Sancy O diamante do poder

15-11-2004
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Sancy O Diamante do Poder

Domingo, 14 de Novembro de 2004 %José Casquilho O Sancy é um diamante famoso - a sua trajectória ao longo da história ilustra alguns dos acontecimentos mais marcantes na Europa nos últimos 500 anos do milénio passado: a emergência da dominação dos Habsburgos, a perda de independência de Portugal, o fim dos Valois em França, a guerra civil em Inglaterra, a revolução francesa, o romantismo, e finalmente a dominação do capitalismo financeiro do século XX a que sucede um remate socialista. O Sancy é um diamante originário da Índia e pesa cerca de 55 quilates, tem uma forma oval/pera, dir-se-ia uma amêndoa, e está talhado em rosa dupla. Encontra-se na galeria de Apolo do museu do Louvre, em Paris. Alguns autores referem que o diamante pertenceu a Carlos o Temerário, Duque de Borgonha, filho de Filipe o Bom, da casa de Valois, e de Isabel de Portugal, única filha de D. João I. Carlos - considerado o último grande representante do espírito feudal - perdeu a vida na batalha de Nancy, em 1477, e, como consequência, o ducado de Borgonha veio a integrar-se no Sacro Império Romano através do casamento da filha, Maria de Borgonha, com Maximiliano da Austria, de quem virá a nascer Filipe I de Castela. Carlos levou o diamante para a batalha, e assim, o Sancy testemunhou o acontecimento que veio fazer emergir os Habsburgos para o primeiro plano das famílias reinantes da Europa. O diamante, recuperado como despojo do duque - no retrato de Carlos, pertença do Metropolitan Museum of Art, estará presumivelmente representado no peitoral direito - foi vendido por um soldado suíço a um clérigo que por sua vez o terá revendido a um negociante de Luzerna. Em 1495 o diamante foi adquirido por D. Manuel I, o Venturoso, rei de Portugal, o soberano mais rico da Europa do seu tempo e vértice da modernidade e dos novos mundos. E em Portugal o diamante permaneceu durante o resto da dinastia de Aviz. Num retrato datado de 1553, D. Joana de Habsburgo, irmã de Filipe II de Espanha, mãe de D. Sebastião, ostenta no toucado a cruz das princesas de Portugal e um pendente central onde a pedra do meio poderá ser, talvez, o diamante mais tarde chamado de Sancy. Passado um quarto de século, a 4 de Agosto de 1578, dá-se a catástrofe da batalha de Alcácer Quibir. Morre D. Sebastião com 24 anos, o Desejado, sem descendência. Sucede-se o governo breve do tio-avô, o cardeal-rei D. Henrique, muito ocupado a resgatar prisioneiros do reino de Fez e a negociar a sucessão do trono. D. António, prior do Crato - filho bastardo do infante D. Luís, duque de Beja, irmão de D. João III - apoiado pelo povo e por alguma nobreza, foi aclamado rei de Portugal, mas abandona Lisboa a seguir à batalha de Alcântara, em 1580. Venceram as tropas de Filipe II que assim conquistou a coroa de Portugal: durante 60 anos ficará nas mãos dos Habsburgos de Espanha. D. António estabelece governo no exílio, a parte final passada em França, onde empenhou e depois vendeu o diamante a Nicholas de Sancy, embaixador da França na Turquia, no reinado de Henrique III, o último rei da dinastia dos Valois. Sabe-se que já anteriormente D. António tinha empenhado o diamante junto do conde de Leicester. Foi em Inglaterra, cerca de 1582, mas conseguiu reavê-lo. Existe na Torre do Tombo uma carta de Sebastiani Pardin dirigida a D. António, datada de 1588, onde se dá conta dos termos finais da transacção de um diamante com as armas do rei de Portugal. Assim, o diamante era um símbolo maior de Portugal e da casa de Aviz - admite-se que constitua o corpo central da jóia com a cruz de Cristo que D. Sebastião transporta: por debaixo da cruz vê-se que está um diamante em forma de pera. Sabe-se que Henrique III usava o diamante num adereço do chapéu. D. António virá a falecer pobre, em Paris, no ano de 1595. Com a morte de Henrique III, em 1589, sucede-lhe Henrique IV, que reinava em Navarra, e que se torna o primeiro rei de França da dinastia de Bourbon. Nesse tempo a França esteve envolvida em guerras prolongadas entre católicos e protestantes e o diamante foi sucessivamente empenhado para angariar fundos para pagar tropas. Até se conta a história de um homem que transportava o diamante quando foi assaltado e morto; tendo-se ordenado a autópsia assim se volta a descobrir o diamante dentro do corpo. Em 1604, o senhor de Sancy, entretanto feito superintendente de finanças do reino, vende o diamante a Jaime I de Inglaterra. O rei usava-o também num ornamento de chapéu. O diamante era então ainda uma pedra polida numa forma que faz lembrar as quinas do escudo de Portugal. No inventário das Jóias da Coroa de Inglaterra de 1605 refere-se "one dyamonde ... bought of Sauncey". É nesta altura que o diamante ganha o nome que ainda hoje o designa. Depois o Sancy fica integrado, com o talhe que hoje se conhece em rosa dupla, executado na primeira metade do século XVII - talvez em 1605 -, como pendente numa jóia chamada o Espelho da Grã-Bretanha, simbolizando o desejo de agrupar naquela designação os territórios de Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda, cada um representado por uma pedra, sob a égide dos Stuart. O seu filho, Carlos I, enfrenta a revolta puritana e a guerra civil em Inglaterra e envia a rainha Henriqueta Maria para a Holanda e França para vender as jóias da coroa e conseguir fundos para pagar armas e tropas, em 1644. O diamante deixa Inglaterra pouco tempo depois de ter sido conseguido um marco fundamental na luta pelos direitos humanos: a aprovação pelo parlamento da Petição de Direitos que se referia à Magna Carta, e que veio marcar a emergência do Estado moderno. É assim que o Sancy entra, em 1657, na posse do cardeal Mazarino, primeiro-ministro de Luís XIV, ficando designado como o Primeiro Mazarino - o maior diamante da sua colecção. Por sua morte, em 1661, o cardeal deixa os diamantes à coroa. Luís XIV, o rei-sol, herda o Sancy, durante uns tempos o maior diamante da França. O Sancy participa então na simbólica do Absolutismo e do Barroco. Alguns anos mais tarde o Sancy vai formar a pétala superior da flor-de-lis que encima a coroa de Luís XV; o diamante frontal da coroa é o Regente de França, um brilhante/almofada de 150 quilates, entretanto adquirido. Luís XV é coroado em 1722. O Sancy, depois de indiciar o poder da casa de Borgonha, da casa de Aviz, dos Stuart, vem agora coroar o poder da casa de Bourbon. A rainha de França Maria Leczinska, mulher de Luís XV, também usa o diamante, como pendente, no colar - é o tempo da soberania das Luzes. E nas jóias da coroa de França o diamante permanece, até que acontece a Revolução Francesa em 1789, após anos de penúria e de fome; as jóias da coroa são consideradas um bem público e guardadas num edifício chamado Garde Meuble. No inventário das jóias da coroa, efectuado em 1791, o Sancy funcionou como padrão, avaliado em um milhão de libras (francos-ouro); era o terceiro diamante mais valioso de França de acordo com esse inventário, seguindo-se ao Regente (12 milhões) e ao diamante azul (3 milhões). Em 1795 o Sancy foi penhorado pelo Directório para obter um empréstimo volumoso, avaliado num milhão de francos, em cavalos e armas, junto do Marquês de Aranda em Espanha. Mais uma vez o Sancy abandona um país, na ressaca de uma convulsão social, onde acontecem os marcos notáveis da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição. Ao marquês de Aranda sucede no governo de Espanha Manuel Godoy, antigo guarda do palácio e favorito da rainha Maria Luísa de Parma, casada com Carlos IV de Bourbon. Godoy, feito duque de Alcudia e depois príncipe da paz, possuiu o diamante; trata-se presumivelmente da pedra que forma o corpo central do Tosão de Ouro, nesta miniatura. O Sancy é depois vendido em 1828 a um príncipe russo, que o compra por £35000 e por sua vez o revende em 1865 por $100000; em 1867 o diamante está nominalmente à venda por um milhão de francos, mas realmente vai parar às mãos de um mercador rico de Bombaim pela quantia de £20000. Sir Jamsetjee ostenta o diamante pendurado no lado direito da capa. O Sancy indicia agora um potentado comercial do império Britânico. O comerciante de Bombaim revende-o, pouco depois, ao Maharaja de Patiala. Durante umas décadas o Sancy regressa à sua terra de origem, de novo como símbolo do poder masculino. Diz-se que em 1905 é adquirido por um americano depois naturalizado britânico e agraciado com o título de visconde de Astor. O Sancy acompanha a nobilitação dos milionários americanos - a fortuna de William Astor estava avaliada, na época, em 80 milhões de dólares. A viscondessa de Astor, a primeira mulher a sentar-se na Câmara dos Comuns do parlamento britânico, usa o Sancy como pedra central da sua tiara desde 1922, em ocasiões de Estado. O diamante permanece na família Astor até 1976, quando é vendido, com negociações secretas, diz-se, por um milhão de dólares - mais uma vez o Sancy estabelece um padrão, agora na nova moeda dominante - ao Banco de França e daí passou ao museu do Louvre , exposto desde 1978. A derradeira etapa corresponde à socialização do Sancy - finalmente está à vista de todos. Nesta sua última viagem, o diamante foi recebido em França com honras de Estado. Resumindo esta longa história: o Sancy é um objecto de valor que percorre uma trajectória muito longa, conhecida em mais de cinco séculos. Sendo objecto de desejo e índice de poder, a posse do diamante está sujeita a relações de forças (militares, financeiras) e constata-se que permanece num sítio tanto mais tempo quanto esse atractor é forte e estável; em regra, às tantas, acontece uma catástrofe para o poder detentor que se traduz numa dissipação de forças e o Sancy transita para um novo poder, mais forte e mais estável no contexto ou na vizinhança, e assim sucessivamente. É assim que desde a Índia, de onde terá vindo, acaba por ser a ilusão de Carlos o Temerário, que o usava como símbolo de invencibilidade ( "diamante" vem do termo grego adamas, que significa invencível). Daquele que é considerado por alguns o último representante do espírito feudal, transita para o rei de Portugal, o Venturoso, símbolo da modernidade. E aí permanece quase um século, ao longo da dinastia de Aviz, um atractor poderoso no seu tempo. Até que sobrevém a catástrofe de Alcácer Quibir, o abismo para onde um jovem e ambicioso rei, aclamado aos três anos, coroado aos catorze - o Desejado, e fermoso, fruto de sucessivos casamentos entre primos-irmãos Aviz-Habsburgo - arrasta o país. Enquanto enfrenta um inimigo estimado na proporção de 20 para 1, o rei de olhos azuis e boca de boneca chinesa, avançou obstinado e lutou até ao fim: ficou-lhe atribuído o dito "morrer sim, mas devagar". O Sancy era então o diamante com as armas do rei de Portugal. Portugal perde a independência. O Sancy sai do país. Após um périplo rápido pela França, entre as mãos do último dos Valois e o primeiro dos Bourbons - um atractor instável durante as prolongadas guerras religiosas - o Sancy muda de mãos para a coroa inglesa, para o sucessor de Isabel I, que se tinha declarado casada com Inglaterra - a rainha, a última dos Tudor, morre sem descendência. O diamante aí permanece durante 40 anos, o tempo que demorou, mais coisa menos coisa, a derrocada desse poder, que culminou na guerra civil e na decapitação do rei Carlos I. O diamante abandona aquelas terras. E entra em França por volta de 1645, primeiro para um duque e depois para as mãos do poderoso Mazarino e dele para Luís XIV, o rei-sol: l'Etat c'est moi. Por lá permanece a encimar a coroa dos Bourbons durante o triunfo do Barroco e das Luzes. Até que, século e meio depois da chegada, na ressaca da Revolução Francesa, muda novamente de mãos, para os primos, os Bourbons de Espanha, através de Godoy, onde permanece pouco tempo. Passa por um príncipe russo, pelos joalheiros Bapst, por um mercador Hindú e pelo Maharaja de Patiala - regressa à terra de origem durante umas décadas, agora sob a égide dos circuitos do império britânico. E, na senda do império anglófono, permanecerá mais de setenta anos, nas mãos dos milionários americanos naturalizados britânicos e feitos viscondes de Astor. Na última etapa, o Sancy deixa de ser um bem privado e passa a ser um bem público da França, que se revela o actual atractor, e o ponto de partida da história conhecida aqui narrada. Afinal, recorde-se que a primeira notícia que temos vinha do ducado de Borgonha. As dimensões reais do diamante são de cerca de 26 mm de comprimento por 21 mm de largura e 14 mm de espessura. No entanto, com alguma imaginação, ainda podemos ver indícios dos traços maiores do escudo de Portugal: o pentágono central é o remanescente da marca das quinas. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Domingo, 14 de Novembro de 2004 %José Casquilho O Sancy é um diamante famoso - a sua trajectória ao longo da história ilustra alguns dos acontecimentos mais marcantes na Europa nos últimos 500 anos do milénio passado: a emergência da dominação dos Habsburgos, a perda de independência de Portugal, o fim dos Valois em França, a guerra civil em Inglaterra, a revolução francesa, o romantismo, e finalmente a dominação do capitalismo financeiro do século XX a que sucede um remate socialista. O Sancy é um diamante originário da Índia e pesa cerca de 55 quilates, tem uma forma oval/pera, dir-se-ia uma amêndoa, e está talhado em rosa dupla. Encontra-se na galeria de Apolo do museu do Louvre, em Paris. Alguns autores referem que o diamante pertenceu a Carlos o Temerário, Duque de Borgonha, filho de Filipe o Bom, da casa de Valois, e de Isabel de Portugal, única filha de D. João I. Carlos - considerado o último grande representante do espírito feudal - perdeu a vida na batalha de Nancy, em 1477, e, como consequência, o ducado de Borgonha veio a integrar-se no Sacro Império Romano através do casamento da filha, Maria de Borgonha, com Maximiliano da Austria, de quem virá a nascer Filipe I de Castela. Carlos levou o diamante para a batalha, e assim, o Sancy testemunhou o acontecimento que veio fazer emergir os Habsburgos para o primeiro plano das famílias reinantes da Europa. O diamante, recuperado como despojo do duque - no retrato de Carlos, pertença do Metropolitan Museum of Art, estará presumivelmente representado no peitoral direito - foi vendido por um soldado suíço a um clérigo que por sua vez o terá revendido a um negociante de Luzerna. Em 1495 o diamante foi adquirido por D. Manuel I, o Venturoso, rei de Portugal, o soberano mais rico da Europa do seu tempo e vértice da modernidade e dos novos mundos. E em Portugal o diamante permaneceu durante o resto da dinastia de Aviz. Num retrato datado de 1553, D. Joana de Habsburgo, irmã de Filipe II de Espanha, mãe de D. Sebastião, ostenta no toucado a cruz das princesas de Portugal e um pendente central onde a pedra do meio poderá ser, talvez, o diamante mais tarde chamado de Sancy. Passado um quarto de século, a 4 de Agosto de 1578, dá-se a catástrofe da batalha de Alcácer Quibir. Morre D. Sebastião com 24 anos, o Desejado, sem descendência. Sucede-se o governo breve do tio-avô, o cardeal-rei D. Henrique, muito ocupado a resgatar prisioneiros do reino de Fez e a negociar a sucessão do trono. D. António, prior do Crato - filho bastardo do infante D. Luís, duque de Beja, irmão de D. João III - apoiado pelo povo e por alguma nobreza, foi aclamado rei de Portugal, mas abandona Lisboa a seguir à batalha de Alcântara, em 1580. Venceram as tropas de Filipe II que assim conquistou a coroa de Portugal: durante 60 anos ficará nas mãos dos Habsburgos de Espanha. D. António estabelece governo no exílio, a parte final passada em França, onde empenhou e depois vendeu o diamante a Nicholas de Sancy, embaixador da França na Turquia, no reinado de Henrique III, o último rei da dinastia dos Valois. Sabe-se que já anteriormente D. António tinha empenhado o diamante junto do conde de Leicester. Foi em Inglaterra, cerca de 1582, mas conseguiu reavê-lo. Existe na Torre do Tombo uma carta de Sebastiani Pardin dirigida a D. António, datada de 1588, onde se dá conta dos termos finais da transacção de um diamante com as armas do rei de Portugal. Assim, o diamante era um símbolo maior de Portugal e da casa de Aviz - admite-se que constitua o corpo central da jóia com a cruz de Cristo que D. Sebastião transporta: por debaixo da cruz vê-se que está um diamante em forma de pera. Sabe-se que Henrique III usava o diamante num adereço do chapéu. D. António virá a falecer pobre, em Paris, no ano de 1595. Com a morte de Henrique III, em 1589, sucede-lhe Henrique IV, que reinava em Navarra, e que se torna o primeiro rei de França da dinastia de Bourbon. Nesse tempo a França esteve envolvida em guerras prolongadas entre católicos e protestantes e o diamante foi sucessivamente empenhado para angariar fundos para pagar tropas. Até se conta a história de um homem que transportava o diamante quando foi assaltado e morto; tendo-se ordenado a autópsia assim se volta a descobrir o diamante dentro do corpo. Em 1604, o senhor de Sancy, entretanto feito superintendente de finanças do reino, vende o diamante a Jaime I de Inglaterra. O rei usava-o também num ornamento de chapéu. O diamante era então ainda uma pedra polida numa forma que faz lembrar as quinas do escudo de Portugal. No inventário das Jóias da Coroa de Inglaterra de 1605 refere-se "one dyamonde ... bought of Sauncey". É nesta altura que o diamante ganha o nome que ainda hoje o designa. Depois o Sancy fica integrado, com o talhe que hoje se conhece em rosa dupla, executado na primeira metade do século XVII - talvez em 1605 -, como pendente numa jóia chamada o Espelho da Grã-Bretanha, simbolizando o desejo de agrupar naquela designação os territórios de Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda, cada um representado por uma pedra, sob a égide dos Stuart. O seu filho, Carlos I, enfrenta a revolta puritana e a guerra civil em Inglaterra e envia a rainha Henriqueta Maria para a Holanda e França para vender as jóias da coroa e conseguir fundos para pagar armas e tropas, em 1644. O diamante deixa Inglaterra pouco tempo depois de ter sido conseguido um marco fundamental na luta pelos direitos humanos: a aprovação pelo parlamento da Petição de Direitos que se referia à Magna Carta, e que veio marcar a emergência do Estado moderno. É assim que o Sancy entra, em 1657, na posse do cardeal Mazarino, primeiro-ministro de Luís XIV, ficando designado como o Primeiro Mazarino - o maior diamante da sua colecção. Por sua morte, em 1661, o cardeal deixa os diamantes à coroa. Luís XIV, o rei-sol, herda o Sancy, durante uns tempos o maior diamante da França. O Sancy participa então na simbólica do Absolutismo e do Barroco. Alguns anos mais tarde o Sancy vai formar a pétala superior da flor-de-lis que encima a coroa de Luís XV; o diamante frontal da coroa é o Regente de França, um brilhante/almofada de 150 quilates, entretanto adquirido. Luís XV é coroado em 1722. O Sancy, depois de indiciar o poder da casa de Borgonha, da casa de Aviz, dos Stuart, vem agora coroar o poder da casa de Bourbon. A rainha de França Maria Leczinska, mulher de Luís XV, também usa o diamante, como pendente, no colar - é o tempo da soberania das Luzes. E nas jóias da coroa de França o diamante permanece, até que acontece a Revolução Francesa em 1789, após anos de penúria e de fome; as jóias da coroa são consideradas um bem público e guardadas num edifício chamado Garde Meuble. No inventário das jóias da coroa, efectuado em 1791, o Sancy funcionou como padrão, avaliado em um milhão de libras (francos-ouro); era o terceiro diamante mais valioso de França de acordo com esse inventário, seguindo-se ao Regente (12 milhões) e ao diamante azul (3 milhões). Em 1795 o Sancy foi penhorado pelo Directório para obter um empréstimo volumoso, avaliado num milhão de francos, em cavalos e armas, junto do Marquês de Aranda em Espanha. Mais uma vez o Sancy abandona um país, na ressaca de uma convulsão social, onde acontecem os marcos notáveis da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição. Ao marquês de Aranda sucede no governo de Espanha Manuel Godoy, antigo guarda do palácio e favorito da rainha Maria Luísa de Parma, casada com Carlos IV de Bourbon. Godoy, feito duque de Alcudia e depois príncipe da paz, possuiu o diamante; trata-se presumivelmente da pedra que forma o corpo central do Tosão de Ouro, nesta miniatura. O Sancy é depois vendido em 1828 a um príncipe russo, que o compra por £35000 e por sua vez o revende em 1865 por $100000; em 1867 o diamante está nominalmente à venda por um milhão de francos, mas realmente vai parar às mãos de um mercador rico de Bombaim pela quantia de £20000. Sir Jamsetjee ostenta o diamante pendurado no lado direito da capa. O Sancy indicia agora um potentado comercial do império Britânico. O comerciante de Bombaim revende-o, pouco depois, ao Maharaja de Patiala. Durante umas décadas o Sancy regressa à sua terra de origem, de novo como símbolo do poder masculino. Diz-se que em 1905 é adquirido por um americano depois naturalizado britânico e agraciado com o título de visconde de Astor. O Sancy acompanha a nobilitação dos milionários americanos - a fortuna de William Astor estava avaliada, na época, em 80 milhões de dólares. A viscondessa de Astor, a primeira mulher a sentar-se na Câmara dos Comuns do parlamento britânico, usa o Sancy como pedra central da sua tiara desde 1922, em ocasiões de Estado. O diamante permanece na família Astor até 1976, quando é vendido, com negociações secretas, diz-se, por um milhão de dólares - mais uma vez o Sancy estabelece um padrão, agora na nova moeda dominante - ao Banco de França e daí passou ao museu do Louvre , exposto desde 1978. A derradeira etapa corresponde à socialização do Sancy - finalmente está à vista de todos. Nesta sua última viagem, o diamante foi recebido em França com honras de Estado. Resumindo esta longa história: o Sancy é um objecto de valor que percorre uma trajectória muito longa, conhecida em mais de cinco séculos. Sendo objecto de desejo e índice de poder, a posse do diamante está sujeita a relações de forças (militares, financeiras) e constata-se que permanece num sítio tanto mais tempo quanto esse atractor é forte e estável; em regra, às tantas, acontece uma catástrofe para o poder detentor que se traduz numa dissipação de forças e o Sancy transita para um novo poder, mais forte e mais estável no contexto ou na vizinhança, e assim sucessivamente. É assim que desde a Índia, de onde terá vindo, acaba por ser a ilusão de Carlos o Temerário, que o usava como símbolo de invencibilidade ( "diamante" vem do termo grego adamas, que significa invencível). Daquele que é considerado por alguns o último representante do espírito feudal, transita para o rei de Portugal, o Venturoso, símbolo da modernidade. E aí permanece quase um século, ao longo da dinastia de Aviz, um atractor poderoso no seu tempo. Até que sobrevém a catástrofe de Alcácer Quibir, o abismo para onde um jovem e ambicioso rei, aclamado aos três anos, coroado aos catorze - o Desejado, e fermoso, fruto de sucessivos casamentos entre primos-irmãos Aviz-Habsburgo - arrasta o país. Enquanto enfrenta um inimigo estimado na proporção de 20 para 1, o rei de olhos azuis e boca de boneca chinesa, avançou obstinado e lutou até ao fim: ficou-lhe atribuído o dito "morrer sim, mas devagar". O Sancy era então o diamante com as armas do rei de Portugal. Portugal perde a independência. O Sancy sai do país. Após um périplo rápido pela França, entre as mãos do último dos Valois e o primeiro dos Bourbons - um atractor instável durante as prolongadas guerras religiosas - o Sancy muda de mãos para a coroa inglesa, para o sucessor de Isabel I, que se tinha declarado casada com Inglaterra - a rainha, a última dos Tudor, morre sem descendência. O diamante aí permanece durante 40 anos, o tempo que demorou, mais coisa menos coisa, a derrocada desse poder, que culminou na guerra civil e na decapitação do rei Carlos I. O diamante abandona aquelas terras. E entra em França por volta de 1645, primeiro para um duque e depois para as mãos do poderoso Mazarino e dele para Luís XIV, o rei-sol: l'Etat c'est moi. Por lá permanece a encimar a coroa dos Bourbons durante o triunfo do Barroco e das Luzes. Até que, século e meio depois da chegada, na ressaca da Revolução Francesa, muda novamente de mãos, para os primos, os Bourbons de Espanha, através de Godoy, onde permanece pouco tempo. Passa por um príncipe russo, pelos joalheiros Bapst, por um mercador Hindú e pelo Maharaja de Patiala - regressa à terra de origem durante umas décadas, agora sob a égide dos circuitos do império britânico. E, na senda do império anglófono, permanecerá mais de setenta anos, nas mãos dos milionários americanos naturalizados britânicos e feitos viscondes de Astor. Na última etapa, o Sancy deixa de ser um bem privado e passa a ser um bem público da França, que se revela o actual atractor, e o ponto de partida da história conhecida aqui narrada. Afinal, recorde-se que a primeira notícia que temos vinha do ducado de Borgonha. As dimensões reais do diamante são de cerca de 26 mm de comprimento por 21 mm de largura e 14 mm de espessura. No entanto, com alguma imaginação, ainda podemos ver indícios dos traços maiores do escudo de Portugal: o pentágono central é o remanescente da marca das quinas. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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