104 anos de dignidade sem preço

09-08-2004
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104 Anos de Dignidade Sem Preço

Domingo, 04 de Julho de 2004 %António Melo Foi em Casal Novo, "um local lindo, sobranceiro ao Zêzere". Uma mulher solteira pediu-lhe ajuda para um parto difícil. Vivia num casebre de uma única divisão, com um desvão que servia de cozinha. Encostado à parede um catre onde a jovem mulher se debatia em contracções que não conseguia controlar. Percebeu que tinha que recorrer ao fórceps, mas naquele reduzido espaço era impossível movimentar-se - "só se me deitasse de costas". O que não era certamente a melhor maneira de actuar. Puxou o catre para a soleira da porta e ali, perante os olhares dos vizinhos, se fez o nascimento. "Eu a gritar com o povo, para se ir embora; a gritar com a mulher para estar calada...". Remata com uma gargalhada sonora a descrição do episódio de médico de aldeia em serras beirãs, que a boa disposição faz parte de um carácter nobre. Conversar com Fernando Valle é como seguir o rio Alva, que lhe banha a casa e serena as inquietações. Muda de paisagem ao compasso dos meandros que sulca sem pressas. Por isso, naquele solar granítico de Côja, as palavras são como as cerejas. Comem-se sem conta nem medida. Somos quatro, ali a falar sobre a biografia que Fernando Madaíl escreveu sobre o "homem de Côja", o autor, o ancião, o jornalista e o Sérgio Azenha, mais afastado, a olhar-nos através da objectiva da sua máquina fotográfica. Há uma óbvia cumplicidade entre biógrafo e biografado, que se traduz na simpatia do olhar, no repisar de palavras de fim de frase. A dado passo, Madaíl realça a vitalidade do homem que a 30 de Julho faz 104 anos. Relata que ainda recentemente interveio no lançamento do livro a quatro mãos de Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto, "Diálogo de Gerações". Também este "Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda" é um diálogo de gerações, numa viagem pela história de Portugal, sobretudo a do último século, que Valle testemunhou por inteiro e Madaíl viveu, da passagem da ditadura para a democracia. O autor recorda o efeito de uma tirada de Valle quando há uns anos veio um de Braga fazer-lhe uma homenagem: "Dizem que Portugal é um País antigo. Afinal, são oito homens com a minha idade..." Ao ouvi-lo, olha-se melhor para o senhor da frase e uma perplexidade assalta quem ali está. E se houvesse, de facto, essa fraternidade de sábios, em que o mais antigo, quando vai repousar, deixa nas mãos do que lhe está próximo o esquadro e o compasso da sabedoria? Ilusões, que o velho médico se encarrega de desfazer ao pôr a tónica na responsabilidade pessoal que cada um de nós tem na construção de uma sociedade democrática: "A democracia está estabelecida, o que não está é sentida". Numa conversa em 1999 sublinhara já o pouco apego das elites pela vivência democrática: "É preciso ler a história, em especial a nossa. Se tivermos em conta que de 1536 até 1822 foram três séculos em que a política portuguesa se confundiu com a repressão da Inquisição... Durante esses quase três séculos não entrou cá nada de novo do que se passava no mundo. O país viveu através da sabedoria popular, do heroísmo do povo rural, e sublinho este traço heróico, porque o foi mesmo para ter sobrevivido àquele mundo. Aqui, nos campos, nas fábricas ou lá fora. E o espírito inquisitorial regressou com o Salazar, a tal ponto que os que queriam sobreviver pela emigração tinham que o fazer com o 'passaporte de coelho' (clandestinamente)." Excelente passagem esta para um tema da actualidade, a ida de Durão Barroso para a presidência da União Europeia e a sua condução governamental interna. Fernando Valle, que dizem duro de ouvido, mas só para o que não lhe interessa escutar, apreende o salto da conversa e responde com discrição: "Conheço-o mal, mas acho que tem algum merecimento. Quanto à ida dele para Bruxelas, penso que neste momento se precisava mais dele a actuar cá dentro. Mas não duvido que também pode ter uma boa actuação lá fora". O mesmo tom de prudência quando o jornalista lhe pergunta se ainda se guarda saudades da fotografia fundadora do Partido Socialista, em Bad-Munstereifel, em Abril de 1973, onde, com Gustavo Soromenho, parecem duas colunas a enquadrar Mário Soares. "Essa fotografia traz-me saudades muito grandes, claro está, de quando era mais jovem. Quanto ao partido ele também cá está e eu continuo nele. Não será tão bom como a gente desejava que fosse, mas lá vai andado. É dos melhores que cá existem". Um sorriso de maliciosa satisfação lê-se-lhe nos olhos, que se viram para Fernando Madaíl, que se mostra encantado com a prontidão das respostas. O biógrafo explica longamente que o título foi objecto de uma pequena polémica entre ele e o prefaciador, Mário Soares, que teria preferido "Fernando Valle - Cidadão da Esquerda", com o biografado a assentir com a cabeça. Madaíl discorda e bate as palavras uma a uma, para que fique claro que a sua opção é a mais adequada ao perfil daquele "pequeno grande homem", que não vê outra grandeza nele próprio, que não seja a de ter cumprido com o seu dever. Sublinha que a palavra aristocracia vem do grego, "governo dos melhores", e, pegando no livro, lê a explicação que deu em nota de rodapé: "usa-se nesta obra no sentido de grupo de pessoas com distinção intelectual e moral, para não confundir com a ideia de 'snob'". O sinal desta aristocracia de maneiras vê-se, reforça, na atitude do povo de Arganil, de Côja e também de Coimbra, quando nos anos de brasa (1976 - 1980) ali foi governador-civil e conseguiu não hostilizar ninguém, deixando atrás de si a adjudicação do novo hospital universitário: "O Dr. Fernando Vale sempre defendeu a tese de que o povo é bom e nos momentos difíceis da vida dele isso confirmou-se, com as manifestações de solidariedade que lhe fizeram". A "invejazinha", tão afirmada por Salazar como característica do povo português, acrescenta Madaíl, foi um instrumento que "o ditador" usou para controlar as "classe altas" e não o povo, que esse tinha que se sujeitar às ordens de quem mandava. A aprovação com que Fernando Valle acolhe estas palavras confirma a absoluta identidade de pontos de vista entre os dois quanto ao carácter do chefe do Estado Novo. Tinha uma "personalidade intolerante", que caía com frequência para a "maldade", sempre que tomava rancor contra alguém. E Fernando Valle recorda a perseguição tenaz e miudinha que exerceu sobre dois vultos da I Primeira República, Moura Pinto e Veiga Simões, "que nada tinham de radical", mas que ousaram criticá-lo de maneira directa e ele "nunca lhes perdoou". "Assisti-lhe aos últimos momentos (de Moura Pinto). Ele puxou-me pela aba do casaco e numa linguagem um pouco entaramelada disse-me assim: "O filho da p. de Santa Comba, fora a mãe, que não tem culpa, está bem vingado de mim". Uma sonora gargalhada remata a evocação deste episódio, com a qual Valle repõe a boa disposição e enterra em definitivo a "múmia de Santa Comba Dão". A tarefa de Fernando Madaíl não foi fácil e quem já lidou com o biografado sabe-o bem, pois a escutá-lo ele não tem nada que o distinga de qualquer outro, a não ser no prazer da conversa que dedica ao que a ele se dirigem. O editor Baptista Lopes dá conta desta exasperação que desanimou já mais do que um, precisamente quando há quatro anos - exactamente, a aventura de Madaíl conta quatro anos de canseiras - foi dar-lhe conta da sua intenção de publicar a biografia que o Fernando Madaíl queria fazer dele e, pensavam então os dois, podia estar pronta para celebrar o centenário. 'Que ideia', retorquiu o "homem de Côja", não ia haver assunto para uma página de jornal quanto mais para um livro. Que tirassem daí o sentido um e o outro, que viessem sempre, mas para conversar, e deixassem-se de mais histórias. Baptista Lopes fez sentido de anuir e prosseguiram no almoço sem mais tocar no assunto. Foi no final que o editor da Âncora se saiu com um desabafo: "O Dr. Fernando Valle vai desculpar-me, mas eu sinto-me na obrigação, se me permite, de ir falar com os seus amigos. É que eles têm uma ideia completamente errada de si. Têm-no na maior consideração e contam coisas a seu respeito que o tornam digno do maior louvor. Se me permite, vou corrigir esta ideia que eles têm de si". Uma sonora gargalhada, das que vêm lá do fundo do coração, provou que o respeitável ancião tinha sentido de humor e sabia ganhar e perder uma partida - ao contrário do seu grande amigo Miguel Torga, também feito de granito de uma só peça, mas que nem na caça gostava de perder. Principiou então a saga da biografia, que já se percebeu não ficou concluída em seis meses. Palavra empurra palavra, exigência intelectual implica rigor, rigor quer dizer aturada pesquisa. E assim foi engrossando página a página, até chegar às mais de 500. A obra constrói-se cronologicamente, do "Tempo da Esperança", o primeiro capítulo, que cobre os anos de 1900 a 1926, ao "Tempo de Liberdade", do quinto capítulo, que vai de 1974 a 2003. No interregno ficam "Tempo de Chumbo", 1926 a 1945, "Tempo Negro", 1945 a 1958, e "Tempo de Mudança", de 1958 a 1974. O que vai surpreender o leitor, porém, é a maneira como o biógrafo teceu o fio da meada. Vai deparar com uma gigantesca tapeçaria que transborda o século XX, que vai vendo construir-se linha a linha, à medida que progride na leitura. Distingue com nitidez crescente e ao pormenor, uma animada vida cultural e de resistência ao autoritarismo do Estado Novo, atravessando serranias que se pensava que eram só percorridas pelo vento, pelo uivo dos lobos e pelo ladrar dos cães. A partir destes nós locais lança-se o entrançado para as figuras e os movimentos nacionais de oposição à ditadura salazarista. Com o tear sempre a trabalhar e Fernando Madaíl em constante dobadoura, precisando quem era este nome, quando ocorreu este evento, que ligações vai ter mais adiante esta personagem e por aí fora. Até que nos damos conta que a lançadeira que a mão do autor vai fazendo laborar nos dá, em trama, o perfil do biografado. Ele, que se escusou sempre a ser a figura principal de fosse qual acontecimento fosse, aparece na trama em desenho de fundo. "Lindo", como a vista daquele Casal Novo, onde nasceu uma criança na soalheira de uma porta. "Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda", de Fernando Madaíl (ed. Âncora), é lançamento terça-feira, às 18h30, na Fundação Mário Soares, em Lisboa, na presença do biografado e do autor; falarão Mário Soares, Almeida Santos e Manuel Alegre. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

A grande marcha da China

Principais destinos turísticos por país em 2020

A dor é uma autêntica epidemia silenciosa José Castro Lopes

Investigador desde a adolescência

Allegra Versace

Fernando Vale O homem de Côja

104 anos de dignidade sem preço

Al-Andaluz

Aniversário

Os últimos dias dos encantadores de serpentes

Conviver com a asma

Pela estrada fora

Entrada fria

O nariz da mostarda

Clube dos mentirosos

Horóscopo 4 a 10 de Julho

CRÓNICAS

Levantou\u2011se, ela não estava lá

O Índex 4 de Julho de 2004

104 Anos de Dignidade Sem Preço

Domingo, 04 de Julho de 2004 %António Melo Foi em Casal Novo, "um local lindo, sobranceiro ao Zêzere". Uma mulher solteira pediu-lhe ajuda para um parto difícil. Vivia num casebre de uma única divisão, com um desvão que servia de cozinha. Encostado à parede um catre onde a jovem mulher se debatia em contracções que não conseguia controlar. Percebeu que tinha que recorrer ao fórceps, mas naquele reduzido espaço era impossível movimentar-se - "só se me deitasse de costas". O que não era certamente a melhor maneira de actuar. Puxou o catre para a soleira da porta e ali, perante os olhares dos vizinhos, se fez o nascimento. "Eu a gritar com o povo, para se ir embora; a gritar com a mulher para estar calada...". Remata com uma gargalhada sonora a descrição do episódio de médico de aldeia em serras beirãs, que a boa disposição faz parte de um carácter nobre. Conversar com Fernando Valle é como seguir o rio Alva, que lhe banha a casa e serena as inquietações. Muda de paisagem ao compasso dos meandros que sulca sem pressas. Por isso, naquele solar granítico de Côja, as palavras são como as cerejas. Comem-se sem conta nem medida. Somos quatro, ali a falar sobre a biografia que Fernando Madaíl escreveu sobre o "homem de Côja", o autor, o ancião, o jornalista e o Sérgio Azenha, mais afastado, a olhar-nos através da objectiva da sua máquina fotográfica. Há uma óbvia cumplicidade entre biógrafo e biografado, que se traduz na simpatia do olhar, no repisar de palavras de fim de frase. A dado passo, Madaíl realça a vitalidade do homem que a 30 de Julho faz 104 anos. Relata que ainda recentemente interveio no lançamento do livro a quatro mãos de Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto, "Diálogo de Gerações". Também este "Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda" é um diálogo de gerações, numa viagem pela história de Portugal, sobretudo a do último século, que Valle testemunhou por inteiro e Madaíl viveu, da passagem da ditadura para a democracia. O autor recorda o efeito de uma tirada de Valle quando há uns anos veio um de Braga fazer-lhe uma homenagem: "Dizem que Portugal é um País antigo. Afinal, são oito homens com a minha idade..." Ao ouvi-lo, olha-se melhor para o senhor da frase e uma perplexidade assalta quem ali está. E se houvesse, de facto, essa fraternidade de sábios, em que o mais antigo, quando vai repousar, deixa nas mãos do que lhe está próximo o esquadro e o compasso da sabedoria? Ilusões, que o velho médico se encarrega de desfazer ao pôr a tónica na responsabilidade pessoal que cada um de nós tem na construção de uma sociedade democrática: "A democracia está estabelecida, o que não está é sentida". Numa conversa em 1999 sublinhara já o pouco apego das elites pela vivência democrática: "É preciso ler a história, em especial a nossa. Se tivermos em conta que de 1536 até 1822 foram três séculos em que a política portuguesa se confundiu com a repressão da Inquisição... Durante esses quase três séculos não entrou cá nada de novo do que se passava no mundo. O país viveu através da sabedoria popular, do heroísmo do povo rural, e sublinho este traço heróico, porque o foi mesmo para ter sobrevivido àquele mundo. Aqui, nos campos, nas fábricas ou lá fora. E o espírito inquisitorial regressou com o Salazar, a tal ponto que os que queriam sobreviver pela emigração tinham que o fazer com o 'passaporte de coelho' (clandestinamente)." Excelente passagem esta para um tema da actualidade, a ida de Durão Barroso para a presidência da União Europeia e a sua condução governamental interna. Fernando Valle, que dizem duro de ouvido, mas só para o que não lhe interessa escutar, apreende o salto da conversa e responde com discrição: "Conheço-o mal, mas acho que tem algum merecimento. Quanto à ida dele para Bruxelas, penso que neste momento se precisava mais dele a actuar cá dentro. Mas não duvido que também pode ter uma boa actuação lá fora". O mesmo tom de prudência quando o jornalista lhe pergunta se ainda se guarda saudades da fotografia fundadora do Partido Socialista, em Bad-Munstereifel, em Abril de 1973, onde, com Gustavo Soromenho, parecem duas colunas a enquadrar Mário Soares. "Essa fotografia traz-me saudades muito grandes, claro está, de quando era mais jovem. Quanto ao partido ele também cá está e eu continuo nele. Não será tão bom como a gente desejava que fosse, mas lá vai andado. É dos melhores que cá existem". Um sorriso de maliciosa satisfação lê-se-lhe nos olhos, que se viram para Fernando Madaíl, que se mostra encantado com a prontidão das respostas. O biógrafo explica longamente que o título foi objecto de uma pequena polémica entre ele e o prefaciador, Mário Soares, que teria preferido "Fernando Valle - Cidadão da Esquerda", com o biografado a assentir com a cabeça. Madaíl discorda e bate as palavras uma a uma, para que fique claro que a sua opção é a mais adequada ao perfil daquele "pequeno grande homem", que não vê outra grandeza nele próprio, que não seja a de ter cumprido com o seu dever. Sublinha que a palavra aristocracia vem do grego, "governo dos melhores", e, pegando no livro, lê a explicação que deu em nota de rodapé: "usa-se nesta obra no sentido de grupo de pessoas com distinção intelectual e moral, para não confundir com a ideia de 'snob'". O sinal desta aristocracia de maneiras vê-se, reforça, na atitude do povo de Arganil, de Côja e também de Coimbra, quando nos anos de brasa (1976 - 1980) ali foi governador-civil e conseguiu não hostilizar ninguém, deixando atrás de si a adjudicação do novo hospital universitário: "O Dr. Fernando Vale sempre defendeu a tese de que o povo é bom e nos momentos difíceis da vida dele isso confirmou-se, com as manifestações de solidariedade que lhe fizeram". A "invejazinha", tão afirmada por Salazar como característica do povo português, acrescenta Madaíl, foi um instrumento que "o ditador" usou para controlar as "classe altas" e não o povo, que esse tinha que se sujeitar às ordens de quem mandava. A aprovação com que Fernando Valle acolhe estas palavras confirma a absoluta identidade de pontos de vista entre os dois quanto ao carácter do chefe do Estado Novo. Tinha uma "personalidade intolerante", que caía com frequência para a "maldade", sempre que tomava rancor contra alguém. E Fernando Valle recorda a perseguição tenaz e miudinha que exerceu sobre dois vultos da I Primeira República, Moura Pinto e Veiga Simões, "que nada tinham de radical", mas que ousaram criticá-lo de maneira directa e ele "nunca lhes perdoou". "Assisti-lhe aos últimos momentos (de Moura Pinto). Ele puxou-me pela aba do casaco e numa linguagem um pouco entaramelada disse-me assim: "O filho da p. de Santa Comba, fora a mãe, que não tem culpa, está bem vingado de mim". Uma sonora gargalhada remata a evocação deste episódio, com a qual Valle repõe a boa disposição e enterra em definitivo a "múmia de Santa Comba Dão". A tarefa de Fernando Madaíl não foi fácil e quem já lidou com o biografado sabe-o bem, pois a escutá-lo ele não tem nada que o distinga de qualquer outro, a não ser no prazer da conversa que dedica ao que a ele se dirigem. O editor Baptista Lopes dá conta desta exasperação que desanimou já mais do que um, precisamente quando há quatro anos - exactamente, a aventura de Madaíl conta quatro anos de canseiras - foi dar-lhe conta da sua intenção de publicar a biografia que o Fernando Madaíl queria fazer dele e, pensavam então os dois, podia estar pronta para celebrar o centenário. 'Que ideia', retorquiu o "homem de Côja", não ia haver assunto para uma página de jornal quanto mais para um livro. Que tirassem daí o sentido um e o outro, que viessem sempre, mas para conversar, e deixassem-se de mais histórias. Baptista Lopes fez sentido de anuir e prosseguiram no almoço sem mais tocar no assunto. Foi no final que o editor da Âncora se saiu com um desabafo: "O Dr. Fernando Valle vai desculpar-me, mas eu sinto-me na obrigação, se me permite, de ir falar com os seus amigos. É que eles têm uma ideia completamente errada de si. Têm-no na maior consideração e contam coisas a seu respeito que o tornam digno do maior louvor. Se me permite, vou corrigir esta ideia que eles têm de si". Uma sonora gargalhada, das que vêm lá do fundo do coração, provou que o respeitável ancião tinha sentido de humor e sabia ganhar e perder uma partida - ao contrário do seu grande amigo Miguel Torga, também feito de granito de uma só peça, mas que nem na caça gostava de perder. Principiou então a saga da biografia, que já se percebeu não ficou concluída em seis meses. Palavra empurra palavra, exigência intelectual implica rigor, rigor quer dizer aturada pesquisa. E assim foi engrossando página a página, até chegar às mais de 500. A obra constrói-se cronologicamente, do "Tempo da Esperança", o primeiro capítulo, que cobre os anos de 1900 a 1926, ao "Tempo de Liberdade", do quinto capítulo, que vai de 1974 a 2003. No interregno ficam "Tempo de Chumbo", 1926 a 1945, "Tempo Negro", 1945 a 1958, e "Tempo de Mudança", de 1958 a 1974. O que vai surpreender o leitor, porém, é a maneira como o biógrafo teceu o fio da meada. Vai deparar com uma gigantesca tapeçaria que transborda o século XX, que vai vendo construir-se linha a linha, à medida que progride na leitura. Distingue com nitidez crescente e ao pormenor, uma animada vida cultural e de resistência ao autoritarismo do Estado Novo, atravessando serranias que se pensava que eram só percorridas pelo vento, pelo uivo dos lobos e pelo ladrar dos cães. A partir destes nós locais lança-se o entrançado para as figuras e os movimentos nacionais de oposição à ditadura salazarista. Com o tear sempre a trabalhar e Fernando Madaíl em constante dobadoura, precisando quem era este nome, quando ocorreu este evento, que ligações vai ter mais adiante esta personagem e por aí fora. Até que nos damos conta que a lançadeira que a mão do autor vai fazendo laborar nos dá, em trama, o perfil do biografado. Ele, que se escusou sempre a ser a figura principal de fosse qual acontecimento fosse, aparece na trama em desenho de fundo. "Lindo", como a vista daquele Casal Novo, onde nasceu uma criança na soalheira de uma porta. "Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda", de Fernando Madaíl (ed. Âncora), é lançamento terça-feira, às 18h30, na Fundação Mário Soares, em Lisboa, na presença do biografado e do autor; falarão Mário Soares, Almeida Santos e Manuel Alegre. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

A grande marcha da China

Principais destinos turísticos por país em 2020

A dor é uma autêntica epidemia silenciosa José Castro Lopes

Investigador desde a adolescência

Allegra Versace

Fernando Vale O homem de Côja

104 anos de dignidade sem preço

Al-Andaluz

Aniversário

Os últimos dias dos encantadores de serpentes

Conviver com a asma

Pela estrada fora

Entrada fria

O nariz da mostarda

Clube dos mentirosos

Horóscopo 4 a 10 de Julho

CRÓNICAS

Levantou\u2011se, ela não estava lá

O Índex 4 de Julho de 2004

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