Existe uma nova poesia?

10-10-2003
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Existe Uma Nova Poesia?

Sábado, 04 de Outubro de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Em primeiro lugar, um aspecto importante a salientar: duas revistas de poesia de qualidade assinalável vieram alterar a cena cultural portuguesa. Ponto fundamental a pôr em primeiro plano: ambas estão envolvidas num importante e enriquecedor intercâmbio entre poetas de língua portuguesa no Brasil e em Portugal. No caso de "Inimigo Rumor", trata-se mesmo de uma iniciativa brasileira que ganhou nova dimensão quando passou a ter uma edição portuguesa, sob a responsabilidade de Livros Cotovia (editora com um notável trabalho na promoção de autores brasileiros contemporâneos), e com uma direcção portuguesa constituída por André Fernandes Jorge, Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Do lado de lá, Carlito Azevedo, Augusto Massi e Marcos Siscar. Sublinhe-se que se encontram associados a este excelente projecto Abel Barros Baptista, Lindeza Diogo, Gustavo Rubim, João Barrento, Luís Mourão ou Rui Magalhães.

O número mais recente de "Inimigo Rumor" é um "dossier" absolutamente excepcional sobre "o poema em prosa". A revista aparece agora sob o formato de livro, em capa cartonada, belíssima é certo, mas que, no entanto, não é muito legível para o leitor desprevenido. Existem textos teóricos e ensaísticos e uma colaboração em língua portuguesa (poemas originais ou traduzidos) de extraordinária qualidade. Não é preciso ir mais longe. Abra-se a primeira página desta antologia e encontramos o nome de Vilma Arêas. O texto é magnífico: "De costas para a cordilheira e para a mulher de pedra esculpida no ar, abriu a névoa da praça com as duas mãos. Viu os seis peixes deitados no gravalho do ladrilho junto à porta. Entrou aspirando aquele cheiro de pedra, humidade e treva. Percorreu aposento por aposento, subiu e desceu degraus, passou as mãos nas paredes geladas. Reconheceu a voz cantarolando 'el sitio de mi recreo' em tom casual, não viu ninguém, ouviu Panero recitando 'del color de la vejez es el poema, busco aún mis ojos en el armario'. Dizia também que os tigres eram palácios e que nasciam cactos de suas veias."

A segunda revista é a "Relâmpago", é uma edição da Fundação Luís Miguel Nava, e este número 12 foi dirigido por Fernando Pinto do Amaral. Para além de uma utilíssima antologia de poetas que se poderiam classificar como fazendo parte da "nova poesia portuguesa" (e aqui encontramos Carlos Bessa, João Luís Barreto Guimarães, José Mário Silva, José Miguel Silva, José Ricardo Nunes, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Manuel de Freitas, Paulo José Miranda, Pedro Mexia, Rui Coias e Rui Pires Cabral), temos ensaios de António Guerreiro, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz, Rosa Maria Martelo e Vítor Moura (neste caso, sobre Daniel Faria, o autor desaparecido, mas que curiosamente destoa da caracterização de conjunto que se tende a fazer desta "nova poesia").

O curioso é que o meio poético português tenha de certo modo sido agitado por três polémicas - e isto numa época em que as polémicas literárias estão pouco em moda. Em primeiro lugar, a polémica suscitada pela publicação de um texto de Marjorie Perloff, em que de certo modo se dizia que a poesia que hoje se publicava existia apenas num círculo de universitários. Esta visão simultaneamente desencantada e "profissional" da poesia e da crítica suscitou reacções violentas. A segunda polémica (e que ocupa de um modo quase obsessivo uma parte considerável deste número de "Inimigo Rumor", com textos de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra, Manuel Gusmão, Maria Alzira Seixo e Gustavo Rubim) tem a ver com a antologia "Século de Ouro". Como se lembram, esta antologia foi criticada pelo facto de, aparecendo no âmbito de "Coimbra Capital da Cultura", não dar a importância devida a nomes consagrados da tradição coimbrã, e de que seriam exemplos Afonso Duarte, Miguel Torga ou Manuel Alegre. Deixemos de lado a questão política, que é manifestamente secundária, e consideremos o papel paradigmático deste impressionante volume: "Esta 'antologia' decorre da constatação de que o século XX terminou há pouco, mas para certos efeitos está agora a começar. A sua atitude pós-histórica reside antes num exercício crítico que coloca sob suspeita todas as pretensões a uma posteridade apaziguada e feliz. Não somos os pósteros do século XX, não somos os executores testamentários do século XX, que aliás, e mais uma vez, no caso da poesia portuguesa, não acabou: 'Século de Ouro' é meramente o nome de mais um dos seus recomeços" - escrevem os seus organizadores Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. De assinalar, como sempre, a excepcional qualidade de uma das mais bem preparadas, sensíveis e inteligentes vozes da actual crítica literária portuguesa: Rosa Maria Martelo.

A terceira polémica está no cerne dos textos de ensaio deste número 12 da revista "Relâmpago". Trata-se de uma discussão em torno da atitude programática (em que, como é frequente, um autor converte a sua poesia em norma daquilo que os tempos solicitam) de Manuel de Freitas, que, numa editora discretíssima, Averno, publicou em 2002 uma antologia de difícil acesso, intitulada "Poetas sem qualidades", instituindo uma espécie de manifesto e um efeito de conjunto de geração.

Trata-se de uma "defesa da despoetização da poesia" que nem sempre coincide com a atitude cronologicamente pós-moderna de um Joaquim Manuel Magalhães, que não defende uma "despoetização" seja do que for, mas, sim, uma afirmação sofrida e visceral da toda a literatura, e em particular da poesia, que vai no sentido da "desprofissionalização" radical: "melhor seria que não me lessem nunca /os que por costume lêem poesia". Esta discordância já foi sublinhada por Manuel Gusmão.

Se Manuel de Freitas vai no sentido de uma "perda de qualidades" dos novos poetas, em que "qualidades" surge no sentido de Musil, isso é sem dúvida o puxar de um dos fios mais insistentes da modernidade, como acentua Rosa Maria Martelo: "é precisamente reportando-se a Baudelaire e à figura do poeta sem aura - e valorizando uma das dimensões fundadoras da Modernidade estética, a do 'predomínio do temporal sobre o eterno' - que Manuel de Freitas toma uma posição contra as possíveis remanescências de outra das dimensões dessa mesma tradição de Modernidade".

De facto, a modernidade é feita de uma dilaceração permanente entre estética e antiestética, poesia e antipoesia. O que está na origem da posição de Manuel de Freitas tem a ver sobretudo com a recusa de duas tradições: a do romantismo alemão (de Holderlin a Rilke) e a do lirismo abstracto (de Celan a Wallace Stevens). Daí que, no jogo das figuras tutelares, Ruy Belo ganha o papel de paradigma e Herberto Helder seja empurrado para o papel de excepção genial.

O que se pode criticar em Manuel de Freitas é algo que faz parte dos códigos deste tipo de intervenções: utiliza categorias maciças que estão longe de dar conta da complexidade do panorama da poesia portuguesa. E ao mesmo tempo pretende ter uma atitude normativa numa época em que tais comportamentos geracionais apenas se aceitam com um toque de desencantada ironia. Mas vai também buscar algumas categorias bastantes criticáveis (como em certos casos um vago "desejo de comunicar") em função de uma "poesia da experiência" cuja experiência não é particularmente ampla ou empolgante: "o mero cliché de uma marginalidade de papelão, com as constantes e inevitáveis referências ao álcool, aos bares, etc., ou a simples observação directa do que ocorre no centro comercial, no supermercado ou no café". Daí que estas posições resvalem para uma facilidade medíocre a que falta o que Fernando Pessoa considerava essencial: "uma noção de gravidade e do mistério da Vida".

Existe Uma Nova Poesia?

Sábado, 04 de Outubro de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Em primeiro lugar, um aspecto importante a salientar: duas revistas de poesia de qualidade assinalável vieram alterar a cena cultural portuguesa. Ponto fundamental a pôr em primeiro plano: ambas estão envolvidas num importante e enriquecedor intercâmbio entre poetas de língua portuguesa no Brasil e em Portugal. No caso de "Inimigo Rumor", trata-se mesmo de uma iniciativa brasileira que ganhou nova dimensão quando passou a ter uma edição portuguesa, sob a responsabilidade de Livros Cotovia (editora com um notável trabalho na promoção de autores brasileiros contemporâneos), e com uma direcção portuguesa constituída por André Fernandes Jorge, Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Do lado de lá, Carlito Azevedo, Augusto Massi e Marcos Siscar. Sublinhe-se que se encontram associados a este excelente projecto Abel Barros Baptista, Lindeza Diogo, Gustavo Rubim, João Barrento, Luís Mourão ou Rui Magalhães.

O número mais recente de "Inimigo Rumor" é um "dossier" absolutamente excepcional sobre "o poema em prosa". A revista aparece agora sob o formato de livro, em capa cartonada, belíssima é certo, mas que, no entanto, não é muito legível para o leitor desprevenido. Existem textos teóricos e ensaísticos e uma colaboração em língua portuguesa (poemas originais ou traduzidos) de extraordinária qualidade. Não é preciso ir mais longe. Abra-se a primeira página desta antologia e encontramos o nome de Vilma Arêas. O texto é magnífico: "De costas para a cordilheira e para a mulher de pedra esculpida no ar, abriu a névoa da praça com as duas mãos. Viu os seis peixes deitados no gravalho do ladrilho junto à porta. Entrou aspirando aquele cheiro de pedra, humidade e treva. Percorreu aposento por aposento, subiu e desceu degraus, passou as mãos nas paredes geladas. Reconheceu a voz cantarolando 'el sitio de mi recreo' em tom casual, não viu ninguém, ouviu Panero recitando 'del color de la vejez es el poema, busco aún mis ojos en el armario'. Dizia também que os tigres eram palácios e que nasciam cactos de suas veias."

A segunda revista é a "Relâmpago", é uma edição da Fundação Luís Miguel Nava, e este número 12 foi dirigido por Fernando Pinto do Amaral. Para além de uma utilíssima antologia de poetas que se poderiam classificar como fazendo parte da "nova poesia portuguesa" (e aqui encontramos Carlos Bessa, João Luís Barreto Guimarães, José Mário Silva, José Miguel Silva, José Ricardo Nunes, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Manuel de Freitas, Paulo José Miranda, Pedro Mexia, Rui Coias e Rui Pires Cabral), temos ensaios de António Guerreiro, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz, Rosa Maria Martelo e Vítor Moura (neste caso, sobre Daniel Faria, o autor desaparecido, mas que curiosamente destoa da caracterização de conjunto que se tende a fazer desta "nova poesia").

O curioso é que o meio poético português tenha de certo modo sido agitado por três polémicas - e isto numa época em que as polémicas literárias estão pouco em moda. Em primeiro lugar, a polémica suscitada pela publicação de um texto de Marjorie Perloff, em que de certo modo se dizia que a poesia que hoje se publicava existia apenas num círculo de universitários. Esta visão simultaneamente desencantada e "profissional" da poesia e da crítica suscitou reacções violentas. A segunda polémica (e que ocupa de um modo quase obsessivo uma parte considerável deste número de "Inimigo Rumor", com textos de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra, Manuel Gusmão, Maria Alzira Seixo e Gustavo Rubim) tem a ver com a antologia "Século de Ouro". Como se lembram, esta antologia foi criticada pelo facto de, aparecendo no âmbito de "Coimbra Capital da Cultura", não dar a importância devida a nomes consagrados da tradição coimbrã, e de que seriam exemplos Afonso Duarte, Miguel Torga ou Manuel Alegre. Deixemos de lado a questão política, que é manifestamente secundária, e consideremos o papel paradigmático deste impressionante volume: "Esta 'antologia' decorre da constatação de que o século XX terminou há pouco, mas para certos efeitos está agora a começar. A sua atitude pós-histórica reside antes num exercício crítico que coloca sob suspeita todas as pretensões a uma posteridade apaziguada e feliz. Não somos os pósteros do século XX, não somos os executores testamentários do século XX, que aliás, e mais uma vez, no caso da poesia portuguesa, não acabou: 'Século de Ouro' é meramente o nome de mais um dos seus recomeços" - escrevem os seus organizadores Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. De assinalar, como sempre, a excepcional qualidade de uma das mais bem preparadas, sensíveis e inteligentes vozes da actual crítica literária portuguesa: Rosa Maria Martelo.

A terceira polémica está no cerne dos textos de ensaio deste número 12 da revista "Relâmpago". Trata-se de uma discussão em torno da atitude programática (em que, como é frequente, um autor converte a sua poesia em norma daquilo que os tempos solicitam) de Manuel de Freitas, que, numa editora discretíssima, Averno, publicou em 2002 uma antologia de difícil acesso, intitulada "Poetas sem qualidades", instituindo uma espécie de manifesto e um efeito de conjunto de geração.

Trata-se de uma "defesa da despoetização da poesia" que nem sempre coincide com a atitude cronologicamente pós-moderna de um Joaquim Manuel Magalhães, que não defende uma "despoetização" seja do que for, mas, sim, uma afirmação sofrida e visceral da toda a literatura, e em particular da poesia, que vai no sentido da "desprofissionalização" radical: "melhor seria que não me lessem nunca /os que por costume lêem poesia". Esta discordância já foi sublinhada por Manuel Gusmão.

Se Manuel de Freitas vai no sentido de uma "perda de qualidades" dos novos poetas, em que "qualidades" surge no sentido de Musil, isso é sem dúvida o puxar de um dos fios mais insistentes da modernidade, como acentua Rosa Maria Martelo: "é precisamente reportando-se a Baudelaire e à figura do poeta sem aura - e valorizando uma das dimensões fundadoras da Modernidade estética, a do 'predomínio do temporal sobre o eterno' - que Manuel de Freitas toma uma posição contra as possíveis remanescências de outra das dimensões dessa mesma tradição de Modernidade".

De facto, a modernidade é feita de uma dilaceração permanente entre estética e antiestética, poesia e antipoesia. O que está na origem da posição de Manuel de Freitas tem a ver sobretudo com a recusa de duas tradições: a do romantismo alemão (de Holderlin a Rilke) e a do lirismo abstracto (de Celan a Wallace Stevens). Daí que, no jogo das figuras tutelares, Ruy Belo ganha o papel de paradigma e Herberto Helder seja empurrado para o papel de excepção genial.

O que se pode criticar em Manuel de Freitas é algo que faz parte dos códigos deste tipo de intervenções: utiliza categorias maciças que estão longe de dar conta da complexidade do panorama da poesia portuguesa. E ao mesmo tempo pretende ter uma atitude normativa numa época em que tais comportamentos geracionais apenas se aceitam com um toque de desencantada ironia. Mas vai também buscar algumas categorias bastantes criticáveis (como em certos casos um vago "desejo de comunicar") em função de uma "poesia da experiência" cuja experiência não é particularmente ampla ou empolgante: "o mero cliché de uma marginalidade de papelão, com as constantes e inevitáveis referências ao álcool, aos bares, etc., ou a simples observação directa do que ocorre no centro comercial, no supermercado ou no café". Daí que estas posições resvalem para uma facilidade medíocre a que falta o que Fernando Pessoa considerava essencial: "uma noção de gravidade e do mistério da Vida".

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