Futebol e utopia

15-08-2004
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Futebol e Utopia

Por MANUEL ALEGRE

Sábado, 12 de Junho de 2004

Que Sophia me perdoe, mas o futebol, como a poesia, não se explica, implica. Futebol é paixão. Um não sei quê obscuro e mágico, misto de festa e sofrimento, um "acre prazer das dores", para citar o velho Garrett. Foi esse lado do futebol que levou Bill Shankly, mentor do grande Liverpool dos anos 70, ao célebre desabafo: "O futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais do que isso." Ou inspirou o poema de Carlos Drummond de Andrade: "Futebol se joga no estádio? / Futebol se joga na praia, / Futebol se joga na rua, / Futebol se joga na alma." É isso mesmo e ninguém o disse tão bem: Futebol se joga na alma. Sabem-no os poetas que gostam de futebol e também os políticos, mesmo os que não gostam, como parece que era o caso de Salazar e Franco, que nem por isso deixaram de o utilizar.

Vi há pouco um documentário sobre a forma como Hitler, Mussolini e Franco se serviram do futebol. Mas vi também o exemplo do grande jogador austríaco Mathias Sindelar que, depois da anexação do seu país, recusou integrar a selecção alemã e acabou por ser assassinado. Tem hoje um monumento e é venerado como um símbolo da resistência austríaca.

Afonso de Melo, na sua notável História da Selecção Nacional de Futebol, "Cinco Escudos Azuis", recentemente publicada, conta um episódio pouco conhecido: a 30 de Janeiro de 38, antes de se iniciar um Portugal-Espanha, alguns jogadores da selecção portuguesa recusaram-se a fazer a saudação fascista. Azevedo, do Sporting, encolheu os dedos, Quaresma, do Belenenses, ficou em sentido, Simões e Amaro, também do Belenenses, ergueram os punhos, tendo sido presos pela polícia política para interrogatório. Estava-se em plena guerra civil de Espanha, foi um acto de grande coragem e simbolismo.

As ditaduras utilizaram o futebol. Todos o sabemos. Mas talvez seja tempo de reflectir sobre a irresistível promiscuidade que, em democracia, se tem verificado entre política e futebol. A política serve-se do futebol num grau nunca visto. Mas os dirigentes do futebol também se servem da política. O que não é bom para o futebol nem para a política, muito menos para a democracia.

Com a conivência dos "media", principalmente das televisões, estamos a assistir a uma espécie de futebolização da vida. O que degrada o futebol e não melhora a vida. Talvez seja uma consequência da era do vazio, da crise de valores e convicções, da própria morte das utopias. Mas não diabolizemos o futebol, o futebol que continua a ser festa, que se joga na alma e que tanto nos implica.

No último campeonato da Europa, filhos de emigrantes de segunda e terceira geração, depois das brilhantes vitórias de Portugal, descobriram de repente as suas raízes, enrolaram-se na bandeira nacional e gritaram o seu orgulho de ser portugueses. Tal é o outro lado do futebol, a sua força, o seu contágio, a sua magia. Perante a ausência de causas, as pessoas, sobretudo os jovens, concentram no clube ou na selecção os seus sonhos e as suas esperanças. O clube e a selecção são uma nova forma de utopia. Tanto mais intensa quanto maior é a incerteza perante o futuro pessoal e a sensação de que o país pesa cada vez menos nos destinos do mundo. O que provoca dois sentimentos contraditórios, por um lado um exacerbado patriotismo, por outro um novo cosmopolitismo, uma espécie de nova internacional, a internacional do futebol.

É o que sucede neste dia em que se inicia o Euro 2004. Em cada selecção se projectam os sonhos, a nostalgia e a esperança de outra era, outra vida, outra grandeza. Para a minha geração, isso era a revolução. Para muitos, hoje, é a Selecção. Mas ainda bem que a Selecção, ao menos a Selecção, galvaniza e mobiliza. Eu, português, me confesso: estou de alma e coração com a Selecção Nacional, aquela a que Tavares da Silva chamou um dia "a equipa de todos nós." Estarei com todos os que vão vestir a camisola de Portugal. Por amor ao futebol. Porque o futebol implica. Porque queira-se ou não é uma forma de utopia. E porque o poeta tem razão: futebol se joga na alma.

Futebol e Utopia

Por MANUEL ALEGRE

Sábado, 12 de Junho de 2004

Que Sophia me perdoe, mas o futebol, como a poesia, não se explica, implica. Futebol é paixão. Um não sei quê obscuro e mágico, misto de festa e sofrimento, um "acre prazer das dores", para citar o velho Garrett. Foi esse lado do futebol que levou Bill Shankly, mentor do grande Liverpool dos anos 70, ao célebre desabafo: "O futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais do que isso." Ou inspirou o poema de Carlos Drummond de Andrade: "Futebol se joga no estádio? / Futebol se joga na praia, / Futebol se joga na rua, / Futebol se joga na alma." É isso mesmo e ninguém o disse tão bem: Futebol se joga na alma. Sabem-no os poetas que gostam de futebol e também os políticos, mesmo os que não gostam, como parece que era o caso de Salazar e Franco, que nem por isso deixaram de o utilizar.

Vi há pouco um documentário sobre a forma como Hitler, Mussolini e Franco se serviram do futebol. Mas vi também o exemplo do grande jogador austríaco Mathias Sindelar que, depois da anexação do seu país, recusou integrar a selecção alemã e acabou por ser assassinado. Tem hoje um monumento e é venerado como um símbolo da resistência austríaca.

Afonso de Melo, na sua notável História da Selecção Nacional de Futebol, "Cinco Escudos Azuis", recentemente publicada, conta um episódio pouco conhecido: a 30 de Janeiro de 38, antes de se iniciar um Portugal-Espanha, alguns jogadores da selecção portuguesa recusaram-se a fazer a saudação fascista. Azevedo, do Sporting, encolheu os dedos, Quaresma, do Belenenses, ficou em sentido, Simões e Amaro, também do Belenenses, ergueram os punhos, tendo sido presos pela polícia política para interrogatório. Estava-se em plena guerra civil de Espanha, foi um acto de grande coragem e simbolismo.

As ditaduras utilizaram o futebol. Todos o sabemos. Mas talvez seja tempo de reflectir sobre a irresistível promiscuidade que, em democracia, se tem verificado entre política e futebol. A política serve-se do futebol num grau nunca visto. Mas os dirigentes do futebol também se servem da política. O que não é bom para o futebol nem para a política, muito menos para a democracia.

Com a conivência dos "media", principalmente das televisões, estamos a assistir a uma espécie de futebolização da vida. O que degrada o futebol e não melhora a vida. Talvez seja uma consequência da era do vazio, da crise de valores e convicções, da própria morte das utopias. Mas não diabolizemos o futebol, o futebol que continua a ser festa, que se joga na alma e que tanto nos implica.

No último campeonato da Europa, filhos de emigrantes de segunda e terceira geração, depois das brilhantes vitórias de Portugal, descobriram de repente as suas raízes, enrolaram-se na bandeira nacional e gritaram o seu orgulho de ser portugueses. Tal é o outro lado do futebol, a sua força, o seu contágio, a sua magia. Perante a ausência de causas, as pessoas, sobretudo os jovens, concentram no clube ou na selecção os seus sonhos e as suas esperanças. O clube e a selecção são uma nova forma de utopia. Tanto mais intensa quanto maior é a incerteza perante o futuro pessoal e a sensação de que o país pesa cada vez menos nos destinos do mundo. O que provoca dois sentimentos contraditórios, por um lado um exacerbado patriotismo, por outro um novo cosmopolitismo, uma espécie de nova internacional, a internacional do futebol.

É o que sucede neste dia em que se inicia o Euro 2004. Em cada selecção se projectam os sonhos, a nostalgia e a esperança de outra era, outra vida, outra grandeza. Para a minha geração, isso era a revolução. Para muitos, hoje, é a Selecção. Mas ainda bem que a Selecção, ao menos a Selecção, galvaniza e mobiliza. Eu, português, me confesso: estou de alma e coração com a Selecção Nacional, aquela a que Tavares da Silva chamou um dia "a equipa de todos nós." Estarei com todos os que vão vestir a camisola de Portugal. Por amor ao futebol. Porque o futebol implica. Porque queira-se ou não é uma forma de utopia. E porque o poeta tem razão: futebol se joga na alma.

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