BENTO DE JESUS CARAÇA

06-05-2004
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Sessão Pública em Aldeias de Montoito

(concelho de Redondo)

Sociedade Recreativa 1º de Dezembro

Aldeia de Montoito

30 de Junho de 2001

Bento Caraça: Relance sobre o seu Percurso Humano e Cívico

Paulo Sucena

Sec. Geral da FENPROF

Membro da Com. Executiva da CGTP-IN

Tenho a profunda convicção, por aquilo que dele li e pelo muito que dele me contaram alguns dos seus amigos e pelo que fui lendo da sua vida e obra, que se em vez de ter sete anos já tivesse atingido, pelo menos, a juventude, eu seria um dos muitos milhares que, em Junho de 1948, acompanharam Bento Caraça à sua última morada. Envolto no mesmo silêncio constrangido de quem sente que se está a despedir do que de melhor tem dentro de si porque Bento Caraça iluminava e impulsionava, como só os grandes mestres sabem fazer, o que de mais válido cada um de nós tem - o de olhar os outros como sujeitos dos mesmos direitos que pretendemos usufruir. Naqueles tempos isso significava alimentar a coragem para lutar contra forças brutalmente repressivas, a determinação para abrir, de todas as formas possíveis, os caminhos da liberdade e da democracia, a generosidade para nos darmos as mãos na construção de belos projectos colectivos que não só enriquecem os que neles colaboram mas todos os que deles possam desfrutar, o empenhamento na construção de uma sociedade de justiça social, liberta de quaisquer opressões económicas, políticas, sociais ou culturais, uma sociedade dirigida pelos mais capazes e não pelos detentores do poder económico, como, de algum modo, Caraça o afirma numa das suas conferências. Todavia, creio que o que Bento de Jesus Caraça mais eficientemente semeava nos seus contemporâneos era a esperança. A esperança num tempo outro, diferente porque vivido sob os princípios de um humanismo que Caraça jamais se cansou de explicitar. Essa esperança era o que dava sentido à vida de todos os democratas e anti-fascistas que naquele dia de Junho ergueram uma abóbada de espesso silêncio na última "caminhada" de Bento de Jesus Caraça para que nada pudesse perturbar um estranho e contraditório sentimento - o de que a morte daquele Homem, que tão exemplarmente doou a sua vida aos outros, sem quaisquer restrições mesmo aquelas que lhe poderiam evitar que o ditador Salazar lhe assassinasse a luz do lugar onde tudo principiava, a sua Cátedra, dava um sentido maior às sua vidas e à sua luta cívica e política porque nenhum deles poderia fazer empalidecer a memória e o exemplo de Bento Caraça. O intelectual insigne e o infatigável divulgador da cultura que, em 1941, aquando do lançamento da Biblioteca Cosmos escreveu: "... Quando acabar a tarefa dos homens que descem das nuvens a despejar explosivos, começará outra tarefa - a dos homens que pacientemente, conscientemente, procurarão organizar-se de tal modo que não seja mais possível a obra destruidora daqueles. Então, com o estabelecimento de novas relações e de novas estruturas, o homem achar-se-á no centro da sociedade, numa posição diferente, com outros direitos, outras responsabilidades. É toda uma vida nova a construir dominada por um humanismo novo. Há, em suma, que dar ao homem uma visão optimista de si próprio; o homem desiludido e pessimista é um ser inerte sujeito a todas as renúncias, a todas as derrotas - e derrotas só existem aquelas que se aceitam.

Quando acima falamos num Humanismo novo, entendemos como um dos seus constituintes essenciais este elemento de valorização - que o homem, sentindo que a cultura é de todos, participe, por ela, no conjunto de valores colectivos que há-de levar à criação da cidade nova".

Estas palavras de Caraça definem claramente um espírito anti-belicista, um espírito em demanda de um Humanismo novo cujos princípios sustentem a criação de uma cidade nova, orientações ideológicas que uma nota, de 8 de Setembro de 1939, à sua conferência "A Cultura Integral do Indivíduo - Problema Central do Nosso Tempo", produzida em 25 de Maio de 1933, claramente corrobora: "Uma coisa me parece no entanto certa - esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos. E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do oriente, aquele longínquo oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo".

Era este homem de esperança e de perseverança, confiante na criação de uma cidade nova, numa Europa aquecida pelo sol do oriente, do oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo, porque aí se procedia à construção do socialismo, que iria para sempre descer à terra o que significava que o seu exemplo quotidiano de reflexão e acção para sempre desaparecera e por isso os mais sensíveis participantes do funeral terão com certeza sentido que uma fria e persistente amargura atravessou o redondo silêncio que em 25 de Junho de 1948 envolveu o bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. Uma amargura no entanto imbuída por um exaltante sentimento de confiança no futuro. Num futuro melhor, construído com as ferramentas que Caraça ajudou a fabricar.

Só um homem de qualidades invulgares pode fazer nascer sentimentos assim contraditórios - de tristeza pela sua ausência; de alegria pelo legado que nos ofertou, forte e reconfortante como um luzeiro na noite escura; de amargura pelo que deixou de produzir quando se encontrava na plenitude das suas capacidades; de confiança no futuro porque a sociedade pela qual Bento Caraça se bateu, nos campos da teoria e da prática, é uma sociedade que coloca os homens e as mulheres no centro das suas preocupações.

Descia naquela dia à terra um homem cujo pensamento foi inequivocamente influenciado pelos produtores da ideologia comunista, descia à terra um comunista que teve o alto mérito de congraçar em torno de si outros democratas e anti-fascistas. Acabe-se com especulações inúteis e concedamos todos a um cidadão com a integridade moral e intelectual de Bento Caraça a liberdade de ter escolhido o PCP para nas suas fileiras melhor pôr em prática o que pensou e escreveu.

Descia à terra um homem profundamente telúrico que, nascido em Vila Viçosa há um século, viu a luz do dia nos campos de Aldeias de Montoito que as circunstâncias históricas e sociais daquele tempo condenariam, em princípio, ao analfabetismo não fora a sua invulgar inteligência que lhe permitiu aprender a ler numa cartilha de um trabalhador rural e foi ainda capaz de suscitar o interesse pela sua educação à dona da herdade em que seus pais trabalhavam.

Dizia um filósofo espanhol que o homem nunca é sozinho, é ele e a sua circunstância. E como ela pesou na sensibilidade e inteligência do jovem Bento, que viria a terminar a instrução primária em Vila Viçosa, lugar de reis e príncipes, no ano em que vai ser implantada a República! Depois, é a sua vinda para Lisboa onde termina os estudos liceais e ingressa no Instituto Superior do Comércio, mais tarde designado por Instituto de Ciências Económicas e Financeiras que deu origem ao actual ISEG. Entre o fim do liceu e a sua nomeação para 2º Assistente, em 1919, quando ainda era estudante, teve Bento Caraça a oportunidade de assistir a momentos extremamente convulsos no percurso histórico da 1ª República como o foram o Sidonismo e a prática política de Sidónio Pais, a quem Fernando Pessoa chamou de "Presidente-Rei", e a instauração da monarquia do Norte, em Janeiro/Fevereiro de 1919, mais conhecida pelo Reino da Traulitânia tal o cortejo de violências contra as forças republicanas e democráticas. Este final do segundo decénio permite, em virtude das contradições sociais em que caíra a Primeira República, o levedar de organizações que levarão, em 1921, à constituição do PCP. Bento Caraça é ainda nomeado Assistente da sua Faculdade durante a República democrática mas a sua nomeação para Prof. Extraordinário, em 1927, e Prof. Catedrático, em 1929, já decorrem sob a ditadura militar que abrirá as portas ao Estado Novo e à ditadura fascista.

A superior inteligência de Bento Caraça permitiu-lhe ler de forma rigorosa as contradições da república burguesa e os perigos da ditadura militar e mais tarde a ignomínia de que se vestiu o regime fascista. Na esteira de R. Rolland, Bento Caraça jamais deixou de ligar o pensamento à acção com o objectivo de construir uma sociedade melhor. Por isso, em 1928, assume a Presidência do Conselho de Administração da Universidade Popular Portuguesa e nela se mantém até à sua morte. Mais tarde colabora na criação do Núcleo de Matemática, Física e Química, entre outros com Ruy Luís Gomes e António da Silveira. Em 1940 funda a Gazeta de Matemática com Aniceto Monteiro, Hugo Baptista Ribeiro e Zaluar Nunes, que teve uma vida atribulada, sob muitos aspectos, de acordo com o testemunho de José Gaspar Teixeira. Na área da economia impulsionou o lançamento da Revista de Economia entre outras com os felizmente ainda vivos Costa Leal e Ulpiano do Nascimento. Presidiu ainda à Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática.

Em 1941, como atrás referi, funda a Biblioteca Cosmos com o intuito de divulgar o conhecimento, em diversas áreas, de um modo acessível ao maior número de leitores, num trabalho infatigável com vista a "despertar a alma colectiva das massas".

A este trabalho de grande exigência científica e organizativa junta B. Caraça uma intervenção regular e diversificada não só em colóquios e seminários mas também nas revistas culturais. Deste modo as suas conferências perfilam-se, com igual importância, ao lado da sua obra incontornável intitulada "Os Conceitos Fundamentais da Matemática", onde os aprendizes do materialismo dialéctico podem encontrar uma magistral lição da sua aplicação.

No último ano da II Guerra Mundial, Bento Caraça participa em dois importantes movimentos - o Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista e o Movimento de Unidade Democrática de cuja Comissão Central foi Vice-Presidente. Em consequência da sua pertinaz actividade e luta pela instauração da liberdade e da democracia, a ditadura fascista demitiu, em Outubro de 1946, Bento Caraça do seu lugar de professor catedrático.

Mas nada quebra o ânimo deste homem afável e determinado e só a doença o faz diminuir a actividade nos dois últimos anos de vida.

Bento Caraça morreu com 47 anos e a sua morte prematura deixou um vazio profundo no campo da luta anti-fascista. Porém, a sua maior grandeza reside no seu pensamento, vasto e diversificado, que, não substituindo o homem e a sua acção, é ainda hoje um poderoso estímulo para todos nós que não permitimos que nos submetam aos ditames de um pensamento único e a uma globalização sem rosto humano que despreza os trabalhadores e enaltece, em exclusivo, as vias do lucro; nem tão pouco consentimos que aniquilem as culturas e os valores regionais e locais porque a planície alentejana, muitas vezes morada de silêncio e solidão, a singela modéstia de Aldeias de Montoito ou a granítica dureza das serranias beirãs, onde procurava melhoras para a sua doença, não impediram, antes pelo contrário, Bento de Jesus Caraça de perscrutar no particular a universalidade do homem. Por isso Caraça é um homem do seu tempo e um homem que transcendeu esse tempo.

Foi um clarão na noite fascista. Um exemplo para os seus camaradas e para todos que lutaram contra o fascismo em busca da liberdade, da democracia e de uma sociedade sem opressores e oprimidos. Por tal razão Bento de Jesus Caraça continua e continuará ao nosso lado, como diria José Gomes Ferreira. Mas este estar presente sendo ausente só os poetas o sabem cantar ou porventura o próprio Bento Caraça que, na opinião de José Gomes Ferreira, "viveu como se cumprisse um acto poético". Nanja eu.

Sessão Pública em Aldeias de Montoito

(concelho de Redondo)

Sociedade Recreativa 1º de Dezembro

Aldeia de Montoito

30 de Junho de 2001

Bento Caraça: Relance sobre o seu Percurso Humano e Cívico

Paulo Sucena

Sec. Geral da FENPROF

Membro da Com. Executiva da CGTP-IN

Tenho a profunda convicção, por aquilo que dele li e pelo muito que dele me contaram alguns dos seus amigos e pelo que fui lendo da sua vida e obra, que se em vez de ter sete anos já tivesse atingido, pelo menos, a juventude, eu seria um dos muitos milhares que, em Junho de 1948, acompanharam Bento Caraça à sua última morada. Envolto no mesmo silêncio constrangido de quem sente que se está a despedir do que de melhor tem dentro de si porque Bento Caraça iluminava e impulsionava, como só os grandes mestres sabem fazer, o que de mais válido cada um de nós tem - o de olhar os outros como sujeitos dos mesmos direitos que pretendemos usufruir. Naqueles tempos isso significava alimentar a coragem para lutar contra forças brutalmente repressivas, a determinação para abrir, de todas as formas possíveis, os caminhos da liberdade e da democracia, a generosidade para nos darmos as mãos na construção de belos projectos colectivos que não só enriquecem os que neles colaboram mas todos os que deles possam desfrutar, o empenhamento na construção de uma sociedade de justiça social, liberta de quaisquer opressões económicas, políticas, sociais ou culturais, uma sociedade dirigida pelos mais capazes e não pelos detentores do poder económico, como, de algum modo, Caraça o afirma numa das suas conferências. Todavia, creio que o que Bento de Jesus Caraça mais eficientemente semeava nos seus contemporâneos era a esperança. A esperança num tempo outro, diferente porque vivido sob os princípios de um humanismo que Caraça jamais se cansou de explicitar. Essa esperança era o que dava sentido à vida de todos os democratas e anti-fascistas que naquele dia de Junho ergueram uma abóbada de espesso silêncio na última "caminhada" de Bento de Jesus Caraça para que nada pudesse perturbar um estranho e contraditório sentimento - o de que a morte daquele Homem, que tão exemplarmente doou a sua vida aos outros, sem quaisquer restrições mesmo aquelas que lhe poderiam evitar que o ditador Salazar lhe assassinasse a luz do lugar onde tudo principiava, a sua Cátedra, dava um sentido maior às sua vidas e à sua luta cívica e política porque nenhum deles poderia fazer empalidecer a memória e o exemplo de Bento Caraça. O intelectual insigne e o infatigável divulgador da cultura que, em 1941, aquando do lançamento da Biblioteca Cosmos escreveu: "... Quando acabar a tarefa dos homens que descem das nuvens a despejar explosivos, começará outra tarefa - a dos homens que pacientemente, conscientemente, procurarão organizar-se de tal modo que não seja mais possível a obra destruidora daqueles. Então, com o estabelecimento de novas relações e de novas estruturas, o homem achar-se-á no centro da sociedade, numa posição diferente, com outros direitos, outras responsabilidades. É toda uma vida nova a construir dominada por um humanismo novo. Há, em suma, que dar ao homem uma visão optimista de si próprio; o homem desiludido e pessimista é um ser inerte sujeito a todas as renúncias, a todas as derrotas - e derrotas só existem aquelas que se aceitam.

Quando acima falamos num Humanismo novo, entendemos como um dos seus constituintes essenciais este elemento de valorização - que o homem, sentindo que a cultura é de todos, participe, por ela, no conjunto de valores colectivos que há-de levar à criação da cidade nova".

Estas palavras de Caraça definem claramente um espírito anti-belicista, um espírito em demanda de um Humanismo novo cujos princípios sustentem a criação de uma cidade nova, orientações ideológicas que uma nota, de 8 de Setembro de 1939, à sua conferência "A Cultura Integral do Indivíduo - Problema Central do Nosso Tempo", produzida em 25 de Maio de 1933, claramente corrobora: "Uma coisa me parece no entanto certa - esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos. E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do oriente, aquele longínquo oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo".

Era este homem de esperança e de perseverança, confiante na criação de uma cidade nova, numa Europa aquecida pelo sol do oriente, do oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo, porque aí se procedia à construção do socialismo, que iria para sempre descer à terra o que significava que o seu exemplo quotidiano de reflexão e acção para sempre desaparecera e por isso os mais sensíveis participantes do funeral terão com certeza sentido que uma fria e persistente amargura atravessou o redondo silêncio que em 25 de Junho de 1948 envolveu o bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. Uma amargura no entanto imbuída por um exaltante sentimento de confiança no futuro. Num futuro melhor, construído com as ferramentas que Caraça ajudou a fabricar.

Só um homem de qualidades invulgares pode fazer nascer sentimentos assim contraditórios - de tristeza pela sua ausência; de alegria pelo legado que nos ofertou, forte e reconfortante como um luzeiro na noite escura; de amargura pelo que deixou de produzir quando se encontrava na plenitude das suas capacidades; de confiança no futuro porque a sociedade pela qual Bento Caraça se bateu, nos campos da teoria e da prática, é uma sociedade que coloca os homens e as mulheres no centro das suas preocupações.

Descia naquela dia à terra um homem cujo pensamento foi inequivocamente influenciado pelos produtores da ideologia comunista, descia à terra um comunista que teve o alto mérito de congraçar em torno de si outros democratas e anti-fascistas. Acabe-se com especulações inúteis e concedamos todos a um cidadão com a integridade moral e intelectual de Bento Caraça a liberdade de ter escolhido o PCP para nas suas fileiras melhor pôr em prática o que pensou e escreveu.

Descia à terra um homem profundamente telúrico que, nascido em Vila Viçosa há um século, viu a luz do dia nos campos de Aldeias de Montoito que as circunstâncias históricas e sociais daquele tempo condenariam, em princípio, ao analfabetismo não fora a sua invulgar inteligência que lhe permitiu aprender a ler numa cartilha de um trabalhador rural e foi ainda capaz de suscitar o interesse pela sua educação à dona da herdade em que seus pais trabalhavam.

Dizia um filósofo espanhol que o homem nunca é sozinho, é ele e a sua circunstância. E como ela pesou na sensibilidade e inteligência do jovem Bento, que viria a terminar a instrução primária em Vila Viçosa, lugar de reis e príncipes, no ano em que vai ser implantada a República! Depois, é a sua vinda para Lisboa onde termina os estudos liceais e ingressa no Instituto Superior do Comércio, mais tarde designado por Instituto de Ciências Económicas e Financeiras que deu origem ao actual ISEG. Entre o fim do liceu e a sua nomeação para 2º Assistente, em 1919, quando ainda era estudante, teve Bento Caraça a oportunidade de assistir a momentos extremamente convulsos no percurso histórico da 1ª República como o foram o Sidonismo e a prática política de Sidónio Pais, a quem Fernando Pessoa chamou de "Presidente-Rei", e a instauração da monarquia do Norte, em Janeiro/Fevereiro de 1919, mais conhecida pelo Reino da Traulitânia tal o cortejo de violências contra as forças republicanas e democráticas. Este final do segundo decénio permite, em virtude das contradições sociais em que caíra a Primeira República, o levedar de organizações que levarão, em 1921, à constituição do PCP. Bento Caraça é ainda nomeado Assistente da sua Faculdade durante a República democrática mas a sua nomeação para Prof. Extraordinário, em 1927, e Prof. Catedrático, em 1929, já decorrem sob a ditadura militar que abrirá as portas ao Estado Novo e à ditadura fascista.

A superior inteligência de Bento Caraça permitiu-lhe ler de forma rigorosa as contradições da república burguesa e os perigos da ditadura militar e mais tarde a ignomínia de que se vestiu o regime fascista. Na esteira de R. Rolland, Bento Caraça jamais deixou de ligar o pensamento à acção com o objectivo de construir uma sociedade melhor. Por isso, em 1928, assume a Presidência do Conselho de Administração da Universidade Popular Portuguesa e nela se mantém até à sua morte. Mais tarde colabora na criação do Núcleo de Matemática, Física e Química, entre outros com Ruy Luís Gomes e António da Silveira. Em 1940 funda a Gazeta de Matemática com Aniceto Monteiro, Hugo Baptista Ribeiro e Zaluar Nunes, que teve uma vida atribulada, sob muitos aspectos, de acordo com o testemunho de José Gaspar Teixeira. Na área da economia impulsionou o lançamento da Revista de Economia entre outras com os felizmente ainda vivos Costa Leal e Ulpiano do Nascimento. Presidiu ainda à Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática.

Em 1941, como atrás referi, funda a Biblioteca Cosmos com o intuito de divulgar o conhecimento, em diversas áreas, de um modo acessível ao maior número de leitores, num trabalho infatigável com vista a "despertar a alma colectiva das massas".

A este trabalho de grande exigência científica e organizativa junta B. Caraça uma intervenção regular e diversificada não só em colóquios e seminários mas também nas revistas culturais. Deste modo as suas conferências perfilam-se, com igual importância, ao lado da sua obra incontornável intitulada "Os Conceitos Fundamentais da Matemática", onde os aprendizes do materialismo dialéctico podem encontrar uma magistral lição da sua aplicação.

No último ano da II Guerra Mundial, Bento Caraça participa em dois importantes movimentos - o Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista e o Movimento de Unidade Democrática de cuja Comissão Central foi Vice-Presidente. Em consequência da sua pertinaz actividade e luta pela instauração da liberdade e da democracia, a ditadura fascista demitiu, em Outubro de 1946, Bento Caraça do seu lugar de professor catedrático.

Mas nada quebra o ânimo deste homem afável e determinado e só a doença o faz diminuir a actividade nos dois últimos anos de vida.

Bento Caraça morreu com 47 anos e a sua morte prematura deixou um vazio profundo no campo da luta anti-fascista. Porém, a sua maior grandeza reside no seu pensamento, vasto e diversificado, que, não substituindo o homem e a sua acção, é ainda hoje um poderoso estímulo para todos nós que não permitimos que nos submetam aos ditames de um pensamento único e a uma globalização sem rosto humano que despreza os trabalhadores e enaltece, em exclusivo, as vias do lucro; nem tão pouco consentimos que aniquilem as culturas e os valores regionais e locais porque a planície alentejana, muitas vezes morada de silêncio e solidão, a singela modéstia de Aldeias de Montoito ou a granítica dureza das serranias beirãs, onde procurava melhoras para a sua doença, não impediram, antes pelo contrário, Bento de Jesus Caraça de perscrutar no particular a universalidade do homem. Por isso Caraça é um homem do seu tempo e um homem que transcendeu esse tempo.

Foi um clarão na noite fascista. Um exemplo para os seus camaradas e para todos que lutaram contra o fascismo em busca da liberdade, da democracia e de uma sociedade sem opressores e oprimidos. Por tal razão Bento de Jesus Caraça continua e continuará ao nosso lado, como diria José Gomes Ferreira. Mas este estar presente sendo ausente só os poetas o sabem cantar ou porventura o próprio Bento Caraça que, na opinião de José Gomes Ferreira, "viveu como se cumprisse um acto poético". Nanja eu.

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