Suplemento Y

05-06-2004
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Sexta-feira, 30 de Abril de 2004 %Maria João Guimarães Uma rumba que conta a história do suicídio de um jovem modelo de bom comportamento, inspirada numa carta de um leitor de jornal; um lamento em jazz sobre a falta das surpresas tão típicas do jazz; um coro "gospel" numa canção sobre a máxima "Deus quando fecha uma porta abre uma janela"; estas e outras coisas que tais podem encontrar-se em "Exílio", o primeiro disco do Quinteto Tati, composto por dois elementos dos Belle Chase Hotel, J.P. Simões e Sérgio Costa. A primeira grande diferença entre os Belle Chase e o Quinteto Tati (para além da diferença entre um grande conjunto de músicos e um quinteto que é afinal um sexteto) é a língua em que são cantadas as canções. Para J.P. Simões, a mudança foi "um passo arriscado". "Há um snobismo natural quando se começa a cantar em português; cada pessoa acha que a língua é mais sua do que dos outros", explica. "É mais difícil ser profeta na tua terra, por isso é que é mais fácil cantar em inglês. Nos Belle Chase Hotel havia uma linguagem musical quimicamente ligada ao inglês e ao francês e aqui houve uma tentativa de mudar esse jogo. Se houve algum tom mais inovador foi tentar transformar canções como uma rumba, uma valsa ou uma bossa, em coisas que nos parecessem nossas, assumidamente portuguesas e tendencialmente lisboetas", resume. Sérgio Costa aponta o que considera uma característica especial que torna este disco diferente: a intimidade. "O primeiro álbum dos Belle Chase Hotel ['Fossanova'] foi feito em garagem, com contribuições da banda toda. Este foi um trabalho mais cirúrgico, foi feito em casa e acho que isso se consegue perceber, levou a que se calhar as coisas saíssem mais íntimas." De resto, o disco surgiu, lembra J.P. Simões, "numa altura de baixas expectativas em todos os aspectos filosófico-luso-políticos, quando havia quase até um pudor em assobiar na rua, havia até uma tristeza em relação a um país ou a uma comunidade de gente que quer ser feliz". Depois do trabalho caseiro e em "full time", Sérgio e J.P. começaram a convidar os outros músicos do Quinteto - que afinal acabou por se transformar em sexteto. "A ideia ao início era um quinteto, mas como começámos a ter muitos arranjos de sopro achámos que podíamos sacrificar as contas - por assim dizer à boa maneira do ex-governo, e deste também -, achámos que o nome já estava suficientemente colado para estarmos com essas minhoquices", diz J.P. E assim entraram José Miguel Nogueira (guitarra), Pedro Pinto (baixo, contrabaixo), Rui Alves (bateria, percussão) e Daniel Tapadinhas (trompete fliscorne); para além, já agora, dos convidados: uma voz feminina (Petra), um trombone (Luís Rodrigues) e coros (Danilo e Stone, da banda de música cabo-verdiana Refilon). Eis, então, o que está por trás de cada tema de "Exílio". Valsa quase antidepressiva Sérgio Costa: Tenho sempre várias ideias para bandas sonoras de filmes e a ideia para esta música saiu dessa gaveta. Faz-me lembrar filmes franceses e italianos, coisas antigas, anos 60. J.P. Simões: No que toca à letra fui então fazer o filme em cima do filme do Sérgio, aquilo vendo bem em esqueleto é um convite de engate muito complicado, cheio de regras definidas, um convite à dança, ao encontro, mas todo ele calcinado por uma miríade de falhanços amorosos que depois acabam por se resumir a uma arquitectura primeiro de convite depois de clara e provocatória afirmação de que com um pouco de sexo e muita poesia ainda me sinto profundo. Acaba por ser um convite calcinado ao amor, a todas as pessoas catitas do mundo. Rumba dos inadaptados SC já tinha feito a música há dois anos. Depois, o J.P. mostrou-me um artigo do jornal que achava particularmente inspirador e que resolveu juntar a essa música que estava feita, e aí assumiu-se uma tendência para o arranjo e para um tipo de som e a partir do que o J.P. fez com ela em termos de lírica. J.P. Quanto a mim, foi inspirado numa carta de um leitor no PÚBLICO que encaixou de forma perversa no que eu achava que estava a ser o ano de 2003 no que toca à descrença e ao desmérito institucional. Era uma carta quase desesperada de um jovem que achava que fazia tudo bem, ele explicava claramente tudo o que tinha a ver com aculturação, civismo, profissionalismo e boa educação. Ele dizia que fazia tudo bem mas que se sentia um enorme inadaptado. Num contexto do que é o óbvio comportamento quotidiano das massas juvenis enlouquecidas, este jovem é um tipo absolutamente inadaptado. "A morte do jovem contribuinte" é o subtítulo. O que quer dizer para a saúde política e social de um país que um tipo que faz tudo bem se sinta excluído? Que o que nos é pedido é uma exigência ficcional de comportamento que depois não tem qualquer vantagem. Na prática, o que vemos nos jornais? Que o crime compensa, que a impunidade continua a ser óbvia... Daí esse grito desesperado e talvez um pouco tonto. Suor e fantasia SC: Foi uma das escolhas da editora para ilustrar rapidamente o trabalho. Fomos buscar ao baú do J.P., fomos buscar a cassete, depois foi preciso formatá-la, podar umas arestas... e montou-se a música. Começou então a fazer sentido dar-lhe um arranjo de "big band". Não é jazz, mas dá uma ideia de "big band". Nesta música há um contraste interessante entre o que se diz e a forma como é apresentado, o refrão lembra salões de dança dos anos 40 mas depois o que se está a dizer é o contrário. J.P Antes de o Sérgio ter resolvido meter lá a "big band", tinha pensado fazer qualquer coisa na mesma ordem de ideias do Chico Buarque, do "Samba e Amor". Que é uma exaltação da preguiça. Só que, como não sou o Chico Buarque nem tenho a vida dele, essa minha exaltação da preguiça amorosa acabou por não ser desprovida de contraponto. A música tem uma parte que exalta esse abandono sensual, coelhinhos humanos a correr pela casa depois do amor... mas depois no refrão avança para algo mais conclusivo, que já ironiza, diz que se as pessoas acham que é fácil ter de vez em quando alguma preguiça e algum langor, que experimentem levitar sobre o Tejo, para ver se acham fácil. Esse abandono é difícil, tal como a vida. A música acaba por ser sobre esse langor e a dificuldade de o sustentar no ar. Carta tardia SC: É uma composição do J.P. em que houve coisas que me fizeram, mais do que o "Suor e Fantasia", lembrar Chico Buarque e Tom Jobim, depois foi só vesti-la, maquilhá-la, com dois solos de trombone que me fazem lembrar o que se fazia há 20 ou 30 anos na MPB. Tem pouco arranjo porque pedia uma coisa bastante escorreita. J.P: O programa era fazer uma música portuguesa, que fosse portuguesa mas que tivesse essa aparente leveza da bossa nova. Dentro desse programa acabei por utilizar uma vontade muito clara de escrever uma carta, talvez um pouco atrasada, a alguém, a explicar como é que as coisas estão. Os pretextos das canções foram sempre pretextos para limpar ao máximo artifícios e arquétipos líricos e poéticos. Domingo sem Deus SC: Foi a primeira música que fiz para este álbum. Foi numa altura em que recomecei a ouvir Doors, muito, e coincidiu com uma paixão recente pelo órgão que descobri há pouco tempo. Depois custou um bocado ao J.P. encontrar o que havia de dizer em cima disso. J.P: Quanto a esta música, não houve um mínimo de preocupação em ser delicadamente melancólico, é uma espécie de sonho de auto-aniquilação e de falta de fé absoluta, uma solidão demasiado ruidosa de um domingo de abandono e desamor e o som da cidade e do "progresso", da necessidade de não parar. O som da cidade para que te gastes, para que gastes tudo o que tens e que se está completamente nas tintas para ti. É uma música de auto-abuso. Um fado qualquer SC: Canção que o J.P. me entregou já feita na guitarra que tentei ilustrar com a candura de uma flauta bisel e, mais à frente, com a dramaticidade de um contrabaixo de arco, o que me pareceram ser os dois pólos da música, uma coisa que parte de uma falsa leveza e candura para depois se revelar uma coisa muito forte, dorida, dramática. J.P: Começou-se a chamar fado talvez por os primeiros acordes me soarem qualquer coisa assim mais dramática, que logo fiz questão de desfazer a seguir, porque não era aí que queria chega. "Um fado qualquer", um destino qualquer, é uma proto-história de uma mulher que vai para casa para uma situação que não lhe faz sentido, para um jogo acabado, onde ela no caminho de casa se lembra das mil e uma noites em que era mais livre. Também é uma canção sobre o envelhecimento, mas que no refrão acaba por ser pouco conclusivo e vazio, como um quadro do Hopper, pessoas abandonadas num café abandonado. A flor da vida, a arte do encontro, etc. SC Tal como "Suor e fantasia" saiu da cassete do J.P., mais uma vez foi limar arestas, fazer um refrão. A música já estava pronta quando foi para estúdio, eis senão quando de repente me pareceu muito engraçado pôr lá qualquer coisa gospel, um blues marado, gospel lá pelo meio, o J.P. depois teve a ideia do coro, do "preacher" marado... J.P. Foi evoluindo enquanto narrativa, a parte nova da música fez aparecer uma ilustração nova. E isso aconteceu por duas pequenas coisas: um bilhete encontrado no chão de alguém que garantia que Deus quando fecha uma porta abre uma janela (o que me lembrou que podia ser num nono andar; essa ideia enquanto uma frase de esperança que é extremamente ambígua; o meu programa tem sido ir buscar significados às ambiguidades da língua, que felizmente tem muitas) com um sonho de estação de camionetas em que eu estava entretido a ler o jornal que mal reparei numa moça que me pediu uma moeda, que lhe dei, mas foi só depois do gesto automático que reparei, enquanto a moça se afastava, que ela era muito, muito bonita. E claro que comecei a imaginar personagens, neste caso a personagem masculina não era necessariamente eu, era mais um tipo manga-de-alpaca que trabalha no escritoriozinho e que vive com a mãe e tinha aquela incapacidade de se relacionar, e então o que aconteceu foi o transformar essa história em que uma moça muito bonita vem pedir ajuda porque está em fuga de uns malvados traficantes de carne humana do Leste - claro, com sócios portugueses igualmente malvados - e há um idílio amoroso, que é ironizado com essa história de Deus quando fecha uma porta abre uma janela. E depois há um coro gospel que exalta a flor da vida, a maravilha... aleluia. Infelizmente, o que acontece é que a moça deixa um bilhetinho, "muito obrigado pela sua compreensão", depois de lhe ter esvaziado a casa com os seus capangas porque não conseguiu deixar de sentir a velha paixão com o seu mestre do crime. E fez-se esta música tragicómica. No jazz SC Queria sublinhar uma coisa que se vai notar, que é a voz da Petra, uma amiga nossa que canta lá para os lados das Catacumbas, no Bairro Alto. Ficámos siderados com a sua interpretação e resolvemos convidá-la. Ela tem uma voz incrivelmente datada no bom sentido. J.P. É um tema bastante antigo, terá dois anos, de uma altura em que andei a tentar montar na guitarra qualquer coisa com os acordes mais bizarros que conhecia na altura. Aquilo nunca me soou bem, mas mais tarde começou a fazer outro sentido, uma toada jazzy muito curiosa que me exaltou a criação de um exercício de ironia sobre o facto de já não sentir jazz, a surpresa do jazz, os encontros, os improvisos, as paixões súbitas. É como se o jazz tivesse sido ultrapassado pelo programa espacial americano e russo e deixasse de fazer sentido esse uivar à Lua. É um contraponto de esperança numa lamúria em jazz sobre não haver jazz. Vai já passar SC Talvez tenha sido das músicas que mais foi trabalhada em estúdio, era só uma protomúsica que foi depois desenvolvida lá. Eu não acreditava até este álbum que fosse possível criar em estúdio. Agora acho que é possível, desde que se tenha um ambiente óptimo, com pessoas que perceberam o que queríamos dizer em termos musicais, um certo som imperfeito... J.P. De início não me inspirou muito. De certo modo, à medida que a música foi crescendo, houve uma certa informalidade que me fez aproveitar esse lado e começar a escrever uma pequena mensagem de pai para filho sobre os "dói-dóis", mas já não conseguia esquecer a ideia de que não eram só os "dói-dóis" que passavam, com os "dói-dóis" ia tudo, é para ele ouvir muito mais tarde, quando ele puder perceber que às vezes a contradição é a melhor maneira de explicar as coisas. É um pequeno e esforçado e sincero aviso de navegação para alguém que se ame muito. Inventário Marítimo SC Foi a música que mais me custou impingir ao JP. E das que deu mais trabalho fazer com que tivesse "mau som". Às vezes é mais giro procurar um timbre imperfeito, o que se torna difícil numa altura em que se tem tudo ao dispor para ter o som mais fidedigno possível - o piano era um que foi gravado em minha casa, o órgão é um órgão velho, porque tem um som velho e muito imperfeito. Perguntaram-nos se havia factor "kitsch"; talvez aqui seja a música em que se pode ter a dúvida, mas a intenção nunca foi essa, era mais dar uma "patine" à coisa. J.P. Fui buscar um texto antigo, numa base surrealista, que se chama "Inventário Marítimo", que é tão-só uma descrição de todos os pedaços que poderiam perfazer a minha cidade, Lisboa. E então acabou por ser uma canção que começava num inventário para depois avançar para um devaneio pós-hecatômbico lisboeta, quando a cidade estiver submersa pelo mar, e finalmente a terceira parte será uma espécie de especulação sobre se alguém vier fazer arqueologia neste pedaço de terra submersa. E se pensar que existiu aqui um pouco de amor, talvez pense em nós. Conseguimos um processo de "estragação" digital apuradíssimo. Uma para o caminho J.P. Aconteceu uma coisa terrível: estive meses a escrever letras diferentes para esse tema. O Sérgio apresentou-me um tema muito provençal, guitarra e flauta, com uma harmonia evocativa, um bem-estar e uma enorme capacidade melancólica. E aos poucos comecei a seguir a melodia de flauta. Dez letras depois, descobri que não sou uma flauta. E depois foi tentar fazer uma outra melodia que não fosse disfuncional com a melodia da flauta. Acabei por ter umas sessões a ouvir Bach e conseguir fazer umas variações de uns temas sacros e massacrá-los com um lado mais profano. A letra nasceu do desespero de já estar tão viciado numa construção, sempre no sentido de uma música político-filosófica. Comecei a variar à volta da "Antígona", e acabei motivado pelo começo da guerra no Iraque. Comecei a variar à volta da personagem do Rei de Tebas e do que ele teve de fazer em nome da coerência, matar, para depois acabar numa coisa mais simples. Um dia já estava exasperado, estava a tarde a cair, estava a sair de um jardim perto de casa e pensei "é só beber uma última cerveja para o caminho", para dar uma última hipótese, e acabei por criar uma história completamente diferente, com algum eco político, mas uma coisa mais pessoal, uma espécie de queixume do frio que faz fora da tasca onde vamos bebendo uns copos para espantar os maus fantasmas. Créditos finais SC Saiu do meu baú de bandas sonoras, foi gravada em casa ao piano, é mais uma vez o mesmo piano desafinado pelas mesmas razões. Essa música só me faz lembrar um ecrã preto com as letras de um filme de que gostei muito. Qualquer filme. Há uma coisa engraçada: o ruído que se ouve da rua foi uma ideia do J.P., foi simplesmente abrir as janelas do estúdio e pôr lá os microfones. J.P. E assim chegamos ao fim. "This is the end of the movie." OUTROS TÍTULOS EM Y FLASH

roman polanski apresenta "oliver twist"

DESTAQUE

once upon a time... sempre

CINEMA

dog soldiers

Mário Cesariny

TEATRO

Portugal, assim-assim

endgame

estreiam

DANÇA

wray gunn conversas com deus

que vergonha, Vandekeybus!

a continuar...

MÚSICA

TATImúsicas

disco da palavra

O primeiro disco do resto da vida deles

ou era este ou não era

Carl Hancock Rux

mapa de músicas

Lenine

Wray Gunn

NEON

eles andam aí

TATImúsicas

Sexta-feira, 30 de Abril de 2004 %Maria João Guimarães Uma rumba que conta a história do suicídio de um jovem modelo de bom comportamento, inspirada numa carta de um leitor de jornal; um lamento em jazz sobre a falta das surpresas tão típicas do jazz; um coro "gospel" numa canção sobre a máxima "Deus quando fecha uma porta abre uma janela"; estas e outras coisas que tais podem encontrar-se em "Exílio", o primeiro disco do Quinteto Tati, composto por dois elementos dos Belle Chase Hotel, J.P. Simões e Sérgio Costa. A primeira grande diferença entre os Belle Chase e o Quinteto Tati (para além da diferença entre um grande conjunto de músicos e um quinteto que é afinal um sexteto) é a língua em que são cantadas as canções. Para J.P. Simões, a mudança foi "um passo arriscado". "Há um snobismo natural quando se começa a cantar em português; cada pessoa acha que a língua é mais sua do que dos outros", explica. "É mais difícil ser profeta na tua terra, por isso é que é mais fácil cantar em inglês. Nos Belle Chase Hotel havia uma linguagem musical quimicamente ligada ao inglês e ao francês e aqui houve uma tentativa de mudar esse jogo. Se houve algum tom mais inovador foi tentar transformar canções como uma rumba, uma valsa ou uma bossa, em coisas que nos parecessem nossas, assumidamente portuguesas e tendencialmente lisboetas", resume. Sérgio Costa aponta o que considera uma característica especial que torna este disco diferente: a intimidade. "O primeiro álbum dos Belle Chase Hotel ['Fossanova'] foi feito em garagem, com contribuições da banda toda. Este foi um trabalho mais cirúrgico, foi feito em casa e acho que isso se consegue perceber, levou a que se calhar as coisas saíssem mais íntimas." De resto, o disco surgiu, lembra J.P. Simões, "numa altura de baixas expectativas em todos os aspectos filosófico-luso-políticos, quando havia quase até um pudor em assobiar na rua, havia até uma tristeza em relação a um país ou a uma comunidade de gente que quer ser feliz". Depois do trabalho caseiro e em "full time", Sérgio e J.P. começaram a convidar os outros músicos do Quinteto - que afinal acabou por se transformar em sexteto. "A ideia ao início era um quinteto, mas como começámos a ter muitos arranjos de sopro achámos que podíamos sacrificar as contas - por assim dizer à boa maneira do ex-governo, e deste também -, achámos que o nome já estava suficientemente colado para estarmos com essas minhoquices", diz J.P. E assim entraram José Miguel Nogueira (guitarra), Pedro Pinto (baixo, contrabaixo), Rui Alves (bateria, percussão) e Daniel Tapadinhas (trompete fliscorne); para além, já agora, dos convidados: uma voz feminina (Petra), um trombone (Luís Rodrigues) e coros (Danilo e Stone, da banda de música cabo-verdiana Refilon). Eis, então, o que está por trás de cada tema de "Exílio". Valsa quase antidepressiva Sérgio Costa: Tenho sempre várias ideias para bandas sonoras de filmes e a ideia para esta música saiu dessa gaveta. Faz-me lembrar filmes franceses e italianos, coisas antigas, anos 60. J.P. Simões: No que toca à letra fui então fazer o filme em cima do filme do Sérgio, aquilo vendo bem em esqueleto é um convite de engate muito complicado, cheio de regras definidas, um convite à dança, ao encontro, mas todo ele calcinado por uma miríade de falhanços amorosos que depois acabam por se resumir a uma arquitectura primeiro de convite depois de clara e provocatória afirmação de que com um pouco de sexo e muita poesia ainda me sinto profundo. Acaba por ser um convite calcinado ao amor, a todas as pessoas catitas do mundo. Rumba dos inadaptados SC já tinha feito a música há dois anos. Depois, o J.P. mostrou-me um artigo do jornal que achava particularmente inspirador e que resolveu juntar a essa música que estava feita, e aí assumiu-se uma tendência para o arranjo e para um tipo de som e a partir do que o J.P. fez com ela em termos de lírica. J.P. Quanto a mim, foi inspirado numa carta de um leitor no PÚBLICO que encaixou de forma perversa no que eu achava que estava a ser o ano de 2003 no que toca à descrença e ao desmérito institucional. Era uma carta quase desesperada de um jovem que achava que fazia tudo bem, ele explicava claramente tudo o que tinha a ver com aculturação, civismo, profissionalismo e boa educação. Ele dizia que fazia tudo bem mas que se sentia um enorme inadaptado. Num contexto do que é o óbvio comportamento quotidiano das massas juvenis enlouquecidas, este jovem é um tipo absolutamente inadaptado. "A morte do jovem contribuinte" é o subtítulo. O que quer dizer para a saúde política e social de um país que um tipo que faz tudo bem se sinta excluído? Que o que nos é pedido é uma exigência ficcional de comportamento que depois não tem qualquer vantagem. Na prática, o que vemos nos jornais? Que o crime compensa, que a impunidade continua a ser óbvia... Daí esse grito desesperado e talvez um pouco tonto. Suor e fantasia SC: Foi uma das escolhas da editora para ilustrar rapidamente o trabalho. Fomos buscar ao baú do J.P., fomos buscar a cassete, depois foi preciso formatá-la, podar umas arestas... e montou-se a música. Começou então a fazer sentido dar-lhe um arranjo de "big band". Não é jazz, mas dá uma ideia de "big band". Nesta música há um contraste interessante entre o que se diz e a forma como é apresentado, o refrão lembra salões de dança dos anos 40 mas depois o que se está a dizer é o contrário. J.P Antes de o Sérgio ter resolvido meter lá a "big band", tinha pensado fazer qualquer coisa na mesma ordem de ideias do Chico Buarque, do "Samba e Amor". Que é uma exaltação da preguiça. Só que, como não sou o Chico Buarque nem tenho a vida dele, essa minha exaltação da preguiça amorosa acabou por não ser desprovida de contraponto. A música tem uma parte que exalta esse abandono sensual, coelhinhos humanos a correr pela casa depois do amor... mas depois no refrão avança para algo mais conclusivo, que já ironiza, diz que se as pessoas acham que é fácil ter de vez em quando alguma preguiça e algum langor, que experimentem levitar sobre o Tejo, para ver se acham fácil. Esse abandono é difícil, tal como a vida. A música acaba por ser sobre esse langor e a dificuldade de o sustentar no ar. Carta tardia SC: É uma composição do J.P. em que houve coisas que me fizeram, mais do que o "Suor e Fantasia", lembrar Chico Buarque e Tom Jobim, depois foi só vesti-la, maquilhá-la, com dois solos de trombone que me fazem lembrar o que se fazia há 20 ou 30 anos na MPB. Tem pouco arranjo porque pedia uma coisa bastante escorreita. J.P: O programa era fazer uma música portuguesa, que fosse portuguesa mas que tivesse essa aparente leveza da bossa nova. Dentro desse programa acabei por utilizar uma vontade muito clara de escrever uma carta, talvez um pouco atrasada, a alguém, a explicar como é que as coisas estão. Os pretextos das canções foram sempre pretextos para limpar ao máximo artifícios e arquétipos líricos e poéticos. Domingo sem Deus SC: Foi a primeira música que fiz para este álbum. Foi numa altura em que recomecei a ouvir Doors, muito, e coincidiu com uma paixão recente pelo órgão que descobri há pouco tempo. Depois custou um bocado ao J.P. encontrar o que havia de dizer em cima disso. J.P: Quanto a esta música, não houve um mínimo de preocupação em ser delicadamente melancólico, é uma espécie de sonho de auto-aniquilação e de falta de fé absoluta, uma solidão demasiado ruidosa de um domingo de abandono e desamor e o som da cidade e do "progresso", da necessidade de não parar. O som da cidade para que te gastes, para que gastes tudo o que tens e que se está completamente nas tintas para ti. É uma música de auto-abuso. Um fado qualquer SC: Canção que o J.P. me entregou já feita na guitarra que tentei ilustrar com a candura de uma flauta bisel e, mais à frente, com a dramaticidade de um contrabaixo de arco, o que me pareceram ser os dois pólos da música, uma coisa que parte de uma falsa leveza e candura para depois se revelar uma coisa muito forte, dorida, dramática. J.P: Começou-se a chamar fado talvez por os primeiros acordes me soarem qualquer coisa assim mais dramática, que logo fiz questão de desfazer a seguir, porque não era aí que queria chega. "Um fado qualquer", um destino qualquer, é uma proto-história de uma mulher que vai para casa para uma situação que não lhe faz sentido, para um jogo acabado, onde ela no caminho de casa se lembra das mil e uma noites em que era mais livre. Também é uma canção sobre o envelhecimento, mas que no refrão acaba por ser pouco conclusivo e vazio, como um quadro do Hopper, pessoas abandonadas num café abandonado. A flor da vida, a arte do encontro, etc. SC Tal como "Suor e fantasia" saiu da cassete do J.P., mais uma vez foi limar arestas, fazer um refrão. A música já estava pronta quando foi para estúdio, eis senão quando de repente me pareceu muito engraçado pôr lá qualquer coisa gospel, um blues marado, gospel lá pelo meio, o J.P. depois teve a ideia do coro, do "preacher" marado... J.P. Foi evoluindo enquanto narrativa, a parte nova da música fez aparecer uma ilustração nova. E isso aconteceu por duas pequenas coisas: um bilhete encontrado no chão de alguém que garantia que Deus quando fecha uma porta abre uma janela (o que me lembrou que podia ser num nono andar; essa ideia enquanto uma frase de esperança que é extremamente ambígua; o meu programa tem sido ir buscar significados às ambiguidades da língua, que felizmente tem muitas) com um sonho de estação de camionetas em que eu estava entretido a ler o jornal que mal reparei numa moça que me pediu uma moeda, que lhe dei, mas foi só depois do gesto automático que reparei, enquanto a moça se afastava, que ela era muito, muito bonita. E claro que comecei a imaginar personagens, neste caso a personagem masculina não era necessariamente eu, era mais um tipo manga-de-alpaca que trabalha no escritoriozinho e que vive com a mãe e tinha aquela incapacidade de se relacionar, e então o que aconteceu foi o transformar essa história em que uma moça muito bonita vem pedir ajuda porque está em fuga de uns malvados traficantes de carne humana do Leste - claro, com sócios portugueses igualmente malvados - e há um idílio amoroso, que é ironizado com essa história de Deus quando fecha uma porta abre uma janela. E depois há um coro gospel que exalta a flor da vida, a maravilha... aleluia. Infelizmente, o que acontece é que a moça deixa um bilhetinho, "muito obrigado pela sua compreensão", depois de lhe ter esvaziado a casa com os seus capangas porque não conseguiu deixar de sentir a velha paixão com o seu mestre do crime. E fez-se esta música tragicómica. No jazz SC Queria sublinhar uma coisa que se vai notar, que é a voz da Petra, uma amiga nossa que canta lá para os lados das Catacumbas, no Bairro Alto. Ficámos siderados com a sua interpretação e resolvemos convidá-la. Ela tem uma voz incrivelmente datada no bom sentido. J.P. É um tema bastante antigo, terá dois anos, de uma altura em que andei a tentar montar na guitarra qualquer coisa com os acordes mais bizarros que conhecia na altura. Aquilo nunca me soou bem, mas mais tarde começou a fazer outro sentido, uma toada jazzy muito curiosa que me exaltou a criação de um exercício de ironia sobre o facto de já não sentir jazz, a surpresa do jazz, os encontros, os improvisos, as paixões súbitas. É como se o jazz tivesse sido ultrapassado pelo programa espacial americano e russo e deixasse de fazer sentido esse uivar à Lua. É um contraponto de esperança numa lamúria em jazz sobre não haver jazz. Vai já passar SC Talvez tenha sido das músicas que mais foi trabalhada em estúdio, era só uma protomúsica que foi depois desenvolvida lá. Eu não acreditava até este álbum que fosse possível criar em estúdio. Agora acho que é possível, desde que se tenha um ambiente óptimo, com pessoas que perceberam o que queríamos dizer em termos musicais, um certo som imperfeito... J.P. De início não me inspirou muito. De certo modo, à medida que a música foi crescendo, houve uma certa informalidade que me fez aproveitar esse lado e começar a escrever uma pequena mensagem de pai para filho sobre os "dói-dóis", mas já não conseguia esquecer a ideia de que não eram só os "dói-dóis" que passavam, com os "dói-dóis" ia tudo, é para ele ouvir muito mais tarde, quando ele puder perceber que às vezes a contradição é a melhor maneira de explicar as coisas. É um pequeno e esforçado e sincero aviso de navegação para alguém que se ame muito. Inventário Marítimo SC Foi a música que mais me custou impingir ao JP. E das que deu mais trabalho fazer com que tivesse "mau som". Às vezes é mais giro procurar um timbre imperfeito, o que se torna difícil numa altura em que se tem tudo ao dispor para ter o som mais fidedigno possível - o piano era um que foi gravado em minha casa, o órgão é um órgão velho, porque tem um som velho e muito imperfeito. Perguntaram-nos se havia factor "kitsch"; talvez aqui seja a música em que se pode ter a dúvida, mas a intenção nunca foi essa, era mais dar uma "patine" à coisa. J.P. Fui buscar um texto antigo, numa base surrealista, que se chama "Inventário Marítimo", que é tão-só uma descrição de todos os pedaços que poderiam perfazer a minha cidade, Lisboa. E então acabou por ser uma canção que começava num inventário para depois avançar para um devaneio pós-hecatômbico lisboeta, quando a cidade estiver submersa pelo mar, e finalmente a terceira parte será uma espécie de especulação sobre se alguém vier fazer arqueologia neste pedaço de terra submersa. E se pensar que existiu aqui um pouco de amor, talvez pense em nós. Conseguimos um processo de "estragação" digital apuradíssimo. Uma para o caminho J.P. Aconteceu uma coisa terrível: estive meses a escrever letras diferentes para esse tema. O Sérgio apresentou-me um tema muito provençal, guitarra e flauta, com uma harmonia evocativa, um bem-estar e uma enorme capacidade melancólica. E aos poucos comecei a seguir a melodia de flauta. Dez letras depois, descobri que não sou uma flauta. E depois foi tentar fazer uma outra melodia que não fosse disfuncional com a melodia da flauta. Acabei por ter umas sessões a ouvir Bach e conseguir fazer umas variações de uns temas sacros e massacrá-los com um lado mais profano. A letra nasceu do desespero de já estar tão viciado numa construção, sempre no sentido de uma música político-filosófica. Comecei a variar à volta da "Antígona", e acabei motivado pelo começo da guerra no Iraque. Comecei a variar à volta da personagem do Rei de Tebas e do que ele teve de fazer em nome da coerência, matar, para depois acabar numa coisa mais simples. Um dia já estava exasperado, estava a tarde a cair, estava a sair de um jardim perto de casa e pensei "é só beber uma última cerveja para o caminho", para dar uma última hipótese, e acabei por criar uma história completamente diferente, com algum eco político, mas uma coisa mais pessoal, uma espécie de queixume do frio que faz fora da tasca onde vamos bebendo uns copos para espantar os maus fantasmas. Créditos finais SC Saiu do meu baú de bandas sonoras, foi gravada em casa ao piano, é mais uma vez o mesmo piano desafinado pelas mesmas razões. Essa música só me faz lembrar um ecrã preto com as letras de um filme de que gostei muito. Qualquer filme. Há uma coisa engraçada: o ruído que se ouve da rua foi uma ideia do J.P., foi simplesmente abrir as janelas do estúdio e pôr lá os microfones. J.P. E assim chegamos ao fim. "This is the end of the movie." OUTROS TÍTULOS EM Y FLASH

roman polanski apresenta "oliver twist"

DESTAQUE

once upon a time... sempre

CINEMA

dog soldiers

Mário Cesariny

TEATRO

Portugal, assim-assim

endgame

estreiam

DANÇA

wray gunn conversas com deus

que vergonha, Vandekeybus!

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MÚSICA

TATImúsicas

disco da palavra

O primeiro disco do resto da vida deles

ou era este ou não era

Carl Hancock Rux

mapa de músicas

Lenine

Wray Gunn

NEON

eles andam aí

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