CONVERSA COM VISTA PARA...

03-08-2004
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CONVERSA COM VISTA PARA...

Domingo, 25 de Julho de 2004 O fado exige, para ser entendido e amado, uma certa maturidade, uma disponibilidade interior que é difícil ter-se quando se é muito jovem Carlos do Carmo Sua mãe era uma "imperatriz" do fado. Não lhe fora doado o Império, nem de alguém o recebera por sucessão dinástica - refundara-o ela, pelo modo como cantava, pela soberania expressa no corpo e no rosto, pela "arte" do uso do xaile, pela voz espessa, trágica, com que palavra a palavra desfiava as teias desse canto, urbano e misterioso, pressentido como anterior ao tempo que, historiadores e especialistas, lhe atribuem por data de nascimento. Carlos, seu único filho, não recebeu da mãe o ceptro, em regime de sagração por linhagem directa, mas reconheceu-o, sempre, como legado modelar de um universo a descobrir e a conquistar. Cabia-lhe a ele saber desviar-se, num primeiro tempo, daquele ofício, daquele ritual presidido por reminiscências antiquíssimas do mais que secreto diálogo entre os homens e as forças do destino. As forças que Lucília do Carmo, majestática e singularmente, sabia traduzir e interpretar. Pôs-se o filho a caminho de novas rotas, em busca de raízes frescas, sulcou outras águas, nelas procurando gemas raras de um sal desconhecido no reino má trio. Cumprida essa aventura, regressou. E já que o dom de uma voz, e de um sentido para a usar, lhe fora também concedido, pôs-se então a reunir todos os grãos que na viagem recolhera e entregou-se a lançá-los à terra fértil daquele território, o do fado, que o Império de sua mãe ostentava por brasão. O menino viageiro estava, finalmente, preparado e pronto para a benção imperial. Ditosa foi essa benção e ditosos somos nós por de ambos recebermos a dádiva de um canto que de nós fala e continuamente nos convoca para o que somos, sem mascarar nem corromper o que de nós já foi, antes inspirando, por esta "estranha forma de vida" que é música que o coração compõe, um renovado modo de ser. MJS - Carlos do Carmo, diga-me quem é. CC - Sou um português dos quatro costados e um intérprete fadista. MJS - Vamos a isso dos "quatro costados". O que é que o leva a sentir-se tão à vontade a dizer que o é? CC - Gosto visceralmente de Portugal, com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos. O privilégio que tenho tido, pela profissão que escolhi, levou-me a conhecer os portugueses de uma forma especial. Conheço-os tão bem dentro como fora de Portugal e habituei-me a perceber que os portugueses emigram de Portugal para Portugal, nunca emigram para nenhum sítio, o que é uma virtude rara, que nenhum outro povo tem, pelo menos dos que eu conheço. E encontro certas coisas muito particulares na personalidade dos portugueses, são características de que gosto muito, que me fascinam. Uma espécie de instabilidade emocional, por exemplo, ou ciclotimia, se preferir, que leva a qualquer coisa que, por vezes, é deserção (vide o recente caso do ex- Primeiro Ministro Durão Barroso), ou então é emigração. MJS - Esse retrato dos nossos "quatro costados" é, no mínimo, singular. Arriscaria mesmo a classificá-lo de pouco abonatório. CC - Não veja assim. O que eu quis dizer é que o português foge, de vez em quando, porque se satura de si próprio. Precisa, ciclicamente, de fugir. Acho esta inquietação historicamente muito interessante. É óbvio que não tenho aqui a pretensão de falar do português com rigor histórico, ou sociológico, nada disso, quem sou eu para o presumir. Mas, este conjunto de factores que eu lhe encontro - e olhe que são factores constantes, fora e dentro! - constitui um excepcional estímulo para o meu acto de cantar. Assim como a leitura do "Labirinto da Saudade", de Eduardo Lourenço, me ajudou a entender muita coisa sobre nós e logo se constituiu em livro de referência. Livro de referência que foi, e é, de uma importância fundamental também para o meu acto de cantar. MJS - Quando diz que o português emigra de Portugal para Portugal, isso significa que leva Portugal colado à pele ou que sai sempre guiado pela vontade de regressar? CC - Levar Portugal consigo, sim. Já a ideia do regresso não me parece que seja tão consistente. Fala-se de resto pouco nos milhares de portugueses que emigraram e que não mais conseguiram os meios económicos para sequer voltar uma vez à terra. Nomeadamente do Brasil. Na Europa talvez, tudo foi diferente. É possível fazer-se estudos concretos sobre as casas construídas em Portugal por emigrantes de França, da Alemanha, do Luxemburgo... São casas, na maioria das vezes, sobredimensionadas. Foram pensadas para filhos e netos. E é aí que as fracturas mais dramáticas acontecem, porque os filhos e os netos deixaram de ser portugueses e não virão habitá-las. MJS - Esses filhos e netos, os novos descendentes da emigração portuguesa, já com outras nacionalidades incorporadas, vão ouvi-lo cantar quando se desloca aos países onde vivem? CC - No meu caso pessoal a relação é muito boa, estende-se no tempo. Continuam a ir ouvir-me. Quando eles eram crianças e adolescentes, os pais levavam-nos. Tive sempre muito presente, como cantor popular, que era preciso tentar que os meus espectáculos não constituíssem, para os mais novos, um trauma, uma chatice. E terei sido dos primeiros a falar-lhes de poetas portugueses. A descoberta da poesia portuguesa, feita do alto dos palcos, de uma forma muito simples, como quem conta uma história de um país que tem coisas e valores lindíssimos, aproximou os mais jovens de mim. A ideia de um país muito pobre, de onde os pais tiveram que fugir, estava ausente dos meus espectáculos. O guião era outro e passava por histórias que lhes contava sobre as aventuras, loucas e divertidas, de poetas como o Alexandre O'Neill, o Ary dos Santos... Isso divertia-os e, como experiência estritamente pessoal, julgo que foi por aí que se mantiveram atentos e curiosos sobre o que canto. O interesse pelo fado tem-me aproximado de muita gente nova, dentro e fora do país. Gente na casa dos trinta, dos quarenta, sem nada de nostálgico, como seria o caso dos pais emigrantes, para quem ouvir cantar em português era a consolação maior. Acho a indústria da saudade abominável e sempre me recusei a puxar esse cordão. Não se trata de "vender-lhes" Portugal, trata-se de "comungar" Portugal com eles. Tem que se ter muito respeito pelas pessoas que nos ouvem. Há muitos anos, no fim de um espectáculo, julgo que na Alemanha, alguém veio ter comigo e disse-me que eu lhe tinha trazido o cheiro da sua aldeia. Fiquei impressionado, sendo eu um urbano, nascido na cidade de Lisboa, fadista, nunca me tinha passado pela cabeça poder ouvir dizer uma coisa daquelas. E não se pode brincar com estas emoções. Sei que não faço regra, que até me consideram um bocado chato nestas matérias, mas levo isto de cantar fado muito a sério e não considero nada menor cantar para a emigração. MJS - Volto à sua primeira resposta - quando é que se soube "intérprete fadista"? Foi convocado pela sua mãe? CC - É difícil explicar todo o processo, sobretudo no que diz respeito ao papel da minha mãe. Por vontade dos meus pais, eu não teria sido um artista. A minha mãe não gostava da ideia porque conhecia muito bem as agruras da profissão ( as coisas não tinham sido nada fáceis para a sua geração ), e o meu pai dizia-me invariavelmente que lhe bastava aturar um artista em casa. Como vê, não fui muito convocado por eles, que até me mandaram estudar lá para fora, para que o rumo da minha vida fosse outro. O acto de cantar o fado é provavelmente qualquer coisa que eu teria dentro de mim, em silêncio, ou seja, devo ter cantado o fado em silêncio, muitas vezes, mesmo em pleno rock ( comecei a minha carreira exactamente no mesmo ano que os Beatles!). Toda a música que fui ouvindo tem uma matriz estranha e o fado chega muito mais tarde. Só muito recentemente é que comecei a sentir-me capaz de ordenar melhor na memória este meu reencontro poderoso com o fado, que ocorreu por volta dos vinte e dois, vinte e três anos de idade. MJS - Nessa tentativa que os seus pais fizeram para dar outro rumo à sua vida, que não o de vir a ser um artista, foi mandado para onde? Aprender o quê? CC - Fui para a Suíça - aprender línguas e formar-me no ramo de hotelaria (coisa rara, à época, em Portugal). Falar, ler e escrever, a sério, francês, inglês, italiano, alemão, espanhol, era para os meus pais a garantia de que eu ficava preparado para trabalhar onde quer que fosse. O curso de hotelaria que fiz, e que hoje teria equivalência universitária, não tinha na altura sequer reconhecimento em Portugal. Olhando para trás, penso no vanguardismo daquela decisão do meu pai, sempre muito preocupado com a preparação do meu futuro. Dizia-me muitas vezes - Olha, rapaz, não contes com heranças, porque não as terás. Prepara-te, o melhor que souberes e puderes. A tua herança vai ser a tua preparação! Ele já devia sentir a saúde frágil a querer levá-lo cedo e quis assegurar, rapidamente, o melhor futuro para o seu único filho. Pouco tempo depois de eu regressar da Suíça, morreu, sem ver cumprido o sonho de podermos trabalhar juntos, em projectos que ambos tínhamos arquitectado. MJS - Ao ser capaz, hoje, de ordenar melhor na sua memória os passos do seu "poderoso" reencontro com o fado, vai a esses tempos da Suíça ou a volta é mais recuada? CC - É muito mais recuada. Hoje já tenho possibilidades de me lembrar quanto apreciava ouvir o fado em criança. Os meus pais levavam-me nos fins-de-semana às verbenas, onde ouvi cantar gente que, estando na História do Fado, figura apenas em notas de rodapé. Cantavam muito, muito bem. MJS - As verbenas? Passavam-se onde? CC - Nos bairros populares lisboetas ou mesmo fora de portas. As verbenas eram um convívio especial de uma época, de um tempo. A maioria das vezes eram à hora do almoço, mas também podiam ser ao jantar e, com bom tempo, faziam-se ao ar livre. A marca que guardo em mim desse tempo, dessas verbenas e daquelas pessoas que eu ia ouvir com os meus pais, é da grande personalidade de cada uma delas. Ninguém imitava ninguém, cada uma delas era perfeitamente reconhecível no seu estilo próprio de cantar. Fui um menino que cresceu no meio delas, ia-lhes fixando os nomes, todas me tratavam com muito carinho - O filho da Lucília, o filho da Lucília e do Alfredo! Depois entrei numa outra fase, a da escola primária e a do liceu Passos Manuel. Quer a escola, quer o liceu, estavam próximos do restaurante que os meus pais abriram em 47 - a Adega da Lucília (mais tarde O Faia), e eu vinha muitas vezes almoçar ao restaurante com os meus pais, porque à noite não os via, eram pais ausentes, por razões de trabalho. E acontecia por vezes ouvir, da parte da tarde, sobretudo quando às quintas-feiras, por alguma razão, não tinha aulas - havia, nesse tempo, as "Quintas-feiras da Moda", em que se cantava o fado depois do almoço. Era um convívio fantástico, o acto de tocar e de cantar surgia espontaneamente, as pessoas falavam imenso e estimulavam-se entre si a cantar - Vá, agora cantas tu! ( O meu amigo Vicente da Câmara está muito interessado, veja bem, em retomar esse hábito e anda a puxar por mim, anda a animar-me para esse projecto. Quando nos encontramos, lá me vai dizendo - Carlos, temos de encontrar por aí um sítio, onde às terças-feiras ao fim da tarde nos possamos reunir para cantarmos e tocarmos uns para os outros. Ele tem razão, é uma boa ideia). Entretanto, com as idas da minha mãe ao Brasil, ela trazia na bagagem, para mim, discos de músicos brasileiros - Luís Gonzaga, Nora Ney, Dorival Caymmi. Comecei a ter paixão por essa música e a afastar-me do fado. Continuava a ir, de vez em quando, à casa de fados dos meus pais e lá ia ouvindo A, B e C. Havia umas pessoas que exerciam um grande fascínio sobre mim, como, por exemplo, a Berta Cardoso, porque tinha uma dicção fabulosa, que me impressionava muito, as palavras eram sibiladas, muitas vezes acentuadas por um sorriso. Em relação à minha mãe, eu estava muito por dentro, sabia quem era o mestre daquele fenómeno - era o meu pai, ele próprio uma escola de dicção, que ensaiava em casa a minha mãe, horas a fio, ensinava-a a dizer. O meu pai vinha de outro universo, era um livreiro de livros de Medicina. Apaixonou-se perdidamente por aquela miúda fadista, vinte anos mais nova, e, depois desse encontro, a sua vida alterou-se radicalmente. E assim foi, comecei desde muito cedo a ouvir a minha mãe cantar mas, freudianamente, a primeira reacção foi naturalmente a da rejeição. Precisei de me afastar do fado e, já na Suíça, entrei num processo parvo, meio snob, o menino que estuda em colégios de milionários, com laivos de uma ascensão social meio ridícula. Fado? Nem pensar! Como se não fosse o fado a matriz da minha vida, como se o fado não estivesse na origem de tudo de mim. Virei-me então para a canção francesa ( Piaff, Bécaud - que adorava ver em palco, Brel - mais tarde), para os crooners americanos e para o jazz ( Armstrong, Coltrane, Tony Bennett, Vic Damone, Perry Como, Sinatra - talvez o meu melhor professor de inglês!, Thelonius Monk, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan). O jazz, então, representava um universo de criação a que eu, sem saber explicar porquê, me sentia muito ligado. Com o correr daqueles anos intensifico a minha relação ao Brel e estabeleço pontes com a novíssima música brasileira, com os meus contemporâneos- Chico Buarque da Holanda, Elis Regina (nunca ouvi ninguém cantar a língua portuguesa como ela!). Com todo esse caldeirão de influências dentro de mim, penso hoje, a falar consigo agora, que durante todo esse tempo devo ter cantado o fado em silêncio. MJS - Tinha já o hábito de cantar as músicas desses ídolos ou gostava apenas de os ouvir? CC - Cantava tudo, desde sempre, entre amigos, claro! Dos Beatles, aos brasileiros, aos italianos, aos franceses. Tudo. Mais franceses e italianos do que anglo-saxónicos. Com excepção do Sinatra. Ainda hoje sei de cor umas três dúzias de canções do Sinatra. Aprendi-as com muita paixão, porque ele foi o meu mestre de "phrasing", de "timing", da divisão das palavras, da capacidade de fazer de um texto inócuo uma canção linda, só pelo sentido que a voz e a música podem emprestar às palavras. Até que um dia, num grupo de amigos já em Lisboa, alguém me pediu para cantar um fado. O único fado que eu sabia de cor era um fado do Júlio de Sousa, que a minha mãe cantava - "Loucura". Cantei e eles acharam que eu, afinal, cantava bem o fado. MJS - Importa-se de me dizer os primeiros versos desse fado? CC - "Sou do fado/ Como sei/ Vivo um poema cantado/ Dum fado que eu inventei". O Júlio de Sousa tinha uma pequena casa de fados - A Baiúca, vizinha do restaurante dos meus pais. Era uma maravilha vê-lo dizer poesia, e à sua irmã, Maria Amélia, numas encenações sempre muito teatrais, com ele envolvido numa grande capa e acompanhado ao piano. Tratava-se de uma outra forma de expressar o fado. Uma forma rara que, nos anos sessenta, atraiu uma certa boémia e alguns intelectuais lisboetas e que enriqueceu o meu modo de entender o fado. MJS - O que é que se seguiu a essa primeira interpretação do "Loucura" para o tal grupo de amigos? CC - Apareceu-me o "malandro" do Mário Simões - na época, era o mais popular dos músicos desta terra ( gravava imensos discos e tocava nos locais da noite que eu também frequentava) - a convidar-me para eu gravar aquele fado num disco dele. Tentei dissuadi-lo, mas ele convenceu-me. Escolhemos o meu nome artístico, não nos parecia que Carlos Almeida fosse muito apropriado e a mim não me parecia bem retirar o nome da minha mãe - Carlos do Carmo, ficou decidido. Fomos para estúdio, gravei rapidamente aquilo (acompanhado a guitarra eléctrica, bateria, baixo, piano e coro!) e, assim que saiu e passou na rádio, "estoirou". O problema foi esse. Tinha vinte e três anos e, a partir daí, tudo começou a mudar. MJS - O seu pai ainda o ouviu? CC - Infelizmente, não. Não "conheceu" o tal artista que não queria que eu fosse. MJS - Foi uma surpresa para a sua mãe? CC - Uma semi-surpresa, porque a minha mãe sabia que eu gostava muito de cantar, embora o terreno do fado fosse um terreno que eu não pisava. A ideia de eu cantar um fado pareceu-lhe bizarra e não estimulou, coisa que percebi e percebo lindamente. Não tinha nada a ver com competição mãe/filho, isso nunca existiu entre nós, mas a ideia do filho envolver-se naquela coisa do fado, já bastava tudo o que ela própria tinha sofrido e todas as dificuldades por que passara...Mas, depois dessa experiência com o fado "Loucura", a mesma editora, Alvorada, não me largou mais e daí a gravar um outro, a solo, com quatro fados, foi um passo. Lá tive que ir aprender "Lisboa, Casta Princesa", "Que Estranha Forma de Vida" (Amália/Marceneiro), "A Viela" ( Marceneiro) e a mesma música do "Loucura", com outra letra. Muito atrevidamente, disse que gostaria de gravar aqueles quatro fados com orquestra, o que aconteceu. Os arranjos, muito bonitos, eram da autoria do meu querido maestro Joaquim Luís Gomes, grande músico, injustamente esquecido. Não demorámos sequer muito tempo a gravar e, mal o disco saiu, o "Que Estranha Forma de Vida" passou a estar de manhã, à tarde e à noite na rádio. Aí é que tudo, definitivamente, se alterou. Começou por se alterar na minha vida pessoal, porque houve uma rapariga que quis conhecer quem é que cantava o "Que Estranha Forma de Vida" e que é a minha mulher, apenas há quarenta anos. Foi uma cena incrível, porque ela foi ao Faia e perguntou se o intérprete que procurava era um senhor de cabelos brancos que lá estava; quando apontaram para mim, ela achou que estavam a brincar, que não podia ser aquele miúdo! No plano profissional, ao princípio ainda ofereci alguma resistência, porque a minha actividade como empresário dava-me muito trabalho... MJS - ... porque, com a súbita morte do seu pai, teve que assumir a gestão de O Faia? CC - Exactamente. Tive que tomar conta, de cabo a raso, daquela casa, ou seja, tentar dar-lhe a volta e, lentamente, alterar as mentalidades. Não tinha sido em vão ter estudado na Suíça, donde trouxera ideias novas e vontade de fazer coisas mais profissionais, mais rigorosas. Queria, e acho que conseguimos, fazer daquela casa de fados uma excelente sala de visitas. Para isso chegava a trabalhar perto de quinze horas por dia e a ideia de cantar complicava-me ainda mais a vida. Como é que podia acumular? O facto é que pude e fiz vinte anos seguidos. Fiquei com uma ideia muito engraçada, naquele tempo, do que são os fenómenos do famoso "box office", da bilheteira. Quando em 1968 gravei "Por Morrer uma Andorinha", outro grande êxito, as pessoas faziam bicha à porta do Faia, à espera que saísse alguém, para poderem entrar. Havia também os que diziam que eu cantava muito bem, mas a minha mãe é que era! Os grandes amantes do fado tinham a minha mãe por referência e eu era outra coisa, um fadista menor, comparativamente. Diziam-no sem agressividade e eu aceitava isso, como uma regra de ouro. Passámos então a coexistir, a minha mãe e eu, de um modo muito interessante, já que a nova geração, a que vinha comigo e gostava do meu modo de cantar, também descobriu a minha mãe. Desse modo fazíamos ali uma espécie de permuta de públicos, que consolidava muito as diferentes gerações. Éramos muito críticos em relação ao outro - eu era capaz de lhe dizer depois de a ouvir cantar a "Rapsódia de Fados"- No menor não estiveste nada bem! e ela, com palmas delirantes no fim de um fado meu - Até mete raiva o mal que hoje cantaste! Foram vinte anos passados assim. Inesquecíveis. MJS - Ao lado do empresário profissionalizado no ramo de hotelaria, convivia o intérprete fadista que cantava na sua própria casa de fados. Mas a profissionalização do cantor exigia igualmente outros compromissos. Que novos passos teve que aprender a dar? CC - Quando me apercebi que era também necessário cuidar profissionalmente desse outro lado da minha actividade, assinei contrato com uma multinacional discográfica, a Universal, onde, para além de uma ou duas saídas pontuais, ainda estou hoje. Já faço parte do inventário da mobília. Depois comecei a ir cantar para a província, aprendi que cantar o fado em Lisboa é uma coisa e no Alentejo ou na Beira Alta é outra. A seguir foram as tournées nas ex-colónias e o mundo da emigração, sempre acompanhado pelo António Chaínho e o José Maria Nóbrega (hoje ainda comigo), e pelo meu querido Thilo que, com o seu Quarteto, me preparava outras músicas. Procurei sempre organizar espectáculos diversificados. E percebi, desde muito cedo, que era preciso chegar aos sítios, a cada sítio, com a humildade de um visitante. MJS - A sua mãe cantou até que idade? MJS - Até aos sessenta anos. No dia em que fez sessenta anos, deixou de cantar em público. Nunca mais ninguém a ouviu. De vez em quando, cá em casa, cantava "a capella" para os netos. MJS - Se a sua mãe, cuja voz e maneira de cantar sempre me impressionaram muito, personificava para mim uma certa dimensão trágica no fado, já o Carlos, quando canta, representa outra coisa, representa a viagem e a incorporação no fado de outros ventos, outras marés. Faz isto algum sentido para si? CC - Faz. Talvez o facto de eu trazer dentro de mim uma permanente inquietação, de ser muito portugamente nostálgico de futuro e muito avesso ao sinal negativo do "coitadinho" como sinónimo do "nosso triste fado", ajude a explicar isso. Talvez o facto de já ter estado, por duas vezes, muito perto da morte, tenha reforçado em mim uma grande humildade e me obrigue a uma cada vez maior entrega no acto de cantar, também ajude a perceber. Talvez ainda o eu gostar muito de música, de muitas músicas, de ter tido acidentes de percurso que me transportaram, muito novo, para outras paisagens, outros mundos, contribua para dar essa tonalidade "outra". MJS - Sabe ler uma pauta de música? CC - Não, não estudei música, não sei ler música, não toco nenhum instrumento.. Quando gravámos o primeiro disco, o maestro Joaquim Luís Gomes disse-me - Carlos do Carmo, da forma que você canta não aprenda música, senão você não volta a cantar assim -. Terei feito bem em seguir o seu conselho? MJS - Quando canta, tem ideia que a palavra é anterior à música, ou faz dela parte integrante, ou até é ela que a conduz ? CC - Não lhe sei responder. O que sei é que o universo da música é um território muito especial e que a palavra é uma visita, que deve ser muito bem guiada, cerimonialmente guiada. MJS - Peço-lhe agora, como grande oficiante do fado, que me diga se a diferença entre o acompanhamento de uma orquestra e o acompanhamento (de minha eleição) da viola e da guitarra portuguesa, afecta ou não a natureza da cerimónia do acto de cantar fado. CC - No acto puro e duro da guitarra, da viola e do baixo, tem que haver uma coisa que não acontece sempre - a sintonia perfeita entre nós quatro, sobretudo entre a guitarra e a voz. Quando isso acontece, é verdade, pode ser mágico. Mas isso só acontece de vez em quando, porque não somos máquinas. Com a orquestra e os arranjos orquestrais é mais fácil a voz seguir, com gosto, as sugestões propostas e o resultado final ser harmonioso e bonito. MJS - Passado um certo "jejum" que rodeou o fado nos anos a seguir ao 25 de Abril, há hoje um grande ressurgimento do gosto pelo fado, com novas e diferentes vozes a cantarem, a darem espectáculos, a gravarem. Como é que atravessou os tais anos de quase silêncio? CC - É corrente atribuir-se a esse período a tal marca de quase menosprezo pelo fado. Devo dizer-lhe que não a senti assim, não a vivi assim. Nunca deixei de cantar, os meus discos vendiam-se tão bem nesses anos, como agora, ou talvez mais, porque a crise das edições discográficas é, neste momento, muito pesada. Cantei sempre fado, então e agora, porque sou um intérprete fadista. Talvez haja uma explicação para se insistir nesse tal ponto do "jejum", que se prende com o facto de o maestro Lopes Graça ( figura maior da música portuguesa e com grande influência sobre toda a esquerda pensante) não gostar de fado, ser completamente anti-fado ( que achava ser um género menor!) e, com isso, ter influenciado uma certa intelligentsia portuguesa e, sobretudo, os media, que calavam, nesse período, qualquer notícia relativa ao fado. Depois aconteceu o brutal impacto da morte da Amália, que foi um fenómeno mediaticamente muito forte e que sacudiu toda a gente, criando uma nova disponibilidade para o fado. Com essa onda, que atravessou o país inteiro, surgiram também oportunismos vários e instalou-se uma espécie de moda. Hoje corre-se também o risco do fado cair em "modismos" fáceis, em descaracterizações avulsas, etc... Actualmente a tentação obsessiva de criar públicos muito jovens para o fado parece-me errada - o fado exige, para ser entendido e amado, uma certa maturidade, uma disponibilidade interior que é difícil ter-se quando se é muito jovem. MJS - O tempo de disponibilidade da nossa conversa chegou ao fim. Dê-me uma palavra de eleição. CC - Ternura. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Cabia-lhe a ele saber desviar-se, num primeiro tempo, daquele ofício, daquele ritual presidido por reminiscências antiquíssimas do mais que secreto diálogo entre os homens e as forças do destino. As forças que Lucília do Carmo, majestática e singularmente, sabia traduzir e interpretar. Pôs-se o filho a caminho de novas rotas, em busca de raízes frescas, sulcou outras águas, nelas procurando gemas raras de um sal desconhecido no reino má trio. Cumprida essa aventura, regressou. E já que o dom de uma voz, e de um sentido para a usar, lhe fora também concedido, pôs-se então a reunir todos os grãos que na viagem recolhera e entregou-se a lançá-los à terra fértil daquele território, o do fado, que o Império de sua mãe ostentava por brasão. O menino viageiro estava, finalmente, preparado e pronto para a benção imperial. Ditosa foi essa benção e ditosos somos nós por de ambos recebermos a dádiva de um canto que de nós fala e continuamente nos convoca para o que somos, sem mascarar nem corromper o que de nós já foi, antes inspirando, por esta "estranha forma de vida" que é música que o coração compõe, um renovado modo de ser. MJS - Carlos do Carmo, diga-me quem é. CC - Sou um português dos quatro costados e um intérprete fadista. MJS - Vamos a isso dos "quatro costados". O que é que o leva a sentir-se tão à vontade a dizer que o é? CC - Gosto visceralmente de Portugal, com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos. O privilégio que tenho tido, pela profissão que escolhi, levou-me a conhecer os portugueses de uma forma especial. Conheço-os tão bem dentro como fora de Portugal e habituei-me a perceber que os portugueses emigram de Portugal para Portugal, nunca emigram para nenhum sítio, o que é uma virtude rara, que nenhum outro povo tem, pelo menos dos que eu conheço. E encontro certas coisas muito particulares na personalidade dos portugueses, são características de que gosto muito, que me fascinam. Uma espécie de instabilidade emocional, por exemplo, ou ciclotimia, se preferir, que leva a qualquer coisa que, por vezes, é deserção (vide o recente caso do ex- Primeiro Ministro Durão Barroso), ou então é emigração. MJS - Esse retrato dos nossos "quatro costados" é, no mínimo, singular. Arriscaria mesmo a classificá-lo de pouco abonatório. CC - Não veja assim. O que eu quis dizer é que o português foge, de vez em quando, porque se satura de si próprio. Precisa, ciclicamente, de fugir. Acho esta inquietação historicamente muito interessante. É óbvio que não tenho aqui a pretensão de falar do português com rigor histórico, ou sociológico, nada disso, quem sou eu para o presumir. Mas, este conjunto de factores que eu lhe encontro - e olhe que são factores constantes, fora e dentro! - constitui um excepcional estímulo para o meu acto de cantar. Assim como a leitura do "Labirinto da Saudade", de Eduardo Lourenço, me ajudou a entender muita coisa sobre nós e logo se constituiu em livro de referência. Livro de referência que foi, e é, de uma importância fundamental também para o meu acto de cantar. MJS - Quando diz que o português emigra de Portugal para Portugal, isso significa que leva Portugal colado à pele ou que sai sempre guiado pela vontade de regressar? CC - Levar Portugal consigo, sim. Já a ideia do regresso não me parece que seja tão consistente. Fala-se de resto pouco nos milhares de portugueses que emigraram e que não mais conseguiram os meios económicos para sequer voltar uma vez à terra. Nomeadamente do Brasil. Na Europa talvez, tudo foi diferente. É possível fazer-se estudos concretos sobre as casas construídas em Portugal por emigrantes de França, da Alemanha, do Luxemburgo... São casas, na maioria das vezes, sobredimensionadas. Foram pensadas para filhos e netos. E é aí que as fracturas mais dramáticas acontecem, porque os filhos e os netos deixaram de ser portugueses e não virão habitá-las. MJS - Esses filhos e netos, os novos descendentes da emigração portuguesa, já com outras nacionalidades incorporadas, vão ouvi-lo cantar quando se desloca aos países onde vivem? CC - No meu caso pessoal a relação é muito boa, estende-se no tempo. Continuam a ir ouvir-me. Quando eles eram crianças e adolescentes, os pais levavam-nos. Tive sempre muito presente, como cantor popular, que era preciso tentar que os meus espectáculos não constituíssem, para os mais novos, um trauma, uma chatice. E terei sido dos primeiros a falar-lhes de poetas portugueses. A descoberta da poesia portuguesa, feita do alto dos palcos, de uma forma muito simples, como quem conta uma história de um país que tem coisas e valores lindíssimos, aproximou os mais jovens de mim. A ideia de um país muito pobre, de onde os pais tiveram que fugir, estava ausente dos meus espectáculos. O guião era outro e passava por histórias que lhes contava sobre as aventuras, loucas e divertidas, de poetas como o Alexandre O'Neill, o Ary dos Santos... Isso divertia-os e, como experiência estritamente pessoal, julgo que foi por aí que se mantiveram atentos e curiosos sobre o que canto. O interesse pelo fado tem-me aproximado de muita gente nova, dentro e fora do país. Gente na casa dos trinta, dos quarenta, sem nada de nostálgico, como seria o caso dos pais emigrantes, para quem ouvir cantar em português era a consolação maior. Acho a indústria da saudade abominável e sempre me recusei a puxar esse cordão. Não se trata de "vender-lhes" Portugal, trata-se de "comungar" Portugal com eles. Tem que se ter muito respeito pelas pessoas que nos ouvem. Há muitos anos, no fim de um espectáculo, julgo que na Alemanha, alguém veio ter comigo e disse-me que eu lhe tinha trazido o cheiro da sua aldeia. Fiquei impressionado, sendo eu um urbano, nascido na cidade de Lisboa, fadista, nunca me tinha passado pela cabeça poder ouvir dizer uma coisa daquelas. E não se pode brincar com estas emoções. Sei que não faço regra, que até me consideram um bocado chato nestas matérias, mas levo isto de cantar fado muito a sério e não considero nada menor cantar para a emigração. MJS - Volto à sua primeira resposta - quando é que se soube "intérprete fadista"? Foi convocado pela sua mãe? CC - É difícil explicar todo o processo, sobretudo no que diz respeito ao papel da minha mãe. Por vontade dos meus pais, eu não teria sido um artista. A minha mãe não gostava da ideia porque conhecia muito bem as agruras da profissão ( as coisas não tinham sido nada fáceis para a sua geração ), e o meu pai dizia-me invariavelmente que lhe bastava aturar um artista em casa. Como vê, não fui muito convocado por eles, que até me mandaram estudar lá para fora, para que o rumo da minha vida fosse outro. O acto de cantar o fado é provavelmente qualquer coisa que eu teria dentro de mim, em silêncio, ou seja, devo ter cantado o fado em silêncio, muitas vezes, mesmo em pleno rock ( comecei a minha carreira exactamente no mesmo ano que os Beatles!). Toda a música que fui ouvindo tem uma matriz estranha e o fado chega muito mais tarde. Só muito recentemente é que comecei a sentir-me capaz de ordenar melhor na memória este meu reencontro poderoso com o fado, que ocorreu por volta dos vinte e dois, vinte e três anos de idade. MJS - Nessa tentativa que os seus pais fizeram para dar outro rumo à sua vida, que não o de vir a ser um artista, foi mandado para onde? Aprender o quê? CC - Fui para a Suíça - aprender línguas e formar-me no ramo de hotelaria (coisa rara, à época, em Portugal). Falar, ler e escrever, a sério, francês, inglês, italiano, alemão, espanhol, era para os meus pais a garantia de que eu ficava preparado para trabalhar onde quer que fosse. O curso de hotelaria que fiz, e que hoje teria equivalência universitária, não tinha na altura sequer reconhecimento em Portugal. Olhando para trás, penso no vanguardismo daquela decisão do meu pai, sempre muito preocupado com a preparação do meu futuro. Dizia-me muitas vezes - Olha, rapaz, não contes com heranças, porque não as terás. Prepara-te, o melhor que souberes e puderes. A tua herança vai ser a tua preparação! Ele já devia sentir a saúde frágil a querer levá-lo cedo e quis assegurar, rapidamente, o melhor futuro para o seu único filho. Pouco tempo depois de eu regressar da Suíça, morreu, sem ver cumprido o sonho de podermos trabalhar juntos, em projectos que ambos tínhamos arquitectado. MJS - Ao ser capaz, hoje, de ordenar melhor na sua memória os passos do seu "poderoso" reencontro com o fado, vai a esses tempos da Suíça ou a volta é mais recuada? CC - É muito mais recuada. Hoje já tenho possibilidades de me lembrar quanto apreciava ouvir o fado em criança. Os meus pais levavam-me nos fins-de-semana às verbenas, onde ouvi cantar gente que, estando na História do Fado, figura apenas em notas de rodapé. Cantavam muito, muito bem. MJS - As verbenas? Passavam-se onde? CC - Nos bairros populares lisboetas ou mesmo fora de portas. As verbenas eram um convívio especial de uma época, de um tempo. A maioria das vezes eram à hora do almoço, mas também podiam ser ao jantar e, com bom tempo, faziam-se ao ar livre. A marca que guardo em mim desse tempo, dessas verbenas e daquelas pessoas que eu ia ouvir com os meus pais, é da grande personalidade de cada uma delas. Ninguém imitava ninguém, cada uma delas era perfeitamente reconhecível no seu estilo próprio de cantar. Fui um menino que cresceu no meio delas, ia-lhes fixando os nomes, todas me tratavam com muito carinho - O filho da Lucília, o filho da Lucília e do Alfredo! Depois entrei numa outra fase, a da escola primária e a do liceu Passos Manuel. Quer a escola, quer o liceu, estavam próximos do restaurante que os meus pais abriram em 47 - a Adega da Lucília (mais tarde O Faia), e eu vinha muitas vezes almoçar ao restaurante com os meus pais, porque à noite não os via, eram pais ausentes, por razões de trabalho. E acontecia por vezes ouvir, da parte da tarde, sobretudo quando às quintas-feiras, por alguma razão, não tinha aulas - havia, nesse tempo, as "Quintas-feiras da Moda", em que se cantava o fado depois do almoço. Era um convívio fantástico, o acto de tocar e de cantar surgia espontaneamente, as pessoas falavam imenso e estimulavam-se entre si a cantar - Vá, agora cantas tu! ( O meu amigo Vicente da Câmara está muito interessado, veja bem, em retomar esse hábito e anda a puxar por mim, anda a animar-me para esse projecto. Quando nos encontramos, lá me vai dizendo - Carlos, temos de encontrar por aí um sítio, onde às terças-feiras ao fim da tarde nos possamos reunir para cantarmos e tocarmos uns para os outros. Ele tem razão, é uma boa ideia). Entretanto, com as idas da minha mãe ao Brasil, ela trazia na bagagem, para mim, discos de músicos brasileiros - Luís Gonzaga, Nora Ney, Dorival Caymmi. Comecei a ter paixão por essa música e a afastar-me do fado. Continuava a ir, de vez em quando, à casa de fados dos meus pais e lá ia ouvindo A, B e C. Havia umas pessoas que exerciam um grande fascínio sobre mim, como, por exemplo, a Berta Cardoso, porque tinha uma dicção fabulosa, que me impressionava muito, as palavras eram sibiladas, muitas vezes acentuadas por um sorriso. Em relação à minha mãe, eu estava muito por dentro, sabia quem era o mestre daquele fenómeno - era o meu pai, ele próprio uma escola de dicção, que ensaiava em casa a minha mãe, horas a fio, ensinava-a a dizer. O meu pai vinha de outro universo, era um livreiro de livros de Medicina. Apaixonou-se perdidamente por aquela miúda fadista, vinte anos mais nova, e, depois desse encontro, a sua vida alterou-se radicalmente. E assim foi, comecei desde muito cedo a ouvir a minha mãe cantar mas, freudianamente, a primeira reacção foi naturalmente a da rejeição. Precisei de me afastar do fado e, já na Suíça, entrei num processo parvo, meio snob, o menino que estuda em colégios de milionários, com laivos de uma ascensão social meio ridícula. Fado? Nem pensar! Como se não fosse o fado a matriz da minha vida, como se o fado não estivesse na origem de tudo de mim. Virei-me então para a canção francesa ( Piaff, Bécaud - que adorava ver em palco, Brel - mais tarde), para os crooners americanos e para o jazz ( Armstrong, Coltrane, Tony Bennett, Vic Damone, Perry Como, Sinatra - talvez o meu melhor professor de inglês!, Thelonius Monk, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan). O jazz, então, representava um universo de criação a que eu, sem saber explicar porquê, me sentia muito ligado. Com o correr daqueles anos intensifico a minha relação ao Brel e estabeleço pontes com a novíssima música brasileira, com os meus contemporâneos- Chico Buarque da Holanda, Elis Regina (nunca ouvi ninguém cantar a língua portuguesa como ela!). Com todo esse caldeirão de influências dentro de mim, penso hoje, a falar consigo agora, que durante todo esse tempo devo ter cantado o fado em silêncio. MJS - Tinha já o hábito de cantar as músicas desses ídolos ou gostava apenas de os ouvir? CC - Cantava tudo, desde sempre, entre amigos, claro! Dos Beatles, aos brasileiros, aos italianos, aos franceses. Tudo. Mais franceses e italianos do que anglo-saxónicos. Com excepção do Sinatra. Ainda hoje sei de cor umas três dúzias de canções do Sinatra. Aprendi-as com muita paixão, porque ele foi o meu mestre de "phrasing", de "timing", da divisão das palavras, da capacidade de fazer de um texto inócuo uma canção linda, só pelo sentido que a voz e a música podem emprestar às palavras. Até que um dia, num grupo de amigos já em Lisboa, alguém me pediu para cantar um fado. O único fado que eu sabia de cor era um fado do Júlio de Sousa, que a minha mãe cantava - "Loucura". Cantei e eles acharam que eu, afinal, cantava bem o fado. MJS - Importa-se de me dizer os primeiros versos desse fado? CC - "Sou do fado/ Como sei/ Vivo um poema cantado/ Dum fado que eu inventei". O Júlio de Sousa tinha uma pequena casa de fados - A Baiúca, vizinha do restaurante dos meus pais. Era uma maravilha vê-lo dizer poesia, e à sua irmã, Maria Amélia, numas encenações sempre muito teatrais, com ele envolvido numa grande capa e acompanhado ao piano. Tratava-se de uma outra forma de expressar o fado. Uma forma rara que, nos anos sessenta, atraiu uma certa boémia e alguns intelectuais lisboetas e que enriqueceu o meu modo de entender o fado. MJS - O que é que se seguiu a essa primeira interpretação do "Loucura" para o tal grupo de amigos? CC - Apareceu-me o "malandro" do Mário Simões - na época, era o mais popular dos músicos desta terra ( gravava imensos discos e tocava nos locais da noite que eu também frequentava) - a convidar-me para eu gravar aquele fado num disco dele. Tentei dissuadi-lo, mas ele convenceu-me. Escolhemos o meu nome artístico, não nos parecia que Carlos Almeida fosse muito apropriado e a mim não me parecia bem retirar o nome da minha mãe - Carlos do Carmo, ficou decidido. Fomos para estúdio, gravei rapidamente aquilo (acompanhado a guitarra eléctrica, bateria, baixo, piano e coro!) e, assim que saiu e passou na rádio, "estoirou". O problema foi esse. Tinha vinte e três anos e, a partir daí, tudo começou a mudar. MJS - O seu pai ainda o ouviu? CC - Infelizmente, não. Não "conheceu" o tal artista que não queria que eu fosse. MJS - Foi uma surpresa para a sua mãe? CC - Uma semi-surpresa, porque a minha mãe sabia que eu gostava muito de cantar, embora o terreno do fado fosse um terreno que eu não pisava. A ideia de eu cantar um fado pareceu-lhe bizarra e não estimulou, coisa que percebi e percebo lindamente. Não tinha nada a ver com competição mãe/filho, isso nunca existiu entre nós, mas a ideia do filho envolver-se naquela coisa do fado, já bastava tudo o que ela própria tinha sofrido e todas as dificuldades por que passara...Mas, depois dessa experiência com o fado "Loucura", a mesma editora, Alvorada, não me largou mais e daí a gravar um outro, a solo, com quatro fados, foi um passo. Lá tive que ir aprender "Lisboa, Casta Princesa", "Que Estranha Forma de Vida" (Amália/Marceneiro), "A Viela" ( Marceneiro) e a mesma música do "Loucura", com outra letra. Muito atrevidamente, disse que gostaria de gravar aqueles quatro fados com orquestra, o que aconteceu. Os arranjos, muito bonitos, eram da autoria do meu querido maestro Joaquim Luís Gomes, grande músico, injustamente esquecido. Não demorámos sequer muito tempo a gravar e, mal o disco saiu, o "Que Estranha Forma de Vida" passou a estar de manhã, à tarde e à noite na rádio. Aí é que tudo, definitivamente, se alterou. Começou por se alterar na minha vida pessoal, porque houve uma rapariga que quis conhecer quem é que cantava o "Que Estranha Forma de Vida" e que é a minha mulher, apenas há quarenta anos. Foi uma cena incrível, porque ela foi ao Faia e perguntou se o intérprete que procurava era um senhor de cabelos brancos que lá estava; quando apontaram para mim, ela achou que estavam a brincar, que não podia ser aquele miúdo! No plano profissional, ao princípio ainda ofereci alguma resistência, porque a minha actividade como empresário dava-me muito trabalho... MJS - ... porque, com a súbita morte do seu pai, teve que assumir a gestão de O Faia? CC - Exactamente. Tive que tomar conta, de cabo a raso, daquela casa, ou seja, tentar dar-lhe a volta e, lentamente, alterar as mentalidades. Não tinha sido em vão ter estudado na Suíça, donde trouxera ideias novas e vontade de fazer coisas mais profissionais, mais rigorosas. Queria, e acho que conseguimos, fazer daquela casa de fados uma excelente sala de visitas. Para isso chegava a trabalhar perto de quinze horas por dia e a ideia de cantar complicava-me ainda mais a vida. Como é que podia acumular? O facto é que pude e fiz vinte anos seguidos. Fiquei com uma ideia muito engraçada, naquele tempo, do que são os fenómenos do famoso "box office", da bilheteira. Quando em 1968 gravei "Por Morrer uma Andorinha", outro grande êxito, as pessoas faziam bicha à porta do Faia, à espera que saísse alguém, para poderem entrar. Havia também os que diziam que eu cantava muito bem, mas a minha mãe é que era! Os grandes amantes do fado tinham a minha mãe por referência e eu era outra coisa, um fadista menor, comparativamente. Diziam-no sem agressividade e eu aceitava isso, como uma regra de ouro. Passámos então a coexistir, a minha mãe e eu, de um modo muito interessante, já que a nova geração, a que vinha comigo e gostava do meu modo de cantar, também descobriu a minha mãe. Desse modo fazíamos ali uma espécie de permuta de públicos, que consolidava muito as diferentes gerações. Éramos muito críticos em relação ao outro - eu era capaz de lhe dizer depois de a ouvir cantar a "Rapsódia de Fados"- No menor não estiveste nada bem! e ela, com palmas delirantes no fim de um fado meu - Até mete raiva o mal que hoje cantaste! Foram vinte anos passados assim. Inesquecíveis. MJS - Ao lado do empresário profissionalizado no ramo de hotelaria, convivia o intérprete fadista que cantava na sua própria casa de fados. Mas a profissionalização do cantor exigia igualmente outros compromissos. Que novos passos teve que aprender a dar? CC - Quando me apercebi que era também necessário cuidar profissionalmente desse outro lado da minha actividade, assinei contrato com uma multinacional discográfica, a Universal, onde, para além de uma ou duas saídas pontuais, ainda estou hoje. Já faço parte do inventário da mobília. Depois comecei a ir cantar para a província, aprendi que cantar o fado em Lisboa é uma coisa e no Alentejo ou na Beira Alta é outra. A seguir foram as tournées nas ex-colónias e o mundo da emigração, sempre acompanhado pelo António Chaínho e o José Maria Nóbrega (hoje ainda comigo), e pelo meu querido Thilo que, com o seu Quarteto, me preparava outras músicas. Procurei sempre organizar espectáculos diversificados. E percebi, desde muito cedo, que era preciso chegar aos sítios, a cada sítio, com a humildade de um visitante. MJS - A sua mãe cantou até que idade? MJS - Até aos sessenta anos. No dia em que fez sessenta anos, deixou de cantar em público. Nunca mais ninguém a ouviu. De vez em quando, cá em casa, cantava "a capella" para os netos. MJS - Se a sua mãe, cuja voz e maneira de cantar sempre me impressionaram muito, personificava para mim uma certa dimensão trágica no fado, já o Carlos, quando canta, representa outra coisa, representa a viagem e a incorporação no fado de outros ventos, outras marés. Faz isto algum sentido para si? CC - Faz. Talvez o facto de eu trazer dentro de mim uma permanente inquietação, de ser muito portugamente nostálgico de futuro e muito avesso ao sinal negativo do "coitadinho" como sinónimo do "nosso triste fado", ajude a explicar isso. Talvez o facto de já ter estado, por duas vezes, muito perto da morte, tenha reforçado em mim uma grande humildade e me obrigue a uma cada vez maior entrega no acto de cantar, também ajude a perceber. Talvez ainda o eu gostar muito de música, de muitas músicas, de ter tido acidentes de percurso que me transportaram, muito novo, para outras paisagens, outros mundos, contribua para dar essa tonalidade "outra". MJS - Sabe ler uma pauta de música? CC - Não, não estudei música, não sei ler música, não toco nenhum instrumento.. Quando gravámos o primeiro disco, o maestro Joaquim Luís Gomes disse-me - Carlos do Carmo, da forma que você canta não aprenda música, senão você não volta a cantar assim -. Terei feito bem em seguir o seu conselho? MJS - Quando canta, tem ideia que a palavra é anterior à música, ou faz dela parte integrante, ou até é ela que a conduz ? CC - Não lhe sei responder. O que sei é que o universo da música é um território muito especial e que a palavra é uma visita, que deve ser muito bem guiada, cerimonialmente guiada. MJS - Peço-lhe agora, como grande oficiante do fado, que me diga se a diferença entre o acompanhamento de uma orquestra e o acompanhamento (de minha eleição) da viola e da guitarra portuguesa, afecta ou não a natureza da cerimónia do acto de cantar fado. CC - No acto puro e duro da guitarra, da viola e do baixo, tem que haver uma coisa que não acontece sempre - a sintonia perfeita entre nós quatro, sobretudo entre a guitarra e a voz. Quando isso acontece, é verdade, pode ser mágico. Mas isso só acontece de vez em quando, porque não somos máquinas. Com a orquestra e os arranjos orquestrais é mais fácil a voz seguir, com gosto, as sugestões propostas e o resultado final ser harmonioso e bonito. MJS - Passado um certo "jejum" que rodeou o fado nos anos a seguir ao 25 de Abril, há hoje um grande ressurgimento do gosto pelo fado, com novas e diferentes vozes a cantarem, a darem espectáculos, a gravarem. Como é que atravessou os tais anos de quase silêncio? CC - É corrente atribuir-se a esse período a tal marca de quase menosprezo pelo fado. Devo dizer-lhe que não a senti assim, não a vivi assim. Nunca deixei de cantar, os meus discos vendiam-se tão bem nesses anos, como agora, ou talvez mais, porque a crise das edições discográficas é, neste momento, muito pesada. Cantei sempre fado, então e agora, porque sou um intérprete fadista. Talvez haja uma explicação para se insistir nesse tal ponto do "jejum", que se prende com o facto de o maestro Lopes Graça ( figura maior da música portuguesa e com grande influência sobre toda a esquerda pensante) não gostar de fado, ser completamente anti-fado ( que achava ser um género menor!) e, com isso, ter influenciado uma certa intelligentsia portuguesa e, sobretudo, os media, que calavam, nesse período, qualquer notícia relativa ao fado. Depois aconteceu o brutal impacto da morte da Amália, que foi um fenómeno mediaticamente muito forte e que sacudiu toda a gente, criando uma nova disponibilidade para o fado. Com essa onda, que atravessou o país inteiro, surgiram também oportunismos vários e instalou-se uma espécie de moda. Hoje corre-se também o risco do fado cair em "modismos" fáceis, em descaracterizações avulsas, etc... Actualmente a tentação obsessiva de criar públicos muito jovens para o fado parece-me errada - o fado exige, para ser entendido e amado, uma certa maturidade, uma disponibilidade interior que é difícil ter-se quando se é muito jovem. MJS - O tempo de disponibilidade da nossa conversa chegou ao fim. Dê-me uma palavra de eleição. CC - Ternura. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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