O soarismo ou a teoria dos ausentes

06-05-2003
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O soarismo ou a teoria dos ausentes-presentes

Alguns dos mais bem informados analistas da conjuntura política portuguesa, esses que circulam pelos restaurantes finos de Lisboa, tratando por tu banqueiros, líderes partidários e grandes empresários, começam a considerar que, dentro de poucos meses, as turbulências da economia, com a baixa do euro e as subidas do petróleo e das taxas de juro, vão gerar uma grave crise política em Portugal, dado que se sucederão inúmeras insolvências individuais e familiares, provocadas por excessivos endividamentos a uma banca que, por isso, também se endividou no exterior. A tal “circulação fiduciária” das “vacas magras” que há cerca de um século deu cabo do “fontismo” e do “rotativismo”...

Tal mal-estar, apesar de não afectar toda a população, atingirá principalmente a massa urbana dos cidadãos activos, com destaque para o chamado proletariado intelectual, dado que o Portugal profundo do “cavaquistão” rural parece ter virado guterrista e o PSD, na operação de reconquista, apenas o poderá fazer a partir do jovem eleitorado urbano, radical nos objectivos, mas adepto de métodos reformistas, no plano da governação, e conservador, no tocante aos valores.

Partindo deste fundo, outros deliciam-se em cenarizar o fim do “estado de graça” do guterrismo, terminada a fase da presidência da União Europeia; a dissertar sobre incapacidade do Presidente Sampaio para a gestão psicológica dos momentos de dramatismo político; e a proclamar a falta de oposições com alternativas credíveis para o curto prazo.

Finalmente, há os que fulanizam a questão e que acentuam o patente conflito de Mário Soares com os governamentais, dizendo que não se trata de mera vingança por causa dos diamantes de Angola ou de chocante luta de invejas de geração, mas de uma tentativa do antigo presidente e da respectiva “entourage” se assumirem como uma real alternativa à futura crise, face às incapacidades anímicas que conhecem de Guterres e de Sampaio.

Desfulanizando a matéria, apenas direi que tais “faits divers” revelam a existência de um permanente sombra que afecta o sistema político português: a manutenção de ausentes-presentes que, já não sendo actores principais no palco da política, têm, contudo, uma importância fundamental nos bastidores e até no estabelecimento do guião da peça. Com efeito, cada um dos quatro grandes partidos portugueses, além dos líderes reais existentes, ou dos que se apresentam como alternativa opositora imediata, sente-se ameaçado pelos fantasmas vivos de uma gerontocracia que circula em torno daqueles pais-fundadores que continuam a cultivar as respectivas cortes de viúvas e de desempregados políticos.

O mal não afecta apenas o Partido Socialista, com Guterres, muito subtilmente, a invocar Salgado Zenha e com Manuel Alegre a servir como ponta de lança dos soaristas, dado que penetra fundo no Partido Comunista, com Álvaro Cunhal a impedir a onda reformista, e toca a pacatez da própria direita. Aqui, basta recordar a história antiga do CDS, face à constante presença de Diogo Freitas do Amaral, durante as presidências de Lucas Pires e Adriano Moreira, ou à deste último, durante as lideranças de Freitas do Amaral, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Quanto ao PSD, assinale-se a possibilidade de regresso ao activo de Cavaco Silva, ainda hoje um dos principais trunfos da direita face a uma ameaça de advento do soarismo, mesmo com o nome de Jesus, de João ou de Vasco.

Esta categoria do ausente-presente tem, aliás, fundas raízes na história demoliberal portuguesa, tanto nos momentos que precederam a queda da monarquia, principalmente com Júlio de Vilhena e José Luciano de Castro, como, sobretudo, na Primeira República, depois do sidonismo, com Afonso Costa bem vivo, a condicionar a dinâmica política das suas anteriores hostes e, deste modo, a provocar o 28 de Maio de 1926.

Não há dúvida que a sociedade já não é o que foi e que a política também não pode voltar a ser o que era. Com efeito, hoje, os nossos ausentes-presentes já quase todos ultrapassaram o prazo de validade exigível pela defesa dos consumidores, eleitores e contribuintes. Mesmo os que têm idade para um regresso a curto ou a médio prazo, e que não querem ser “cadáveres adiados” procriando imbecilidades, sabem que a história não se repete: nem Freitas do Amaral será freitista, nem Cavaco Silva fará renascer o cavaquismo.

Preocupante é, contudo, a circunstância de se manterem os subsistemas de Corte gerados por alguns pretensos super-senadores da República, esses grupos de pressão multiformes que se desdobram pelos bastidores da política, da cultura e da educação. Mais preocupante ainda seria a hipótese de todos ou alguns desses fantasmas se federarem numa espécie de sociedade de egoístas, juntando anteriores irmãos-inimigos, como já se vislumbra nalgumas fundacionais entidades do nosso espaço político-cultural.

O avespinhamento de Soares contra o efectivo êxito de Guterres nos negócios europeus e da Internacional Socialista constitui um triste episódio na biografia do nosso antigo Presidente da República, que parece não compreender já termos passado o tempo da “Europa connosco” e dos “bons alunos” de Jacques Delors. Seria bem mais útil à República que o antigo presidente continuasse a gerir a Fundação com o seu nome, tão publicamente subsidiada por ministérios e autarquias, onde vai juntando figuras tão ilustres como os Professores João Carlos Espada e Fernando Rosas, nessa tarefa de longo prazo que, por um lado, visa liberalizar o socialismo e, por outro, dar esquerdismo revolucionário e revisionismo neo-estalinista à nossa história contemporânea, ao mesmo tempo que se faz dialogar a Maçonaria com a Igreja Católica, se trazem ilustres teóricos políticos norte-americanos e se globaliza o processo em colaboração com a Fundação Oriente, a FLAD e certas Universidades do “culturalmente correcto”.

Coitado do Dr. Álvaro Cunhal que já nem consegue mobilizar subsídios para se completar a publicação da primeira tradução directa do “Das Kapital” de Karl Marx, tarefa em boa hora iniciada pelo actual Reitor da Universidade de Lisboa, Professor José Barata Moura, mas que foi atingida pelo encerramento da Editora Progresso de Moscovo, depois da “queda do Muro”. Coitados de todos os outros senadores que apenas conseguem gerir o respectivo prestígio pessoal com os respectivos recursos pessoais, sem a possibilidade dos sustentáculos que tem o soarismo.

Uma boa cura para esta doença colectiva talvez estivesse na criação de uma câmara de grandes conselheiros de Estado, dando, a cada um dos aposentados em causa, direito à gestão de uma pequena fundação, com motorista, mercedes preto, secretária de carne e osso, assessores de imprensa e “gostwriter” para memórias e epitáfio. Como tal não me parece viável, julgo que há, a curto prazo, uma conjuntural oportunidade: as candidaturas a Presidente da República, tanto à direita como à esquerda do situacionismo, dado que a campanha corre o risco de se transformar numa viagem de consagração do recandidato e tem de ser aproveitada para fins pedagógicos, como se tratasse de uma corrida ao reitorado olímpico de uma qualquer universidade a haver na Corte celestial do concílio dos deuses.

O soarismo ou a teoria dos ausentes-presentes

Alguns dos mais bem informados analistas da conjuntura política portuguesa, esses que circulam pelos restaurantes finos de Lisboa, tratando por tu banqueiros, líderes partidários e grandes empresários, começam a considerar que, dentro de poucos meses, as turbulências da economia, com a baixa do euro e as subidas do petróleo e das taxas de juro, vão gerar uma grave crise política em Portugal, dado que se sucederão inúmeras insolvências individuais e familiares, provocadas por excessivos endividamentos a uma banca que, por isso, também se endividou no exterior. A tal “circulação fiduciária” das “vacas magras” que há cerca de um século deu cabo do “fontismo” e do “rotativismo”...

Tal mal-estar, apesar de não afectar toda a população, atingirá principalmente a massa urbana dos cidadãos activos, com destaque para o chamado proletariado intelectual, dado que o Portugal profundo do “cavaquistão” rural parece ter virado guterrista e o PSD, na operação de reconquista, apenas o poderá fazer a partir do jovem eleitorado urbano, radical nos objectivos, mas adepto de métodos reformistas, no plano da governação, e conservador, no tocante aos valores.

Partindo deste fundo, outros deliciam-se em cenarizar o fim do “estado de graça” do guterrismo, terminada a fase da presidência da União Europeia; a dissertar sobre incapacidade do Presidente Sampaio para a gestão psicológica dos momentos de dramatismo político; e a proclamar a falta de oposições com alternativas credíveis para o curto prazo.

Finalmente, há os que fulanizam a questão e que acentuam o patente conflito de Mário Soares com os governamentais, dizendo que não se trata de mera vingança por causa dos diamantes de Angola ou de chocante luta de invejas de geração, mas de uma tentativa do antigo presidente e da respectiva “entourage” se assumirem como uma real alternativa à futura crise, face às incapacidades anímicas que conhecem de Guterres e de Sampaio.

Desfulanizando a matéria, apenas direi que tais “faits divers” revelam a existência de um permanente sombra que afecta o sistema político português: a manutenção de ausentes-presentes que, já não sendo actores principais no palco da política, têm, contudo, uma importância fundamental nos bastidores e até no estabelecimento do guião da peça. Com efeito, cada um dos quatro grandes partidos portugueses, além dos líderes reais existentes, ou dos que se apresentam como alternativa opositora imediata, sente-se ameaçado pelos fantasmas vivos de uma gerontocracia que circula em torno daqueles pais-fundadores que continuam a cultivar as respectivas cortes de viúvas e de desempregados políticos.

O mal não afecta apenas o Partido Socialista, com Guterres, muito subtilmente, a invocar Salgado Zenha e com Manuel Alegre a servir como ponta de lança dos soaristas, dado que penetra fundo no Partido Comunista, com Álvaro Cunhal a impedir a onda reformista, e toca a pacatez da própria direita. Aqui, basta recordar a história antiga do CDS, face à constante presença de Diogo Freitas do Amaral, durante as presidências de Lucas Pires e Adriano Moreira, ou à deste último, durante as lideranças de Freitas do Amaral, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Quanto ao PSD, assinale-se a possibilidade de regresso ao activo de Cavaco Silva, ainda hoje um dos principais trunfos da direita face a uma ameaça de advento do soarismo, mesmo com o nome de Jesus, de João ou de Vasco.

Esta categoria do ausente-presente tem, aliás, fundas raízes na história demoliberal portuguesa, tanto nos momentos que precederam a queda da monarquia, principalmente com Júlio de Vilhena e José Luciano de Castro, como, sobretudo, na Primeira República, depois do sidonismo, com Afonso Costa bem vivo, a condicionar a dinâmica política das suas anteriores hostes e, deste modo, a provocar o 28 de Maio de 1926.

Não há dúvida que a sociedade já não é o que foi e que a política também não pode voltar a ser o que era. Com efeito, hoje, os nossos ausentes-presentes já quase todos ultrapassaram o prazo de validade exigível pela defesa dos consumidores, eleitores e contribuintes. Mesmo os que têm idade para um regresso a curto ou a médio prazo, e que não querem ser “cadáveres adiados” procriando imbecilidades, sabem que a história não se repete: nem Freitas do Amaral será freitista, nem Cavaco Silva fará renascer o cavaquismo.

Preocupante é, contudo, a circunstância de se manterem os subsistemas de Corte gerados por alguns pretensos super-senadores da República, esses grupos de pressão multiformes que se desdobram pelos bastidores da política, da cultura e da educação. Mais preocupante ainda seria a hipótese de todos ou alguns desses fantasmas se federarem numa espécie de sociedade de egoístas, juntando anteriores irmãos-inimigos, como já se vislumbra nalgumas fundacionais entidades do nosso espaço político-cultural.

O avespinhamento de Soares contra o efectivo êxito de Guterres nos negócios europeus e da Internacional Socialista constitui um triste episódio na biografia do nosso antigo Presidente da República, que parece não compreender já termos passado o tempo da “Europa connosco” e dos “bons alunos” de Jacques Delors. Seria bem mais útil à República que o antigo presidente continuasse a gerir a Fundação com o seu nome, tão publicamente subsidiada por ministérios e autarquias, onde vai juntando figuras tão ilustres como os Professores João Carlos Espada e Fernando Rosas, nessa tarefa de longo prazo que, por um lado, visa liberalizar o socialismo e, por outro, dar esquerdismo revolucionário e revisionismo neo-estalinista à nossa história contemporânea, ao mesmo tempo que se faz dialogar a Maçonaria com a Igreja Católica, se trazem ilustres teóricos políticos norte-americanos e se globaliza o processo em colaboração com a Fundação Oriente, a FLAD e certas Universidades do “culturalmente correcto”.

Coitado do Dr. Álvaro Cunhal que já nem consegue mobilizar subsídios para se completar a publicação da primeira tradução directa do “Das Kapital” de Karl Marx, tarefa em boa hora iniciada pelo actual Reitor da Universidade de Lisboa, Professor José Barata Moura, mas que foi atingida pelo encerramento da Editora Progresso de Moscovo, depois da “queda do Muro”. Coitados de todos os outros senadores que apenas conseguem gerir o respectivo prestígio pessoal com os respectivos recursos pessoais, sem a possibilidade dos sustentáculos que tem o soarismo.

Uma boa cura para esta doença colectiva talvez estivesse na criação de uma câmara de grandes conselheiros de Estado, dando, a cada um dos aposentados em causa, direito à gestão de uma pequena fundação, com motorista, mercedes preto, secretária de carne e osso, assessores de imprensa e “gostwriter” para memórias e epitáfio. Como tal não me parece viável, julgo que há, a curto prazo, uma conjuntural oportunidade: as candidaturas a Presidente da República, tanto à direita como à esquerda do situacionismo, dado que a campanha corre o risco de se transformar numa viagem de consagração do recandidato e tem de ser aproveitada para fins pedagógicos, como se tratasse de uma corrida ao reitorado olímpico de uma qualquer universidade a haver na Corte celestial do concílio dos deuses.

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