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17-08-2002
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P. - Quando se dá o 28 de Setembro [manifestação da maioria silenciosa, convocada por Spínola] já existe?

R. - Não. Até ao 28 de Setembro fomos em unidade [de esquerda]. O afastamento definitivo dá-se quando aparece o Pacto Povo-MFA. Acompanhei de perto o percurso de Álvaro Cunhal nas Juventudes Comunistas, porque em Outubro de 1935 fomos os dois eleitos para o Comité Central. Conhecia-o muito bem e, por isso, apercebemo-nos de que era essa a estratégia. Álvaro Cunhal quis imitar Lénine em tudo. Até naquela imagem quando chega ao aerorporto e faz o discurso em cima de um tanque. E quando lhe perguntam se vai fazer uma aliança de governo com os socialistas, ele responde que o que está "perante nós é uma aliança do povo com o MFA". Ele já tem o plano de fazer a revolução leninista com os militares.

P. - O congresso do PS, em Dezembro de 1975, na Cidade Universitária, marca o ponto de viragem nas relações do PS com com o PCP?

R. - É aí que se separam as águas. O que ali se joga é o papel do Manuel Serra no PS e das alianças do PS. Ele assentou a conspiração dele no 1º andar da FAUL [Federação da Ára Urbana de Lisboa do PS], que ficava na Rua da Misericórdia, mesmo em frente ao [jornal] "República". Um dia chamou-me lá - eu era muito amigo dele, tínhamos muita consideração um pelo outro, desde o assalto ao quartel de Beja [31/12/61], onde fomos os únicos que andamos aos tiros e até conseguimos fugir. Quando me vê, diz-me: "Agora é que a altura de irmos para o socialismo. Conto contigo." Respondi-lhe: "Sou muito teu amigo, mas para aí não vou."

P. - Na estrutura de segurança que o PS vem depois a criar-se vai integrar-se também o Fernando Oneto [participante na revolta da Sé de 11/3/59]?

R. - Sim, mas um pouco à parte. Ele é sobretudo responsável pela contratação da segurança profissional aos dirigentes. É ele que contrata o Centeio Maria e o seu grupo, com consequências políticas muito desagradáveis, pois este grupo foi preso a roubar armas e a tentar vendê-las. Não estive de acordo com essa contratação.

P. - Como estava organizada essa estrutura?

R. - O Manuel Alegre é o responsável político e eu assumo a parte operacional. A partir do 11 de Março passo a testar as ligações. Sempre que era preciso uma vigilância especial acordava as pessoas necessárias e elas iam fazê-la. Depois havia uma rotina quanto às movimentações em quartéis que estavam na alçada da esquerda radical e outros pontos que considerávamos cruciais em caso de uma acção militar. Mas é preciso ver que a nossa acção não era unicamente militar. Pelo contrário, nós procurávamos desenvolver a luta sobretudo a nível da acção de massas. Quem escolhe o local e organiza o comício do 19 de Julho, na Fonte Luminosa, sou eu.

P. - Quando perguntámos ao general Eanes sobre o caso da prisão de Edmundo Pedro [Janeiro de 1978], por causa das armas do 25 de Novembro, ele respondeu secamente que isso era "um problema" entre si e "o Dr. Mário Soares".

R. - Nessa história da minha prisão por causa das armas do 25 de Novembro eu nunca teria ficado preso se tivesse dito que aquelas armas tinham sido entregues ao PS pelos militares. Só que eu, numa curta declaração ao Joaquim Furtado [jornalista da RTP], que me apareceu num corredor da PJ, quando já estava detido, disse que nunca seria eu a denunciar a proveniência daquelas armas, que havia gente melhor colocada do que eu para o fazer. Contava que o Eanes e o PS explicassem a situação e assumissem tudo. Ora a direcção do PS fez sair um comunicado em que afirma desconhecer tudo daquele caso e que "reprova" a minha atitude. O Estado Maior do Exército nada diz. E eu, que afirmara que nunca seria o denunciante, fiquei preso pela língua.

P. - O PS deixou-o cair?

R. - Na minha opinião, o que a direcção do PS devia ter feito perante as acusações que misturavam as armas com contrabando era dizer que, quanto a este assunto [contrabando] não se pronunciava, porque nada sabia, mas quanto às armas explicava que lhe tinham sido entregues por ocasião do 25 de Novembro. Como não havia contrabando nenhum eu teria sido logo posto em liberdade.

P. - Mário Soares não sabia da entrega das armas?

R. - Devia sabê-lo vagamente. O Manuel Alegre deve-lhe ter dito, mas sem precisar em que condições.

P. - Havia segredos na direcção ou era medida de precaução? P. - De facto havia muita coisa que não sabíamos dos outros. Por exemplo, só soube muito depois a informação de que o James Callaghan [primeiro-ministro britânico] disse ao Mário Soares que em caso de vitória comunista punha à disposição dos socialistas uma base de resistência. P. - Esteve metido em outras operações conspirativas antes do 25 de Novembro?

R. - Sim. Em Outubro [1975], já não sei em que dia, fomos informados que se ia passar à ofensiva e a minha missão era tomar conta do Ministério do Trabalho e deter o então ministro Costa Martins. Ia preparado para tudo, porque sabia que o Costa Martins costumava andar armado. Por isso dei ordens ao grupo para se preparar, porque podia haver tiros e baixas. Uns momentos antes de entrar em acção, estou em frente da Igreja S. João de Deus e sou interpelado por um sujeito que se identifica como militar e tendo conhecimento da operação, para me dizer que ela tinha sido abortada, porque havia não sei que reunião com o Costa Gomes e o Conselho da Revolução. Eu fico a olhar para ele, ele confirma as directivas. Desmobilizei o grupo e durante muito tempo fiquei incomodado, porque fiquei sem saber o nome do militar nem fiquei com uma ideia nítida dele. Cheguei a interrogar-me do que pensariam as pessoas que estavam comigo. Só há pouco tempo, ao contar esta história num grupo, é que o Tomás Rosa, que então era capitão, me disse: "Esse militar era eu". Ele era o elemento de ligação dos militares e estava na [pastelaria] "Mexicana" a seguir a operação.

P. - Como se fez a distribuição das armas que os militares vos deram?

R. - Fez-se a distribuição pelas secções, a partir da sede da Rua da Emenda, onde ficou o grosso das armas em reserva. A certa altura apareceu lá o Francisco Sousa Tavares a dizer-me que sabia que eu tinha armas e que tinha que lhe dar uma G-3. Não neguei nem confirmei. Expliquei-lhe que mesmo que as houvesse não podiam ser distribuídas a torto e a direito. Eu tinha que ter controle sobre elas e sempre o tive. Se levou tempo a recuperá-los, não foi por minha causa.

P. - Foi culpa de quem?

R. - Aí responsabilizo o Eanes. Eu condeno o Eanes em duas coisas. Por um lado, por não ter explicado qual o papel do Estado Maior do Exército quando fui preso. Sei que o general Galvão Figueiredo veio dos Açores para esclarecer a questão das armas e que ele chamou-o e não o deixou fazê-lo, porque dizia que não era ao Estado Maior do Exército que competia fazê-lo, mas ao PS. A outra foi porque se as armas não foram entregues mais cedo, quando houve a amnistia do Conselho da Revolução, foi porque os militares nos pediram expressamente para o não fazer. Disserm-nos mesmo para apagarmos os números das armas, para no caso delas serm apanhadas eles não serem comprometidos. Fizemo-lo, com um Black and Decker, mas depois soube que havia outros meios de as identificar, para além do número. Felizmente.

P. - Onde é que lhes entregaram as armas?

R. - Foi numa vivenda em Cascais, que pertencia a um sargento Belo. A viatura militar saiu do quartel e nós fomos atrás. Depois ela entrou nessa tal vivenda e o transbordo das armas fez-se na garagem.

P. - Quem é que lhe diz para ir buscar as armas precisamente naquele dia?

R. - Foi o Eanes ou um militar do grupo dele. Nós tínhamos-lhe pedido por diversas vezes as armas, mas ele recusara-se a fazê-lo, dizendo-no que só o faria quando estivesse eminente o confronto.

P. - Quando se dá o 28 de Setembro [manifestação da maioria silenciosa, convocada por Spínola] já existe?

R. - Não. Até ao 28 de Setembro fomos em unidade [de esquerda]. O afastamento definitivo dá-se quando aparece o Pacto Povo-MFA. Acompanhei de perto o percurso de Álvaro Cunhal nas Juventudes Comunistas, porque em Outubro de 1935 fomos os dois eleitos para o Comité Central. Conhecia-o muito bem e, por isso, apercebemo-nos de que era essa a estratégia. Álvaro Cunhal quis imitar Lénine em tudo. Até naquela imagem quando chega ao aerorporto e faz o discurso em cima de um tanque. E quando lhe perguntam se vai fazer uma aliança de governo com os socialistas, ele responde que o que está "perante nós é uma aliança do povo com o MFA". Ele já tem o plano de fazer a revolução leninista com os militares.

P. - O congresso do PS, em Dezembro de 1975, na Cidade Universitária, marca o ponto de viragem nas relações do PS com com o PCP?

R. - É aí que se separam as águas. O que ali se joga é o papel do Manuel Serra no PS e das alianças do PS. Ele assentou a conspiração dele no 1º andar da FAUL [Federação da Ára Urbana de Lisboa do PS], que ficava na Rua da Misericórdia, mesmo em frente ao [jornal] "República". Um dia chamou-me lá - eu era muito amigo dele, tínhamos muita consideração um pelo outro, desde o assalto ao quartel de Beja [31/12/61], onde fomos os únicos que andamos aos tiros e até conseguimos fugir. Quando me vê, diz-me: "Agora é que a altura de irmos para o socialismo. Conto contigo." Respondi-lhe: "Sou muito teu amigo, mas para aí não vou."

P. - Na estrutura de segurança que o PS vem depois a criar-se vai integrar-se também o Fernando Oneto [participante na revolta da Sé de 11/3/59]?

R. - Sim, mas um pouco à parte. Ele é sobretudo responsável pela contratação da segurança profissional aos dirigentes. É ele que contrata o Centeio Maria e o seu grupo, com consequências políticas muito desagradáveis, pois este grupo foi preso a roubar armas e a tentar vendê-las. Não estive de acordo com essa contratação.

P. - Como estava organizada essa estrutura?

R. - O Manuel Alegre é o responsável político e eu assumo a parte operacional. A partir do 11 de Março passo a testar as ligações. Sempre que era preciso uma vigilância especial acordava as pessoas necessárias e elas iam fazê-la. Depois havia uma rotina quanto às movimentações em quartéis que estavam na alçada da esquerda radical e outros pontos que considerávamos cruciais em caso de uma acção militar. Mas é preciso ver que a nossa acção não era unicamente militar. Pelo contrário, nós procurávamos desenvolver a luta sobretudo a nível da acção de massas. Quem escolhe o local e organiza o comício do 19 de Julho, na Fonte Luminosa, sou eu.

P. - Quando perguntámos ao general Eanes sobre o caso da prisão de Edmundo Pedro [Janeiro de 1978], por causa das armas do 25 de Novembro, ele respondeu secamente que isso era "um problema" entre si e "o Dr. Mário Soares".

R. - Nessa história da minha prisão por causa das armas do 25 de Novembro eu nunca teria ficado preso se tivesse dito que aquelas armas tinham sido entregues ao PS pelos militares. Só que eu, numa curta declaração ao Joaquim Furtado [jornalista da RTP], que me apareceu num corredor da PJ, quando já estava detido, disse que nunca seria eu a denunciar a proveniência daquelas armas, que havia gente melhor colocada do que eu para o fazer. Contava que o Eanes e o PS explicassem a situação e assumissem tudo. Ora a direcção do PS fez sair um comunicado em que afirma desconhecer tudo daquele caso e que "reprova" a minha atitude. O Estado Maior do Exército nada diz. E eu, que afirmara que nunca seria o denunciante, fiquei preso pela língua.

P. - O PS deixou-o cair?

R. - Na minha opinião, o que a direcção do PS devia ter feito perante as acusações que misturavam as armas com contrabando era dizer que, quanto a este assunto [contrabando] não se pronunciava, porque nada sabia, mas quanto às armas explicava que lhe tinham sido entregues por ocasião do 25 de Novembro. Como não havia contrabando nenhum eu teria sido logo posto em liberdade.

P. - Mário Soares não sabia da entrega das armas?

R. - Devia sabê-lo vagamente. O Manuel Alegre deve-lhe ter dito, mas sem precisar em que condições.

P. - Havia segredos na direcção ou era medida de precaução? P. - De facto havia muita coisa que não sabíamos dos outros. Por exemplo, só soube muito depois a informação de que o James Callaghan [primeiro-ministro britânico] disse ao Mário Soares que em caso de vitória comunista punha à disposição dos socialistas uma base de resistência. P. - Esteve metido em outras operações conspirativas antes do 25 de Novembro?

R. - Sim. Em Outubro [1975], já não sei em que dia, fomos informados que se ia passar à ofensiva e a minha missão era tomar conta do Ministério do Trabalho e deter o então ministro Costa Martins. Ia preparado para tudo, porque sabia que o Costa Martins costumava andar armado. Por isso dei ordens ao grupo para se preparar, porque podia haver tiros e baixas. Uns momentos antes de entrar em acção, estou em frente da Igreja S. João de Deus e sou interpelado por um sujeito que se identifica como militar e tendo conhecimento da operação, para me dizer que ela tinha sido abortada, porque havia não sei que reunião com o Costa Gomes e o Conselho da Revolução. Eu fico a olhar para ele, ele confirma as directivas. Desmobilizei o grupo e durante muito tempo fiquei incomodado, porque fiquei sem saber o nome do militar nem fiquei com uma ideia nítida dele. Cheguei a interrogar-me do que pensariam as pessoas que estavam comigo. Só há pouco tempo, ao contar esta história num grupo, é que o Tomás Rosa, que então era capitão, me disse: "Esse militar era eu". Ele era o elemento de ligação dos militares e estava na [pastelaria] "Mexicana" a seguir a operação.

P. - Como se fez a distribuição das armas que os militares vos deram?

R. - Fez-se a distribuição pelas secções, a partir da sede da Rua da Emenda, onde ficou o grosso das armas em reserva. A certa altura apareceu lá o Francisco Sousa Tavares a dizer-me que sabia que eu tinha armas e que tinha que lhe dar uma G-3. Não neguei nem confirmei. Expliquei-lhe que mesmo que as houvesse não podiam ser distribuídas a torto e a direito. Eu tinha que ter controle sobre elas e sempre o tive. Se levou tempo a recuperá-los, não foi por minha causa.

P. - Foi culpa de quem?

R. - Aí responsabilizo o Eanes. Eu condeno o Eanes em duas coisas. Por um lado, por não ter explicado qual o papel do Estado Maior do Exército quando fui preso. Sei que o general Galvão Figueiredo veio dos Açores para esclarecer a questão das armas e que ele chamou-o e não o deixou fazê-lo, porque dizia que não era ao Estado Maior do Exército que competia fazê-lo, mas ao PS. A outra foi porque se as armas não foram entregues mais cedo, quando houve a amnistia do Conselho da Revolução, foi porque os militares nos pediram expressamente para o não fazer. Disserm-nos mesmo para apagarmos os números das armas, para no caso delas serm apanhadas eles não serem comprometidos. Fizemo-lo, com um Black and Decker, mas depois soube que havia outros meios de as identificar, para além do número. Felizmente.

P. - Onde é que lhes entregaram as armas?

R. - Foi numa vivenda em Cascais, que pertencia a um sargento Belo. A viatura militar saiu do quartel e nós fomos atrás. Depois ela entrou nessa tal vivenda e o transbordo das armas fez-se na garagem.

P. - Quem é que lhe diz para ir buscar as armas precisamente naquele dia?

R. - Foi o Eanes ou um militar do grupo dele. Nós tínhamos-lhe pedido por diversas vezes as armas, mas ele recusara-se a fazê-lo, dizendo-no que só o faria quando estivesse eminente o confronto.

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