Uma ópera plena de actualidade

10-12-2003
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Uma Ópera Plena de Actualidade

Sábado, 29 de Novembro de 2003

%Cristina Fernandes

Depois de "Albert Herring", de Britten, no ano passado, a ópera volta a subir ao palco do Teatro Aberto, desta vez com uma das muitas obras injustamente esquecidas do repertório do século XX. "Neues vom Tage" (Notícias do Dia), de Paul Hindemith, cuja "première" berlinense, em 1929, causou escândalo, conta com um elenco constituído unicamente por cantores portugueses (Ana Ester Neves, Luís Rodrigues, Carlos Guilherme, Dora Rodrigues, Mário João Alves e Pedro Correia, entre outros), encenação de João Lourenço e direcção musical de João Paulo Santos. Com estreia marcada para esta noite, seguida de mais seis récitas até 7 de Dezembro, dará a conhecer ao público português uma saborosa sátira do quotidiano, plena de uma inquietante actualidade, e algumas facetas de Hindemith que normalmente não associamos à sua personalidade criativa.

Para João Paulo Santos, responsável pela direcção musical desta produção e pela temporada musical do Teatro Aberto, "'Neues vom Tage' é obra com uma energia fantástica". Para além das obras-primas indiscutíveis, há no repertório operático "uma zona onde encontramos uma certa confusão gerada pelo hábito", explicou o maestro ao PÚBLICO no intervalo de um dos últimos ensaios. "Muitas vezes deixamos de considerar uma certa ópera como secundária só porque é feita muitas vezes. Pelo contrário, há outras obras que, por razões várias, desaparecem injustamente da programação dos teatros. 'Neues vom Tage' é uma delas."

A simples actualidade do tema já justificaria a sua reabilitação, mas João Paulo Santos afirma que também no plano musical se revelou uma descoberta. "É incrível que há quase 100 anos nos estivessem a avisar de um problema que estamos agora a debater nos jornais - o facto de a comunicação social controlar a vida das pessoas. A vida privada deste casal torna-se do domínio público depois de um acto de vandalismo num museu e de um processo de divórcio complicado. Quando quer sair desta máquina é-lhe negada terminantemente essa liberdade, passaram a ser notícia e não podem decidir por si."

João Paulo Santos já suspeitava que esta partitura era mais lírica e expressiva do que se poderia esperar, o que veio a confirmar-se. "Normalmente associamos a escrita um bocadinho ordenada de Hindemith a uma certa secura, o que é absolutamente mentira. A sua música tem a fama de não ser nada cénica, mas isso é um perfeito disparate. Funciona muito bem em palco. É um bocadinho como um camaleão, vai mudando conforme o tipo de cenas, mas sem nunca perder totalmente a cor Hindemith. Por exemplo, uma cena muito lírica pode contrastar com uma cena de 'cabaret', que nos faz lembrar Kurt Weill - e não é por acaso que Kurt Weill, quando saiu da estreia, disse que Hindemith era o único profissional de todos eles."

Trata-se também de uma obra muito dinâmica. "Não é uma peça longa, mas é preciso fazer com que a avalanche de música que está contida na partitura pareça natural. O contraponto entre a música e o texto requer um trabalho de encenação pouco vulgar. Por um lado, não pode ser encenado de uma maneira demasiado realista, por outro, não pode ser totalmente abstracto."

O encenador João Lourenço é da mesma opinião. Considera a música de Hindemith "fantástica" e de uma "teatralidade enorme" e ficou espantado com a actualidade do libreto. "Não compreendo por que é que esta ópera não se faz mais vezes."

Em colaboração com Henrique Cayatte, construiu um cenário que pretende evocar as linhas e cores da Bauhaus e o ambiente da época e que sirva de forma eficaz a compreensão da história. "Não é uma ópera naturalista, nem realista, portanto tinha que encontrar um tratamento adequado, que fizesse prevalecer a música e o contar da história", explicou ao PÚBLICO. Quanto ao texto, João Lourenço salienta o seu "humor muito sarcástico". "É incrível como é que ele escreveu isto em 1929. Foi algo muito polémico. Partir uma estátua de Vénus - ainda não havia talibans - era uma coisa atroz em palco. E depois, pôr uma diva a tomar banho e cantar as virtudes do aquecimento a gás! Há algum absurdo, mas o tema é realmente muito actual. A forma como os 'media' pegam nestas figuras e as põem num 'cabaret' onde têm de aparecer todas as noites a fazer o que não querem, deixando de ser senhores de si próprios. O paralelo com o que se passa hoje com as televisões e a vida privada das pessoas não podia ser mais evidente."

Uma Ópera Plena de Actualidade

Sábado, 29 de Novembro de 2003

%Cristina Fernandes

Depois de "Albert Herring", de Britten, no ano passado, a ópera volta a subir ao palco do Teatro Aberto, desta vez com uma das muitas obras injustamente esquecidas do repertório do século XX. "Neues vom Tage" (Notícias do Dia), de Paul Hindemith, cuja "première" berlinense, em 1929, causou escândalo, conta com um elenco constituído unicamente por cantores portugueses (Ana Ester Neves, Luís Rodrigues, Carlos Guilherme, Dora Rodrigues, Mário João Alves e Pedro Correia, entre outros), encenação de João Lourenço e direcção musical de João Paulo Santos. Com estreia marcada para esta noite, seguida de mais seis récitas até 7 de Dezembro, dará a conhecer ao público português uma saborosa sátira do quotidiano, plena de uma inquietante actualidade, e algumas facetas de Hindemith que normalmente não associamos à sua personalidade criativa.

Para João Paulo Santos, responsável pela direcção musical desta produção e pela temporada musical do Teatro Aberto, "'Neues vom Tage' é obra com uma energia fantástica". Para além das obras-primas indiscutíveis, há no repertório operático "uma zona onde encontramos uma certa confusão gerada pelo hábito", explicou o maestro ao PÚBLICO no intervalo de um dos últimos ensaios. "Muitas vezes deixamos de considerar uma certa ópera como secundária só porque é feita muitas vezes. Pelo contrário, há outras obras que, por razões várias, desaparecem injustamente da programação dos teatros. 'Neues vom Tage' é uma delas."

A simples actualidade do tema já justificaria a sua reabilitação, mas João Paulo Santos afirma que também no plano musical se revelou uma descoberta. "É incrível que há quase 100 anos nos estivessem a avisar de um problema que estamos agora a debater nos jornais - o facto de a comunicação social controlar a vida das pessoas. A vida privada deste casal torna-se do domínio público depois de um acto de vandalismo num museu e de um processo de divórcio complicado. Quando quer sair desta máquina é-lhe negada terminantemente essa liberdade, passaram a ser notícia e não podem decidir por si."

João Paulo Santos já suspeitava que esta partitura era mais lírica e expressiva do que se poderia esperar, o que veio a confirmar-se. "Normalmente associamos a escrita um bocadinho ordenada de Hindemith a uma certa secura, o que é absolutamente mentira. A sua música tem a fama de não ser nada cénica, mas isso é um perfeito disparate. Funciona muito bem em palco. É um bocadinho como um camaleão, vai mudando conforme o tipo de cenas, mas sem nunca perder totalmente a cor Hindemith. Por exemplo, uma cena muito lírica pode contrastar com uma cena de 'cabaret', que nos faz lembrar Kurt Weill - e não é por acaso que Kurt Weill, quando saiu da estreia, disse que Hindemith era o único profissional de todos eles."

Trata-se também de uma obra muito dinâmica. "Não é uma peça longa, mas é preciso fazer com que a avalanche de música que está contida na partitura pareça natural. O contraponto entre a música e o texto requer um trabalho de encenação pouco vulgar. Por um lado, não pode ser encenado de uma maneira demasiado realista, por outro, não pode ser totalmente abstracto."

O encenador João Lourenço é da mesma opinião. Considera a música de Hindemith "fantástica" e de uma "teatralidade enorme" e ficou espantado com a actualidade do libreto. "Não compreendo por que é que esta ópera não se faz mais vezes."

Em colaboração com Henrique Cayatte, construiu um cenário que pretende evocar as linhas e cores da Bauhaus e o ambiente da época e que sirva de forma eficaz a compreensão da história. "Não é uma ópera naturalista, nem realista, portanto tinha que encontrar um tratamento adequado, que fizesse prevalecer a música e o contar da história", explicou ao PÚBLICO. Quanto ao texto, João Lourenço salienta o seu "humor muito sarcástico". "É incrível como é que ele escreveu isto em 1929. Foi algo muito polémico. Partir uma estátua de Vénus - ainda não havia talibans - era uma coisa atroz em palco. E depois, pôr uma diva a tomar banho e cantar as virtudes do aquecimento a gás! Há algum absurdo, mas o tema é realmente muito actual. A forma como os 'media' pegam nestas figuras e as põem num 'cabaret' onde têm de aparecer todas as noites a fazer o que não querem, deixando de ser senhores de si próprios. O paralelo com o que se passa hoje com as televisões e a vida privada das pessoas não podia ser mais evidente."

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