Uma política cultural de esquerda

06-07-2002
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Uma política cultural de esquerda?

Porque o Verão português tem decorrido sem graves incêndios políticos, eis que certas insignificâncias acabaram em parangonas dos semanários políticos. Assim sendo, também nós somos obrigados a trilhar tal senda, escolhendo, para análise, uma infeliz entrevista concedida pelo Senhor Ministro dito da Cultura ao jornal onde costumava ser colunista.

Todos conhecem as qualidades académicas e a biografia política de Sua Excelência, um cientista social que gosta de assumir-se como pensador do socialismo democrático, onde a matriz do MES parece mais forte que o sentido histórico do PS. Apesar de, com ele, coincidir nalguns segmentos do subsolo filosófico, de matriz weberiana, não posso deixar de, publicamente, vir manifestar-lhe o mais vivo repúdio pela circunstância de ter declarado que estava no Ministério para fazer uma política de esquerda.

Julgo que Sua Excelência não é tão cavernícola quanto o inspirador de um dos seus antecessores, um tal Jacques Lang, para quem só a esquerda teria cultura. Mas, nem por isso, o Professor Santos Silva deixa de ceder ao facciosismo, quando assim abdica de seguir uma política nacional de gestão do património comunitário, enquanto herança cultural.

Sabendo todos nós que uma das principais funções de tal estrutura estadual consiste na distribuição de subsídios, é natural que passemos a ter algumas desconfianças sobre como vai praticar o chamado princípio da imparcialidade da Administração Pública. Os criadores culturais da não-esquerda correm, deste modo, certos riscos, porque, se manifestarem o respectivo não enquadramento na política cultural de esquerda, talvez não sejam contemplados pelo bolo do orçamento.

O Professor Doutor Santos Silva, se consultasse os anais dos respectivos antecessores, verificaria até que um deles, o primeiro líder político português que, depois de 1974, se declarou de direita, Francisco Lucas Pires, enquanto exerceu as mesmas funções durante o período da Aliança Democrática, nunca proclamou que estava em tal missão para fazer uma política cultural de direita.

Do mesmo modo, outros antecessores, de governos socialistas, sempre assumiram o estilo de David Mourão-Ferreira. Nem o próprio Pedro Santana Lopes, no auge do guterrismo, foi alguma vez acusado de facciosismo. Porque há uma certa tradição, na história da nossa democracia pluralista, de, nos domínios da defesa, dos negócios estrangeiros, da educação e da cultura, tentarmos um grande consenso.

Julgo que a postura íntima do Professor Santos Silva, a quem dou o benefício da dúvida da isenção universitária, não o apontam para o inquisitorialismo de querer perseguir, pelo menos, cerca de metade dos homens de cultura portugueses.

O "lapsus calami" que serviu de título para a sua primeira grande entrevista foi manifestamente infeliz e vai, certamente, ser corrigido, mesmo que não seja em palavras, mas por actos de honestidade constitucional. É que a lei fundamental que nos rege proíbe a parcialidade e talvez não corresponda à tradição antitotalitária do PS histórico.

Fique Vossa Excelência sabendo que um intelectual de esquerda não é intelectual por ser de esquerda. A não ser que tenha dúvidas sobre se o reconhecem como intelectual ou sobre se o consideram de esquerda. Porque um dos mais honrosos atributos que pode ser dado a um autêntico intelectual de esquerda é que ele seja um intelectual antes de ser de esquerda.

Declarações de fanfarronismo, como a que escapou da entrevista ministerial, a não serem devidamente corrigidas, através de uma interpretação autêntica, apenas rebaixam quem a proferiu. Numa democracia, o necessário combate de ideias entre a direita e a esquerda não pode levar, os intelectuais de uma ou outra parte, à categoria de inimigos.

Reduzir a cultura de um país a um dos respectivos hemisférios mentais é empobrecê-lo dramaticamente. E se o facciosismo for levado até às últimas consequências da intolerância, poderemos cair no risco da própria extensão diacrónica do processo, rescrevendo-se a história de forma oficiosa. Por isso é que ficámos pasmados com a falta de argumentos dos que querem retirar "Os Lusíadas" do ensino pré-universitário, substituindo-os por contemporâneos, escolhidos pelas simpatias políticas. Por outras palavras, o guterrismo corre o risco de pisar um terreno que nem o gonçalvismo ousou violar.

Não quero, a partir daqui, fazer extrapolações, eventualmente ofensivas, sobre a personalidade político-cultural do Ministro Santos Silva e da respectiva equipa. Nesta até se inclui, como Secretário de Estado, um antigo aluno meu, em cuja tolerância confio.

Não posso é deixar de manifestar a minha revolta como publicista que, muito orgulhosamente, se proclama da não-esquerda. Seria indigno de um Estado de Direito que gente e ideias de direita fossem perseguidas inquisitorialmente pelo complexo de esquerda do actual situacionismo.

Com efeito, há certa esquerda rancorosa que não subscreve a ideia de esquerda que um Manuel Alegre tão epicamente expressou em "Atlântico". A tal esquerda "muito antiga" que "foi do Mestre de Avis" e "de D. João Segundo". Essa tal esquerda sempre foi "contra a vida vidinha" e "onde outros dizem sim ela diz não", revoltando-se contra "o prato de lentilhas".

Muito democraticamente, direi que a direita que pretendo servir até é capaz de elogiar a esquerda. E quando essa direita esteve no Ministério da Cultura até foi unanimamente elogiada pela esquerda. Porque, continuando a citar Manuel Alegre, "teve espírito de Quinhentos sem índias para achar".

Mesmo em pleno autoritarismo salazarista, foi mobilizado para aquilo que então era o Secretariado da Propaganda Nacional, alguém com a dimensão de um António Ferro que, depois de abandonar tal função, até foi o único intelectual português a participar nos célebre Encontros Internacionais de Genebra do pós-guerra.

Espero que o Professor Santos Silva nos esclareça. Que continue a ter profundas convicções de esquerda, mas que, como homem de esquerda, exerça as funções de Ministro da Cultura, para levar a cabo uma política que, assente na perspectiva de uma parte do todo, trate de servir esse mesmo todo.

Uma política cultural de esquerda?

Porque o Verão português tem decorrido sem graves incêndios políticos, eis que certas insignificâncias acabaram em parangonas dos semanários políticos. Assim sendo, também nós somos obrigados a trilhar tal senda, escolhendo, para análise, uma infeliz entrevista concedida pelo Senhor Ministro dito da Cultura ao jornal onde costumava ser colunista.

Todos conhecem as qualidades académicas e a biografia política de Sua Excelência, um cientista social que gosta de assumir-se como pensador do socialismo democrático, onde a matriz do MES parece mais forte que o sentido histórico do PS. Apesar de, com ele, coincidir nalguns segmentos do subsolo filosófico, de matriz weberiana, não posso deixar de, publicamente, vir manifestar-lhe o mais vivo repúdio pela circunstância de ter declarado que estava no Ministério para fazer uma política de esquerda.

Julgo que Sua Excelência não é tão cavernícola quanto o inspirador de um dos seus antecessores, um tal Jacques Lang, para quem só a esquerda teria cultura. Mas, nem por isso, o Professor Santos Silva deixa de ceder ao facciosismo, quando assim abdica de seguir uma política nacional de gestão do património comunitário, enquanto herança cultural.

Sabendo todos nós que uma das principais funções de tal estrutura estadual consiste na distribuição de subsídios, é natural que passemos a ter algumas desconfianças sobre como vai praticar o chamado princípio da imparcialidade da Administração Pública. Os criadores culturais da não-esquerda correm, deste modo, certos riscos, porque, se manifestarem o respectivo não enquadramento na política cultural de esquerda, talvez não sejam contemplados pelo bolo do orçamento.

O Professor Doutor Santos Silva, se consultasse os anais dos respectivos antecessores, verificaria até que um deles, o primeiro líder político português que, depois de 1974, se declarou de direita, Francisco Lucas Pires, enquanto exerceu as mesmas funções durante o período da Aliança Democrática, nunca proclamou que estava em tal missão para fazer uma política cultural de direita.

Do mesmo modo, outros antecessores, de governos socialistas, sempre assumiram o estilo de David Mourão-Ferreira. Nem o próprio Pedro Santana Lopes, no auge do guterrismo, foi alguma vez acusado de facciosismo. Porque há uma certa tradição, na história da nossa democracia pluralista, de, nos domínios da defesa, dos negócios estrangeiros, da educação e da cultura, tentarmos um grande consenso.

Julgo que a postura íntima do Professor Santos Silva, a quem dou o benefício da dúvida da isenção universitária, não o apontam para o inquisitorialismo de querer perseguir, pelo menos, cerca de metade dos homens de cultura portugueses.

O "lapsus calami" que serviu de título para a sua primeira grande entrevista foi manifestamente infeliz e vai, certamente, ser corrigido, mesmo que não seja em palavras, mas por actos de honestidade constitucional. É que a lei fundamental que nos rege proíbe a parcialidade e talvez não corresponda à tradição antitotalitária do PS histórico.

Fique Vossa Excelência sabendo que um intelectual de esquerda não é intelectual por ser de esquerda. A não ser que tenha dúvidas sobre se o reconhecem como intelectual ou sobre se o consideram de esquerda. Porque um dos mais honrosos atributos que pode ser dado a um autêntico intelectual de esquerda é que ele seja um intelectual antes de ser de esquerda.

Declarações de fanfarronismo, como a que escapou da entrevista ministerial, a não serem devidamente corrigidas, através de uma interpretação autêntica, apenas rebaixam quem a proferiu. Numa democracia, o necessário combate de ideias entre a direita e a esquerda não pode levar, os intelectuais de uma ou outra parte, à categoria de inimigos.

Reduzir a cultura de um país a um dos respectivos hemisférios mentais é empobrecê-lo dramaticamente. E se o facciosismo for levado até às últimas consequências da intolerância, poderemos cair no risco da própria extensão diacrónica do processo, rescrevendo-se a história de forma oficiosa. Por isso é que ficámos pasmados com a falta de argumentos dos que querem retirar "Os Lusíadas" do ensino pré-universitário, substituindo-os por contemporâneos, escolhidos pelas simpatias políticas. Por outras palavras, o guterrismo corre o risco de pisar um terreno que nem o gonçalvismo ousou violar.

Não quero, a partir daqui, fazer extrapolações, eventualmente ofensivas, sobre a personalidade político-cultural do Ministro Santos Silva e da respectiva equipa. Nesta até se inclui, como Secretário de Estado, um antigo aluno meu, em cuja tolerância confio.

Não posso é deixar de manifestar a minha revolta como publicista que, muito orgulhosamente, se proclama da não-esquerda. Seria indigno de um Estado de Direito que gente e ideias de direita fossem perseguidas inquisitorialmente pelo complexo de esquerda do actual situacionismo.

Com efeito, há certa esquerda rancorosa que não subscreve a ideia de esquerda que um Manuel Alegre tão epicamente expressou em "Atlântico". A tal esquerda "muito antiga" que "foi do Mestre de Avis" e "de D. João Segundo". Essa tal esquerda sempre foi "contra a vida vidinha" e "onde outros dizem sim ela diz não", revoltando-se contra "o prato de lentilhas".

Muito democraticamente, direi que a direita que pretendo servir até é capaz de elogiar a esquerda. E quando essa direita esteve no Ministério da Cultura até foi unanimamente elogiada pela esquerda. Porque, continuando a citar Manuel Alegre, "teve espírito de Quinhentos sem índias para achar".

Mesmo em pleno autoritarismo salazarista, foi mobilizado para aquilo que então era o Secretariado da Propaganda Nacional, alguém com a dimensão de um António Ferro que, depois de abandonar tal função, até foi o único intelectual português a participar nos célebre Encontros Internacionais de Genebra do pós-guerra.

Espero que o Professor Santos Silva nos esclareça. Que continue a ter profundas convicções de esquerda, mas que, como homem de esquerda, exerça as funções de Ministro da Cultura, para levar a cabo uma política que, assente na perspectiva de uma parte do todo, trate de servir esse mesmo todo.

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