussão assim, sobre as grandes questões de organização. Os objectivos estão colocados e o Congresso surge num bom momento para lhes dar continuidade e até reforço.

De 1995 às próximas eleições

— Poderá repetir-se, com a proposta de lei sobre generalização do trabalho a tempo parcial, a situação verificada com a Lei 21/96?

— Em Setembro - depois de termos conseguido uma extraordinária vitória que foi levar o Governo a recuar e aceitar que toda a legislação laboral teria que passar pela AR - fizemos de imediato reuniões, designadamente com a direcção do PS e com o Governo, alertando para a necessidade de não repetir os erros clamorosos cometidos com a chamada Lei das 40 horas. Até agora, essa precaução não foi confirmada, antes pelo contrário, estão a cometer-se alguns erros idênticos. Um deles é o erro de continuar a interpretação da Lei 21/96, que foi tratado com muita frontalidade na Conferência.

— Referes-te à acusação de haver um compromisso entre Guterres e o patronato mais retrógrado?

— Ainda antes das eleições de 1995, o actual primeiro-ministro comprometeu-se politicamente com certas organizações patronais ou com certos empresários, dos sectores mais conservadores, sobre as questões da legislação. Mas esse compromisso não se pode sobrepor às leis do País. A palavra de um chefe tribal faz lei, mas num Estado moderno não pode ser assim.

A aliança imanente desse compromisso foi um impecilho monumental em relação à aplicação correcta da redução do horário de trabalho e constitui o cerne de toda a desarticulação que este pacote laboral pretende introduzir. O primeiro-ministro é o primeiro responsável deste processo todo.

Em reuniões connosco antes das eleições, estiveram de acordo que não deveria haver uma produção de legislação laboral avulso antes de uma sistematização de toda a legislação, a partir da qual se poderia chegar a algum consenso sobre o que seriam áreas a complementar. O primeiro-ministro não o fez até hoje porque tem consciência de que, a partir do momento em que o fizer, desaparecem muitos dos argumentos patronais que deram suporte a esse compromisso, desaparece a argumentação do patronato conservador.

— De que valem os 1500 pareceres de organizações de trabalhadores enviados à AR contra a proposta de lei sobre trabalho a tempo parcial?

— Têm que ser respeitados, não pode haver outra posição. O sistema corporativo de «parceiros de um negócio» não pode substituir-se a este pronunciamento. Não podem passar sobre isto como se nada existisse. Os deputados é que têm o direito de legislar, não se trata de produzir legislação por consulta aos trabalhadores. Mas, perante a opinião expressa pelos trabalhadores, esta lei não tem cabimento, é um choque brutal e um acto contra os trabalhadores. Se quiserem ter em conta a mensagem expressa nos pareceres, os deputados e o Governo sabem como encontrar caminhos para resolver o problema.

Estamos de acordo que se definam linhas mestras para o trabalho a tempo parcial, desde que o espaço de regulamentação do ponto de vista objectivo seja colocado na contratação colectiva. Isto dá um espaço de manobra grande para a AR e o Governo encontrarem caminhos viáveis.

— As mudanças no mundo do trabalho, detectadas na Conferência, não justificariam modificações na legislação laboral?

— O que tem que se fazer é corrigir as degenerações, e não dar por adquirido que as degenerações provocadas pelo sistema sejam transformadas em novas regras. À crescente diferenciação de situações deve corresponder mais regulação, que não quer dizer aumento da burocracia, mas apenas articulação das situações diferenciadas. Se se transforma as degenerações em regras, fica tudo errado.

Não há um desfasamento entre a realidade e as leis. Há insuficiente aplicação das leis. Várias vezes vemos Ferraz da Costa e Nogueira Simões virem dizer que esta ou aquela lei está desactualizada, são «leis do tempo do PREC»... Às vezes estão a falar de leis de 1969, de 1970, do período marcelista, dos anos 80!

Queremos tratar a realidade no sítio certo, mas não aceitamos que se tratem as degenerações como esquemas gerais que passem a ser admitidos na sociedade. Há muito trabalho que é apresentado como trabalho a tempo parcial, mas que é, pura e simplesmente, trabalho precário e explorado até à medula. O que existe de enquadramento legal é suficiente, o problema situa-se exactamente na não aplicação das leis.

No presente pacote laboral há diplomas que só têm como único fundamento aumentar o lucro aos patrões. Como se justifica a redução do período em que o trabalho é remunerado como nocturno? Como se pode interpretar a proposta sobre lay-off, cujo objectivo é retirar encargos da entidade patronal para o Estado?

— Se a proposta do trabalho parcial for avante...?

— Esse «se» nem se põe. Esta proposta não pode passar, e isso vai depender muito da forma como respondermos a cada momento. Até agora, respondemos bem. O tal compromisso do eng. Guterres não é de agora, já tem 3 anos. Nós desmontámos a credibilidade do Acordo Estratégico, que era a peça central que o patronato tinha para fazer a aplicação deste esquema. Conseguimos extraordinários aliados na nossa reflexão. Conseguimos na aplicação da Lei 21/96 introduzir na sociedade a confirmação de que a interpretação jurídica correcta é a nossa e não a que o Governo faz em nome desse compromisso político. Conseguimos que o Governo recuasse e toda a legislação laboral vá à AR, o que é uma vitória extraordinária. Este projecto do trabalho a tempo parcial já só pode ser agendado no próximo ano.

— Vai ser um ano de eleições. Como encara a CGTP este facto?

— Intervindo com coerência. As críticas ao Governo na área social têm que ter uma dimensão muito significativa, por tudo o que respeita à legislação, mas não só. Não há avanços na área fiscal, não foi iniciada uma reforma que traga mais justiça e que leve à diminuição dos impostos sobre o trabalho e a taxamentos sobre a riqueza e os rendimentos. Temos razões de crítica forte em relação à Segurança Social, à Saúde. Vamos falar destes problemas, sem complexos.

Como temos dito, não encontrarão a CGTP a gritar «Cavaco, volta, estás perdoado». Mas vamos dizer claramente que há, em muitas áreas, uma assunção estratégica das políticas que significam uma confusão entre interesses nacionais e interesses do grande capital. É preciso desviar deste caminho e não temos complexo nenhum em fazer alianças tácticas com todos aqueles que apoiarem a defesa dos interesses dos trabalhadores. A CGTP afirma sem equívocos que tem da sociedade uma percepção de que há direita e esquerda e não nos é indiferente a origem do poder: à esquerda, e quanto mais melhor.

A reestruturação

vai acelerar

— Um dos temas centrais da Conferência foi a reestruturação da organização sindical. As decisões confirmam a sua importância?

— Não estamos com nenhum processo esquemático do ponto de vista organizativo, e esta é uma vantagem da Conferência. Nos últimos dois anos fomos delineando um quadro indicador e a Conferência confirmou esse caminho. Simultaneamente, chamou a atenção para coisas que já ontem era tarde para se fazerem. Mas temos uma predisposição para dar respostas mais aceleradas.

Estou perfeitamente convencido de que as coisas vão evoluir. Dentro de dois ou três anos, a estrutura vertical do movimento sindical sofrerá uma alteração significativa. Vamos ter necessidade de reorganização da área dos serviços, de reorganização rápida da área dos transportes... Precisamos de uma coordenação na área da Administração Pública. Confirmou-se que a estrutura regional não pode desaparecer e vai ter um papel significativo, como já se nota hoje em espaços e momentos concretos.

É possível que tenhamos sete ou oito grandes federações, mantendo uma estrutura muito descentralizada, que consolida os mecanismos para o movimento sindical de massas que desejamos, com um aumento da participação dos trabalhadores nas decisões. A declaração de greve, que decidimos preparar desde já para dar resposta ao pacote laboral, terá a suportá-la a decisão directa de milhares de trabalhadores.

«Avante!» Nº 1306 - 10.Dezembro.1998

Entrevista com Manuel Carvalho da Silva, coordenador da CGTP-IN

Os resultados do trabalho

dão confiança no futuro

Texto de Domingos Mealha

Foto de Jorge Caria

A 3ª Conferência de Organização Sindical, realizada no final de Novembro no Porto, ocorreu num momento de grande ofensiva contra direitos essenciais dos trabalhadores, mas que também coincide com a consolidação de uma viragem no sentido do fortalecimento do movimento sindical unitário e da CGTP.

Em entrevista ao «Avante!», Manuel Carvalho da Silva fala do trabalho desenvolvido por milhares de dirigentes e delegados sindicais durante a preparação da Conferência e sublinha a determinação em prosseguir pelos caminhos que os resultados obtidos confirmam como os mais acertados.

«Avante!» : — Face aos objectivos colocados e às expectativas criadas, como avalias os resultados da Conferência?

Manuel Carvalho da Silva : — A Conferência deu, sem dúvida, excelentes resultados, embora tenhamos de ser realistas e não nos iludirmos, pensando que os avanços conseguidos correspondem na dimensão maior àquilo que são as exigências de hoje. Pequenos avanços conseguidos no contexto em que se vive são, sem sombra de dúvida, resultados muito bons. Os trabalhadores são confrontados com uma grande ofensiva do capital em relação a direitos e mecanismos que historicamente foram conquistando com o equilíbrio das relações laborais. Neste contexto, significa muito conseguir-se clarificar com algum rigor, como penso que fizemos, aquilo que são as tendências essenciais da ofensiva, saber responder a elas e obter resultados positivos, e perspectivar a intervenção da central de uma forma dinâmica.

— Em que se reflecte a palavra de ordem da Conferência «fortalecer, reestruturar, inovar»?

— Tomando esses três objectivos da Conferência, verificamos que conseguimos uma boa leitura da situação; conseguimos, neste ano de preparação da Conferência, dinâmicas de reestruturação, em simultâneo com fortalecimento.

Quando se fala de reestruturação, tem que se observar acima de tudo o que se passa a partir da base. Tivemos um ano com uma significativa dinâmica de eleição de delegados e comissões sindicais. Está aqui um sentido concreto de reestruturar, depois completado com alguns processos de maior amplitude, como a fusão e reorganização do sector metalúrgico e do sector químico, ou como a consumação de alguns processos de filiação de sindicatos na central (caso do Sitava) ou o estabelecimento de protocolos de cooperação com organizações estratégicas na sociedade (como a Fenprof).

É um ano de fortalecimento, de aumento da intervenção e da luta sindical, de alargamento dos objectivos, e isso provoca mais participação dos trabalhadores na vida sindical e participações excepcionais em lutas.

Houve também inovação. Em muitos casos foi necessário inventar, e inventou-se. Estou a recordar-me de todo o processo de luta pela aplicação da Lei 21/96, das 40 horas. Todas as semanas se inventavam formas de manter a luta viva e presente na opinião pública. Também se inovava na sensibilização dos trabalhadores: a confiança conseguida na mensagem aos trabalhadores foi uma inovação. Por outro lado, houve interiorização de ideias dos trabalhadores sobre os seus direitos e sobre aquilo que a sociedade actual tem obrigação de lhes proporcionar, o que levou a dinâmicas novas na negociação colectiva.

Há também rejuvenescimento. Imensos delegados sindicais eleitos são jovens.

Outro dado extraordinariamente importante é o aumento da sindicalização verificado este ano, que confirma o fortalecimento da CGTP e do movimento sindical e que, na maior parte dos casos e como é natural, foi feito com trabalhadores jovens. Isso passou-se na hotelaria, no sector mineiro (que esteve quase desactivado), no sector dos serviços, no Sindicato dos Enfermeiros.

— Isso teve reflexos na Conferência?

— A média etária dos 612 delegados à Conferência é de 42 anos, próxima ou até ligeiramente inferior à média dos trabalhadores por conta de outrem, o que se verificou mesmo tendo em conta o apelo a que participassem nesta Conferência os quadros sindicais mais responsáveis e mais antigos.

— E que efeitos vai ter a Conferência daqui em diante, até ao próximo congresso da CGTP-IN?

Para a frente ficou-nos reflexão suficiente para caminhar. A Conferência dá-nos pequenos passos consolidados, que mostram coerência na nossa acção, criam credibilidade e dão objectivos. Na Conferência foi assumido com muita força que este trabalho de intensificação da acção na base tem que prosseguir com determinação no próximo ano.

Julgo que o conjunto das organizações sindicais vai assumir metas concretas para crescimento da sua organização de base. A Conferência mostra que somos um excelente colectivo, do ponto de vista da dimensão e também da qualidade. Temos 5 mil dirigentes e 15 mil delegados sindicais. Mas ficou o compromisso, assumido explicitamente por quadros bem destacados da nossa estrutura, de aumento deste número de delegados.

Já somos um grande colectivo, mas não tenho dúvida de que vamos chegar ao congresso com um maior número de delegados sindicais e com uma dinâmica de base mais forte.

Foi assumido nesta Conferência, através da reflexão sobre os números coligidos, que há um crescimento contínuo do emprego, há mais trabalhadores assalariados e há um maior peso das mulheres. Tem sido feito um trabalho excepcional dirigido à análise dos problemas das trabalhadoras, envolvendo até agora, no projecto NOW-Luna, 150 dirigentes e activistas, essencialmente mulheres, de um conjunto de empresas com 33 mil trabalhadores, dos quais 17500 são mulheres.

Talvez estejamos mais atrasados em relação aos jovens, mas na Conferência foram abertas perspectivas novas de intervenção e reivindicação, face à realidade actual de maior ocupação da juventude na formação escolar e profissional. Tal como já está a acontecer nalguns sectores, isso vai trazer mais jovens ao movimento sindical.

— E em relação aos serviços, onde o emprego cresceu muito mais que nos outros sectores?

— Também foi feita uma reflexão, até com bastante empenho no terreno. Foram dados exemplos de duas ou três grandes intervenções feitas no último ano, dirigidas aos trabalhadores das grandes superfícies comerciais, das novas áreas... Mas quando falamos de serviços, não podemos limitar-nos ao comércio e escritórios, temos que falar também da hotelaria - onde houve uma forte movimentação durante este ano -, de serviços directos na área da utilização de novas tecnologias, dos serviços mais diversos que são prestados à população.

A Conferência tratou com grande facilidade temas delicados, como a representatividade e as hipotéticas contribuições do Estado para o movimento sindical. Fizemos uma reflexão sobre a correlação de forças em presença no movimento sindical que, curiosamente, ainda não mereceu reparos de ninguém.

Foi assumido que o caminho é o rejuvenescimento e foi dito que não basta a uma parte significativa dos quadros assumirem que ele é necessário - é preciso confirmar com atitudes esse empenho no rejuvenescimento. E foi dito à Conferência que a Comissão Executiva, neste mandato, foi construindo um compromisso que hoje está perfeitamente interiorizado em todos os seus quadros: as mudanças têm que se fazer em ambiente dinâmico, de crescimento, de aumento do empenho de cada um dos elementos que compõem o colectivo.

— Os objectivos apontados correspondem ou não às grandes dificuldades com que os sindicatos e os trabalhadores se defrontam?

Há sempre que equilibrar entre o desejável e o possível. Mas o futuro impõe ter objectivos. Se forem ambiciosos, mas assumidos com empenho, têm alguma possibilidade de concretização. Não abandonamos a utopia, em nenhum dos seus aspectos, desde logo nos princípios: continuamos a lutar por uma sociedade onde não haja exploração do homem pelo homem.

Os sindicatos actuam num cenário de dificuldades que atravessam a sociedade toda. A fragilidade ideológica é muito grande, a nível de base, depois das turbulências dos últimos anos e do desaparecimento de referenciais que se poderiam assumir com alguma força, o que torna as pessoas vulneráveis e abre espaço a populismos, à substituição da reivindicação lógica e fundamentada por reivindicações imediatistas, sem conteúdo ético, moral ou ideológico, mas que penetram.

Definimos na Conferência quatro grandes áreas de objectivos, que acho que se situam bem entre o desejável e o possível.

Primeiro: a sociedade do futuro vai continuar a ser estruturada pelo trabalho. Assim sendo, há que dignificar o trabalho. Quando formulamos reivindicações, quer as mais directas, quer as indirectas (na área da saúde, da segurança social, do ensino, na área fiscal, extremamente importante), temos que ter sempre referências ao trabalho assalariado. Em nenhuma destas áreas o cidadão trabalhador deve ser penalizado, os seus direitos no trabalho não devem ser inferiores aos que tem quando está fora do trabalho.

Estamos numa sociedade que gera exclusões, mas a exclusão não é obra do acaso. Numa sociedade que tem por referência central o trabalho, a exclusão tem a dimensão mais central da sua origem exactamente no afastamento do direito ao trabalho. Mas há hoje uma outra camada, lá em cima, que tem o direito de se auto-excluir, que está isenta de ser solidária: a camada dos ricos e poderosos, que não pagam impostos ou pagam uma ninharia em função da riqueza que acumulam.

Um segundo grande objectivo confirmado na Conferência é interiorizarmos nos trabalhadores portugueses, até à medula, a consciência de que têm o direito de viver melhor e o dever de exigir viver melhor. Precisamos romper com pensamentos negativistas alimentados por cinco décadas de fascismo. Temos que forçar o crescimento dos salários, é uma vergonha o nível salarial em Portugal.

O terceiro grande objectivo é levar à percepção, na sociedade, de qual deve ser a nossa postura face às questões do Estado, das privatizações e dos serviços públicos. O Governo e as forças de direita estão a desarticular o Estado, a pôr as alavancas essenciais do Estado a serem geridas de forma privada, numa dimensão que em qualquer outro país da Europa é muito mais posta em causa que em Portugal.

O processo de privatizações é vergonhoso, mas não há disso uma percepção suficiente. O mesmo problema se coloca em relação aos serviços públicos, como direitos de cidadania que não podem ser submetidos à lógica do lucro privado.

O quarto objectivo, que emana destes três, é uma maior participação dos sindicatos no confronto ideológico, nas questões relativas ao seu espaço específico, combatendo o individualismo e o egoísmo e criando dinâmicas solidárias.

Estivemos doze anos sem fazer uma discussão assim, sobre as grandes questões de organização. Os objectivos estão colocados e o Congresso surge num bom momento para lhes dar continuidade e até reforço.

De 1995 às próximas eleições

— Poderá repetir-se, com a proposta de lei sobre generalização do trabalho a tempo parcial, a situação verificada com a Lei 21/96?

— Em Setembro - depois de termos conseguido uma extraordinária vitória que foi levar o Governo a recuar e aceitar que toda a legislação laboral teria que passar pela AR - fizemos de imediato reuniões, designadamente com a direcção do PS e com o Governo, alertando para a necessidade de não repetir os erros clamorosos cometidos com a chamada Lei das 40 horas. Até agora, essa precaução não foi confirmada, antes pelo contrário, estão a cometer-se alguns erros idênticos. Um deles é o erro de continuar a interpretação da Lei 21/96, que foi tratado com muita frontalidade na Conferência.

— Referes-te à acusação de haver um compromisso entre Guterres e o patronato mais retrógrado?

— Ainda antes das eleições de 1995, o actual primeiro-ministro comprometeu-se politicamente com certas organizações patronais ou com certos empresários, dos sectores mais conservadores, sobre as questões da legislação. Mas esse compromisso não se pode sobrepor às leis do País. A palavra de um chefe tribal faz lei, mas num Estado moderno não pode ser assim.

A aliança imanente desse compromisso foi um impecilho monumental em relação à aplicação correcta da redução do horário de trabalho e constitui o cerne de toda a desarticulação que este pacote laboral pretende introduzir. O primeiro-ministro é o primeiro responsável deste processo todo.

Em reuniões connosco antes das eleições, estiveram de acordo que não deveria haver uma produção de legislação laboral avulso antes de uma sistematização de toda a legislação, a partir da qual se poderia chegar a algum consenso sobre o que seriam áreas a complementar. O primeiro-ministro não o fez até hoje porque tem consciência de que, a partir do momento em que o fizer, desaparecem muitos dos argumentos patronais que deram suporte a esse compromisso, desaparece a argumentação do patronato conservador.

— De que valem os 1500 pareceres de organizações de trabalhadores enviados à AR contra a proposta de lei sobre trabalho a tempo parcial?

— Têm que ser respeitados, não pode haver outra posição. O sistema corporativo de «parceiros de um negócio» não pode substituir-se a este pronunciamento. Não podem passar sobre isto como se nada existisse. Os deputados é que têm o direito de legislar, não se trata de produzir legislação por consulta aos trabalhadores. Mas, perante a opinião expressa pelos trabalhadores, esta lei não tem cabimento, é um choque brutal e um acto contra os trabalhadores. Se quiserem ter em conta a mensagem expressa nos pareceres, os deputados e o Governo sabem como encontrar caminhos para resolver o problema.

Estamos de acordo que se definam linhas mestras para o trabalho a tempo parcial, desde que o espaço de regulamentação do ponto de vista objectivo seja colocado na contratação colectiva. Isto dá um espaço de manobra grande para a AR e o Governo encontrarem caminhos viáveis.

— As mudanças no mundo do trabalho, detectadas na Conferência, não justificariam modificações na legislação laboral?

— O que tem que se fazer é corrigir as degenerações, e não dar por adquirido que as degenerações provocadas pelo sistema sejam transformadas em novas regras. À crescente diferenciação de situações deve corresponder mais regulação, que não quer dizer aumento da burocracia, mas apenas articulação das situações diferenciadas. Se se transforma as degenerações em regras, fica tudo errado.

Não há um desfasamento entre a realidade e as leis. Há insuficiente aplicação das leis. Várias vezes vemos Ferraz da Costa e Nogueira Simões virem dizer que esta ou aquela lei está desactualizada, são «leis do tempo do PREC»... Às vezes estão a falar de leis de 1969, de 1970, do período marcelista, dos anos 80!

Queremos tratar a realidade no sítio certo, mas não aceitamos que se tratem as degenerações como esquemas gerais que passem a ser admitidos na sociedade. Há muito trabalho que é apresentado como trabalho a tempo parcial, mas que é, pura e simplesmente, trabalho precário e explorado até à medula. O que existe de enquadramento legal é suficiente, o problema situa-se exactamente na não aplicação das leis.

No presente pacote laboral há diplomas que só têm como único fundamento aumentar o lucro aos patrões. Como se justifica a redução do período em que o trabalho é remunerado como nocturno? Como se pode interpretar a proposta sobre lay-off, cujo objectivo é retirar encargos da entidade patronal para o Estado?

— Se a proposta do trabalho parcial for avante...?

— Esse «se» nem se põe. Esta proposta não pode passar, e isso vai depender muito da forma como respondermos a cada momento. Até agora, respondemos bem. O tal compromisso do eng. Guterres não é de agora, já tem 3 anos. Nós desmontámos a credibilidade do Acordo Estratégico, que era a peça central que o patronato tinha para fazer a aplicação deste esquema. Conseguimos extraordinários aliados na nossa reflexão. Conseguimos na aplicação da Lei 21/96 introduzir na sociedade a confirmação de que a interpretação jurídica correcta é a nossa e não a que o Governo faz em nome desse compromisso político. Conseguimos que o Governo recuasse e toda a legislação laboral vá à AR, o que é uma vitória extraordinária. Este projecto do trabalho a tempo parcial já só pode ser agendado no próximo ano.

— Vai ser um ano de eleições. Como encara a CGTP este facto?

— Intervindo com coerência. As críticas ao Governo na área social têm que ter uma dimensão muito significativa, por tudo o que respeita à legislação, mas não só. Não há avanços na área fiscal, não foi iniciada uma reforma que traga mais justiça e que leve à diminuição dos impostos sobre o trabalho e a taxamentos sobre a riqueza e os rendimentos. Temos razões de crítica forte em relação à Segurança Social, à Saúde. Vamos falar destes problemas, sem complexos.

Como temos dito, não encontrarão a CGTP a gritar «Cavaco, volta, estás perdoado». Mas vamos dizer claramente que há, em muitas áreas, uma assunção estratégica das políticas que significam uma confusão entre interesses nacionais e interesses do grande capital. É preciso desviar deste caminho e não temos complexo nenhum em fazer alianças tácticas com todos aqueles que apoiarem a defesa dos interesses dos trabalhadores. A CGTP afirma sem equívocos que tem da sociedade uma percepção de que há direita e esquerda e não nos é indiferente a origem do poder: à esquerda, e quanto mais melhor.

A reestruturação

vai acelerar

— Um dos temas centrais da Conferência foi a reestruturação da organização sindical. As decisões confirmam a sua importância?

— Não estamos com nenhum processo esquemático do ponto de vista organizativo, e esta é uma vantagem da Conferência. Nos últimos dois anos fomos delineando um quadro indicador e a Conferência confirmou esse caminho. Simultaneamente, chamou a atenção para coisas que já ontem era tarde para se fazerem. Mas temos uma predisposição para dar respostas mais aceleradas.

Estou perfeitamente convencido de que as coisas vão evoluir. Dentro de dois ou três anos, a estrutura vertical do movimento sindical sofrerá uma alteração significativa. Vamos ter necessidade de reorganização da área dos serviços, de reorganização rápida da área dos transportes... Precisamos de uma coordenação na área da Administração Pública. Confirmou-se que a estrutura regional não pode desaparecer e vai ter um papel significativo, como já se nota hoje em espaços e momentos concretos.

É possível que tenhamos sete ou oito grandes federações, mantendo uma estrutura muito descentralizada, que consolida os mecanismos para o movimento sindical de massas que desejamos, com um aumento da participação dos trabalhadores nas decisões. A declaração de greve, que decidimos preparar desde já para dar resposta ao pacote laboral, terá a suportá-la a decisão directa de milhares de trabalhadores.

«Avante!» Nº 1306 - 10.Dezembro.1998

marcar artigo