Conversa com vista para...

23-06-2004
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Conversa com Vista Para...

Por JORGE SAMPAIO

Domingo, 06 de Junho de 2004 Bocadinho de África A porta de um santuário, um enorme vaso de cerâmica, máscaras de madeira, esculturas e adornos de barcos, da Costa do Marfim, do Burkina Faso ou do Gabão. A arte da África Ocidental está na "Pó di terra". Pó di terra quer dizer, em criolo, um pouco de terra de África e fica na Rua D. Pedro V, 62, Lisboa. J.H Cozidos à mão (FOI POR MAIL) Rosa Pomar retalha os tecidos, alinhava os bocados e, depois, transforma-os em bonecos que coze à mão. São coloridos e muito mais divertidos do que os bonecos tradicionais-todos iguais destes tempos. Custam entre 30 e 60 (de acordo com os materiais usados) e vendem-se para todo o mundo no site www.rosapomar.com. No Museu Berardo, em Sintra, e na Rua do Norte 40, em Lisboa, também há. %Maria João Seixas Ir conversar com o Presidente da República e não querer que o lado institucional se esgueirasse para o interior das questões, para delas tomar conta, deu-me algum nervosismo. Ao atravessar as salas do palácio, ainda consegui que o olhar espreitasse as primeiras e fabulosas "Cenas da Virgem", de Paula Rego, para, em segredo, lhes pedir socorro. Alinhadas na capelinha de Belém, de porta em boa hora deixada aberta, as telas não se fizeram rogadas, perceberam a minha aflição e, achei eu, concederam-me a bênção. Mais tranquila fiquei quando, já no pequeno escritório onde o Presidente me recebeu, o ouvi dizer, com aquele ar desarmante conhecido de nós todos, que também achava não ser óbvio, nem fácil, expor-se ao desafio desta "vista para". A conversa acabou por ser uma bela viagem pelo tempo, sem nada de nostálgico, temperada apenas por uma memória recheada de momentos, tão vivos e tão vividos, que só podem contribuir para soprar, sobre o presente e o futuro, ventos mais enérgicos e inspiradores. Conheci-o nas lides associativas, no ano que se seguiu ao da crise académica de 62, era eu caloira de Direito. Jorge Sampaio, o "Dr. Sampaio", tinha já o prestígio dos líderes, não se dando a grandes intimidades com novatos e não-novatos, desde que não fizessem parte do círculo mais apertado dos "seus". Sempre admirei nele o modo como, sem endeusar as virtudes do diálogo e da confrontação de ideias, praticava ambos, em momentos de risco e em clima de grande tensão, com um sentido de temperança raro, simultaneamente firme e cortês. Essa temperança, ou fleuma, como alguns preferem, nunca o afastava das razões e dos objectivos principais que nos levavam, enquanto estudantes (que ele, entretanto, deixara de ser), a estar juntos e com vontade de intervir na cena pública. Para a mudar. Sei-me testemunha privilegiada de quatro décadas do percurso de um homem a quem o país por duas vezes concedeu o crédito maior na hierarquia do Estado, cuja exemplaridade mais relevante se situa na dimensão ética da sua fidelidade, constante, aos valores da justiça e da liberdade. O colorido mais vibrante desta fidelidade é nele trabalhado por uma matéria, preciosa entre todas, que é uma espécie de optimismo, persistente e sem nada de vão, nas reais qualidades da comunidade a que pertence, de sua graça - Portugal. P - Senhor Presidente, diga-me quem é. R - Acho que essa é a pergunta mais difícil de todas, até porque somos um pouco nós e, ao mesmo tempo, somos também o reflexo que os outros têm de nós. Em qualquer caso, sempre se poderá dizer que sou um inconformista, inquieto, muito exigente. Às vezes as pessoas dizem "lá vai ele com aquela cara, parece que leva o país às costas", não é nada disso, sinto é que estou, sempre, um pouco em défice relativamente àquilo que deveria, porventura, poder fazer. O que dá uma grande exigência. Tenho tido a sorte e o privilégio de canalizar algumas das minhas energias (que, confesso, têm sido muitas) para aquilo que hoje chamamos o serviço à comunidade e que outros chamarão de maneiras menos nobres. Isso tem ocupado grande parte da minha vida e já obscureceu a vida profissional, que foi intensa. Continuo tão inquieto como dantes, com pena de não poder dizer algumas coisas que, um dia mais tarde, provavelmente direi, mas hoje acho que não devo, ainda, fazê-lo. Para além deste ar austero e preocupado, que me é natural, tenho outro lado, mais divertido e mais desconhecido, que deixo para os meus amigos e para a dispersão dos meus gostos. Essa dispersão é avassaladora, porque adoro música - nada melhor para mim do que assistir ao ensaio de um concerto, não tanto já a execução no dia do espectáculo, mas o ensaio, com as "nuances" da aprendizagem -, gosto de touradas - o que é muito criticado, não fiz nada que me levasse a gostar e até é um pouco contraditório com a minha personalidade -, gosto imenso de futebol, de ver e de estudar futebol - porquê, não sei -, gosto imenso de pintura, de que não percebo o que gostaria, e é sempre com grande interesse e alegria que ouço o que os artistas plásticos me dizem das suas obras, preferencialmente fora das "vernisages". Procuro sempre estar aberto ao que se passa no meu tempo e ao que poderá acontecer no tempo que há-de seguir-se e não nego que tenho preocupações muito pesadas (apesar de ser pessoa de um optimismo permanente, de um optimismo que é até mais um assumir de que é preciso a vontade para transformar, para melhorar) e que tenho um grande sentido da injustiça que existe e dos enormes contrastes sociais que há em Portugal, de uma ponta à outra do país. Sempre gostei de ser português e dos portugueses, mas hoje gosto ainda mais. Acho, quando falo com as pessoas, que há qualquer coisa dentro dos portugueses que, lentamente, consegue tomar expressão e sair cá para fora de um modo franco e lúcido que, antes, talvez eu não soubesse que assim era. Confesso ainda que fui um europeu antes de tempo, tive a sorte de ter essa dimensão desde cedo, dimensão que os meus pais sempre me proporcionaram, fazendo de mim uma pessoa aberta ao mundo. P - Tem nítida consciência de que o berço onde nasceu e a educação recebida dos seus pais foram e são a base, bem sedimentada, que serviu de orientação para o seu percurso de vida, para as opções que fez, para o modo como as assumiu? R - Absolutamente. Lembro-me, por exemplo, como se fosse hoje, do primeiro cartaz político que vi, para as eleições presidenciais, creio que de 1951, em que o almirante Quintão Meireles se apresentou pela oposição. Ia com o meu pai, em Sintra, e havia uns cartazes que diziam, sobre o candidato do regime: este faz mais estradas, faz mais isto e aquilo...; este promete ainda melhor nesta e naquela área... Foi a minha primeira lição política prática, com o meu pai a explicar-me, perante aqueles cartazes, o que é que tudo aquilo quereria significar. Tive ainda a sorte de ter uma família muito cosmopolita, o que ajudou bastante naquela altura. A minha mãe tinha feito o liceu em Inglaterra, tinha as suas amigas estrangeiras, ensinou-me inglês desde pequeno. O meu pai fez parte da sua formação lá fora e eu estive nos Estados Unidos da América (EUA) com oito anos, na escola primária americana, onde também frequentei o Conservatório em estudos de piano. Fui muitas vezes com a escola (porque os estudos de música obrigavam a uma participação no coro) assistir àquelas espantosas aulas para crianças que o Bernstein dava. Só anos mais tarde (foi preciso a minha mãe lembrar-mo) é que soube quem era aquele senhor que estava no palco do teatro de Baltimore a conduzir aquela grande orquestra, a ensinar-nos a cantar com um termómetro ao lado, para tirar a temperatura das nossas vozes e a ensinar-nos música, a ouvir música. A nossa casa, além de cosmopolita, era uma casa democrática. O meu pai, sendo um homem de ciência, era uma pessoa muito envolvida no quotidiano e, talvez por isso, tenha derivado de uma forma muito intensa para a saúde pública. A minha mãe era uma espécie de sufragista democrática, talvez menos elaborada, mas muito fiel aos seus princípios e sempre em contraste com as suas amigas, que, obviamente, tinham outras convicções e eram de outro tipo de formação. Esta atmosfera foi contínua, foi constante. Os meus pais foram muito marcantes, porque foram instituidores não só de múltiplas e sólidas referências, como também de uma liberdade vasta. P - Até chegar ao liceu? R - Até aí, claro, e mesmo depois. Nunca estudei em colégios e guardo do ensino público recordações extraordinárias. Como vivíamos em Sintra, acabei por vir fazer o liceu para casa da minha avó, que era em Campo de Ourique. Tenho uma grande estima pelos cafés daquele bairro, os meus primeiros cafés, que ainda lá estão, e pelos amigos com quem me encontrava por ali. O Pedro Nunes era um liceu de um tipo completamente diferente do Passos Manuel, para onde era necessário mudar, se se queria ir para Direito. Tenho melhores recordações do segundo confesso, do ponto de vista da abertura e das relações de convivialidade, mas mantenho amigos que vêm ainda do Pedro Nunes. Caracterizo-me, aliás, por ter um grupo de amigos que vêm de há mais de 40 nos. Há muitos novos, felizmente, mas há entre nós uma solidariedade disfarçada, a que mais tarde se veio a chamar a "Máfia de 62" - o que me pareceu sempre um despropósito imenso! Este grupo de amigos era, de facto, muito íntimo e, simultaneamente, muito cerimonioso. O Nuno Brederode dos Santos é que diz: "Nós continuamos a ser amigos como poucos, porque fazemos cerimónia, fazemos alguma cerimónia uns com os outros." O que é verdade e é magnífico. O liceu Passos Manuel foi também o meu primeiro contacto com o Chiado - subia-se a Calçada do Combro, ia-se às livrarias ver e folhear os livros... e, por falta de dinheiro, era-se tentado a levar discretamente para casa um ou outro. Confesso que nunca fui capaz de exercer essa modalidade! Foram tempos magníficos e tive a sorte de encontrar grandes figuras como professores - para além de Figanier (em Francês), de Silva Gomes (em Português), Palma Fernandes (em Matemática, disciplina em que me ajudou a sobreviver) e de outros. Houve três grandes personalidades no Passos Manuel que foram marcantes para a minha formação: Garcia Pereira, um notável professor de Alemão, pai do Garcia Pereira que todos conhecemos, e dois grandes historiadores, qualquer que seja a maneira como olhamos para a História, José Hermano Saraiva e Joel Serrão. O feudalismo dado por José Hermano Saraiva, estávamos em 1954, era qualquer coisa de fantástico! Ainda há pouco tempo, na Batalha, o ouvi fazer uma espantosa homenagem ao Soldado Desconhecido, na cerimónia em que participei. Com o mesmo entusiasmo e vigor de há 50 anos! Estas são grandes recordações que foram sempre combinadas com sólidas amizades até à universidade, onde os pólos de atracção começaram a dispersar-se. Mas muitas dessas amizades duram desde aí, com casos paradigmáticos como, por exemplo, o do Miguel Galvão Telles. P - Considera que o cosmopolitismo familiar de que fala e até a estadia, em criança, nos EUA terão contribuído para reconhecer que a realidade "sufocante" do país, nesses anos de chumbo das décadas de 50 e 60, lhe era insuportável e exigia que se batesse para ajudar a mudá-la? R - Não tenho consciência de que tenha começado assim tão cedo. O meu pai, como já referi, era um democrata, toda a gente o sabia. Um dia, no primeiro ou segundo ano do liceu, fui ter com ele e disse-lhe que queria ir para o curso de chefe de quina da Mocidade Portuguesa. Olhou para mim e disse: "Não vais gostar, mas não te proíbo de ir." Fui e chumbei. Antes disso, também me lembro de algumas situações vividas durante a Segunda Grande Guerra e logo a seguir ao seu fim, celebrado com grande vibração em casa dos meus pais - nos comboios da linha de Sintra havia, nesse tempo, lugares quase marcados, com uma divisão nítida: de um lado os pró-Aliados e do outro, os pró-Eixo, divisão cujo significado o meu pai me ia explicando. São pequenos exemplos como estes que marcaram o meu crescimento, mas a faculdade é que foi decisiva para a chamada "awareness" (tomada de consciência) da situação política portuguesa, embora as minhas leituras fossem já um pouco estranhas. No primeiro e segundo ano do curso de Direito, recordo-me como se fosse hoje, lia com voracidade os mais diversos autores e revistas - de Evelyn Waugh a Bernard Shaw, dos "Cahiers du Cinéma" à "Esprit", mas foi lentamente que comecei a perceber que o que se vivia em Portugal era particularmente difícil e sufocante. O papel das associações académicas foi, naquele tempo, para a minha formação e para a de muitos, insubstituível. P - A aproximação ao mundo associativo da época foi imediata à sua entrada na faculdade ou deu-se lentamente, como referiu ter sido a tomada de consciência da situação política portuguesa? R - Foi-se dando. Chegado à faculdade, tive logo um embate forte, com as eleições para presidente da Associação Académica de Direito. Quem eram os candidatos? Serra Lopes e Miguel Quina, ambos finalistas, que muito impressionaram, com as suas discussões acesas, um caloiro como eu. Serra Lopes ganhou por um ou dois votos e eu segui aquele combate com a maior atenção. Logo no primeiro e segundo ano fiz parte de uma tertúlia intelectual com colegas e amigos, que gostavam de ler as mesmas coisas que eu lia e que se interessavam pelos mesmos assuntos. Depois chegou o grupo que vinha do Liceu Camões, onde estava o José Vera Jardim, o Luís Braz Teixeira (que já morreu), o Sousa Brito e outros. O Sousa Brito, conhecido hoje pelos seus trabalhos nas áreas do Direito Criminal, da Filosofia do Direito e da liberdade religiosa, que esteve no Tribunal Constitucional, tinha uma tal envergadura que, numa conversa com o professor Martinho Nobre de Mello, lhe pediu mais bibliografia, e ouviu: - "Mas que idade é que você tem, ó Brito?" - "Tenho 18 anos." - "Ó homem, vá-se divertir e volte cá daqui a um ano!" Havia na verdade um conjunto de pessoas, muito unidas, que se foi acompanhando até à formatura. Havia de tudo - católicos progressistas, outros mais dogmáticos e algumas raparigas que se foram aproximando de nós, com as dificuldades que ao tempo ser-se associativo representava, estou-me a lembrar, por exemplo, da Clara Simões Moita, da Raquel Bettencourt Ferreira (que veio depois a ser embaixadora), da Teresa Rapazote Fernandes, da Teresa Coelho, da Maria Angélica, da Live e da Gabriela Álvaro. O curso era atravessado por um radicalismo que o dividia ao meio - uns para a direita, outros para a esquerda e ainda aqueles que estabeleciam as pontes. Por isso digo que a faculdade foi para mim decisiva. Fui um aluno muito ocupado em associações e matérias correlativas, não tão bom como gostaria, dando-me muito bem com os melhores com quem estudava muitas vezes e sempre envolvido nas mais variadas coisas. Conheci nessa altura o Emmanuel Nunes, que andava em Letras, se não me engano, e sempre metido nas reuniões associativas. Quando fugíamos da polícia, isso constituía uma grande preocupação para nós, porque, frágil como ele era, não sabíamos bem como o poderíamos ajudar. Uma pessoa notável. Tínhamos uma actividade intensa, desde o apoio ao desporto, à revista "Quadrante" e ao grupo de teatro de Direito, que era muito forte. O Álvaro Cassuto promovia sessões musicais. Os célebres Jograis de Lisboa (com Lobo Vilela e Joaquim Mestre) faziam recitais admiráveis. Havia serviço social prestado aos estudantes. A compreensão dos meus pais para estas andanças foi sempre total. Sempre. O meu pai só me dizia - "Se queres ir para a política (e nesse tempo estas coisas tinham um grande significado), sê primeiro um bom profissional. Depois, podes ser o que quiseres." Isto, hoje, soa a paternalismo, mas não me inibo de dizer o mesmo a alguns jovens que vêm até aqui falar comigo. A basezinha sólida é fundamental e, depois, façam as derivas que quiserem, para o inconformismo, para a rebeldia, porque senão a vida também se torna uma grande maçada. P - Nitidamente quis ir para a política, como o seu pai previa. Acabado o curso, esse desígnio significou exactamente o quê? R - Acabei o curso antes da greve de 62 e já estava licenciado quando fui secretário-geral da RIA (Reunião Inter-Associações), o que deixava alguns dos meus professores muito preocupados. Lembro-me do professor Lumbralles, com quem de resto me dava muito bem, perguntar-me se eu tinha ido à Checoslováquia receber instruções. O ano de 62 foi da maior importância. O meu pai tinha-me oferecido uma bolsa para o estrangeiro (tinha essa visão do que era importante), mas não fui. Fiquei para a greve académica. Olhando para trás, penso que a minha vida teria sido necessariamente muito diferente se tivesse ido. A minha presença activíssima naquela greve significou, pela primeira vez e dada a força dos embates, que achei que tinha de ajudar a mudar "isto". Significou que achar isso se tornara inseparável do sentido da minha vida. P - Quais foram os primeiros passos que deu (para além da participação activa na greve académica) no campo minado da acção política? R - Para além e também por causa das actividades associativas, directamente ligadas ao movimento estudantil, fui começando a assistir a todo o processo das prisões, das detenções, dos interrogatórios e a participar nas oposições e na defesa dos presos políticos. O processo de Beja, por exemplo, foi uma espécie de baptismo muito forte. O dr. Mário Soares teve o talento de conseguir, para cobrir todos os réus de Beja, que eram muitos, juntar desde os mais veteranos nomes da advocacia de então até aos mais novos. É assim que eu apareço, que o Jorge Santos aparece. É ali que travo conhecimento directo com tudo o que "aquilo" verdadeiramente era - já sabíamos algumas coisas, já tínhamos experimentado, já tínhamos fugido, já tínhamos estado detidos em Caxias (três dias só e chega!), mas é ali que o desígnio se instala, sem sombra de dúvidas. Rebentara, entretanto, a guerra colonial, outro factor importantíssimo, para muitos da minha geração, que viria a reforçar o já referido desígnio. Eu tinha ficado isento da tropa, em 58, porque o médico militar, imagine-se, topou o meu problema da válvula (a que depois nunca mais ninguém ligou, até ter de fazer aquela intervenção cirúrgica de há uns anos atrás), e não tive que me confrontar com aquelas terríveis opções que dilaceraram, naqueles tempos, tantos de nós. Quando passo, ainda hoje, na Rua Artilharia Um, junto a uma garagem que há lá ao princípio, para quem vem do Rato, lembro-me de um encontro que ali tive com o Manuel Lucena e em que ele me disse que se ia embora. Foram separações dramáticas que tive a sorte de não ter de fazer e nunca fui capaz de dizer a alguém - sim ou não, sobre essa matéria. Eram decisões absolutamente pessoais e terrivelmente dolorosas - tanto as dos que iam para a guerra, como as dos que se foram embora do país. Lembro-me que estava no café Tatu, no Campo Grande, com o Afonso de Barros (que já morreu), o Pedro Ramos de Almeida e outros, quando a rádio noticiou os primeiros ataques em Angola e todos dissemos "isto" vai acabar próximo, o regime não aguenta. Pois, acabou de facto, mas só daí a 13 anos, como bem sabemos! P - Que linhas ideológicas inspiraram com mais peso, nesse tempo, as suas inclinações políticas? Foi alguma vez tentado pela acção clandestina do Partido Comunista? R - Fui convidado várias vezes para entrar no partido e tive reuniões clandestinas com elementos do PCP. Nunca aderi ao Partido Comunista, por razões que não importa aqui focar e que eram, em resumo, de incompatibilidade programática. A casa da minha avó, em Campo de Ourique, iam funcionários do partido, que estavam obviamente na clandestinidade. Coitada da senhora, o risco que lhe fiz correr. Ela sabia que havia por ali qualquer coisa que não era legal, mas, generosamente, deixava correr. Uma das pessoas que por lá passaram era o meu amigo José Bernardino, membro do PCP, homem muito inteligente e de grande coragem. No que me diz respeito, tinha frequências de leitura próximas do marxismo (não do leninismo), do socialismo francês da época, do que se podia ler na "Esprit" e nos "Temps Modernes". Era um socialista independente, se assim se pode dizer, com as melhores relações com os católicos progressistas, onde estavam muitos dos meus melhores amigos, e tinha encontros regulares, quase que diria profissionais, com a esquerda clandestina. Era, em suma, um socialista não alinhado - numa certa época autogestionário, muito rocardiano noutra altura, leitor também da influência socialista inglesa do tempo, ou seja, para facilitar, um socialista de esquerda. Isto hoje, dito assim, não tem significado, mas era por aí que eu andava. Fui grande frequentador da Maspero, em Paris, e segui atentamente o processo da criação dos novos países africanos, a guerra da Argélia, a revolução cubana e as expectativas iniciais que gerou em toda a parte. O caso Delgado e o assalto ao Santa Cruz foram acontecimentos que também me marcaram muito, como é evidente. Este tipo de percurso explica muito do comportamento de um grupo de pessoas que, por exemplo, não aderiram em 1973 ao Partido Socialista (tenho suficiente abertura de espírito para reconhecer que talvez tenha sido um erro, reparado com a adesão em 78) e apoiaram, no 25 de Abril e desde o início, a ala moderada dos militares do MFA. Este grupo de pessoas, em que me incluo, não sendo marxistas-leninistas, nem comunistas, questionava e tinha também algumas reservas em relação a certos posicionamentos da social-democracia. Era um grupo que ficou, no fundo, um bocado dependurado na busca de soluções alternativas nesta área política do socialismo democrático, para utilizar a habitual fórmula, essa busca contínua (basta pensar na "terceira via") e é tanto mais difícil quanto, hoje, numa época como a que estamos a viver, não há respostas suficientemente claras para praticamente coisa nenhuma. Tudo isto também explica que esse grupo de que estamos a falar tenha aparecido nas primeiras "eleições" do tempo de Marcelo Caetano, em 1969, na CDE, cuja verdadeira história está ainda por fazer. Depois houve a Intervenção Socialista, uns entraram no PS, outros não. E o resto é bem conhecido. P - Menos bem conhecido, muito se devendo à discrição com que envolve e protege a família, é o modo como a sua mulher, Maria José, e os seus filhos, Vera e André, acompanharam o seu percurso e a ele se foram, ou não, adaptando. Importa-se de levantar uma franja desse véu? R - Os filhos nasceram, cresceram e fizeram-se mulher e homem num contexto familiar em que a quase total disponibilidade da Maria José, que também tinha o seu emprego, foi determinante. Digo isto sem demagogia e com orgulho. Claro que os pais da Vera e do André sempre se pautaram por valores familiares sólidos e enquadradores, mas a minha presença nesse longo processo educatório foi muito afectada pelas ausências que a política impunha. É todavia inesquecível o apoio e acompanhamento global de toda a família, incluindo irmão, cunhada e sobrinhos, na primeira Campanha presidencial de 1995, a que não faltaram os telefonemas da minha Mãe. Finalmente, espero que um dia a Maria José escreva sobre o modo como viu a sua participação nestes anos, desde 1996 até ao fim do segundo mandato, o que me parece da mais incontornável justiça, para quem interrompeu uma carreira profissional para me ajudar. E que os meus filhos possam continuar a seguir o seu próprio caminho, como até agora vêm conseguindo. P - Recuando ao princípio desta conversa, disse-me que aprendeu, pelo exercício dos seus cargos públicos, não só a conhecer melhor como, sobretudo, a amar melhor o povo português. Gostaria que me contasse mais sobre o sentido desse "amar" melhor os portugueses. R - É certo que temos um individualismo doentio, que a administração pública é constituída por partes que não falam umas com as outras (com uma coordenação deficiente e com um desperdício imenso), que as "quintas" são muito óbvias... mas, deixando isso de lado, há tanta gente que precisa de um bocadinho de atenção que, quando a política desce ao tablado dessa necessidade de atenção, consegue-se perceber que em muitas pessoas anónimas há maior reserva de energia do que à primeira vista se poderia pensar e que há maior disponibilidade para se acreditar nos políticos, desde que os considerem sérios para, de facto, fazerem alguma coisa por elas. Claro que há léguas de falta de participação, de iliteracia no seu sentido mais amplo. Mas o que eu quero realçar é que o exercício destas funções não se dirige só às elites. Há o lado, muito importante, dos encontros com outros chefes de Estado, da rotina do expediente diário, que é muito, das visitas ao estrangeiro a promover o país, a sua cultura e a sua economia. E há o outro lado, que é um lado porventura mais invisível, que eu me pus como meta essencial - é o lado da proximidade com os portugueses, que é muito estimulante e também exigente. Muitas vezes em detrimento de um certo estadão que o cargo, para alguns, devia privilegiar mais. Mas eu não vou por aí - sempre que posso gosto de saber o nome das pessoas, o que fazem, o que as aflige, o que sonham. A democracia tem de significar uma renovação ao nível das bases. É aí que ela pode e deve renascer, continuamente. E o chefe de Estado, no meu entender, deve suscitar isso. Dos oito anos que levo na Presidência da República e mais os seis na Câmara de Lisboa, (que em nada se comparam à experiência como deputado), retiro uma grande lição de modéstia e uma consciência, muito aguda, da atenção devida ao muito que há para fazer. Como é que se renova, agora, essa energia? Como é que se dá agora, passados 30 anos sobre o 25 de Abril, o sentido do colectivo à dimensão de Portugal, àquilo que o país tem de ser, à melhoria das condições de educação, ao combate à iliteracia, à capacidade de exposição internacional? É aterrador e, ao mesmo tempo, altamente estimulante. Porque os portugueses (que, em diálogo franco, são amáveis e estão disponíveis para meter mãos à obra) é isso que esperam da democracia, é isso que também querem fazer por ela, e é isso que merecem. Mas têm de ser mais ouvidos, para serem melhor estimulados. O que eu acho e lamento, e já o disse noutra entrevista, é que em Portugal os interesses triunfam sempre. É uma mancha que vem desde sempre. É difícil criarmos classes médias robustas, é difícil garantirmos que a ascensão social seja mais generalizada, seja mais generalizável, como deveria ser em democracia. Como tem de ser em democracia. P - Trinta anos passados, onde está o sinal mais luminoso, no retrato que tem do país, da mudança qualitativa que a instauração da democracia devia ter introduzido? R - Houve um progresso evidente num conjunto de elites jovens, de cientistas, de investigadores sociais, por aí fora, que marca uma grande mudança. No nosso tempo havia cerca de 40 mil alunos na universidade e passámos para 400 mil no conjunto do ensino superior. Dez vezes mais em 30 anos é um grande triunfo, como tal reconhecido. A generalização deste esforço é que é mais duvidosa. Esse é o debate a fazer - temos de tratar das elites, com certeza, mas temos de tratar paralelamente da mediania. A mediania é que tem de subir de nível. É óptimo que haja dois ou três dezanoves mas se, no mesmo curso, há 30 ou 40 reprovações, tenho é que saber porquê e atacar, com vigor e eficácia, essa realidade. A mudança qualitativa é muito mais lenta do que os números fazem crer, embora, seja como for, o país tem hoje outra capacidade, outra desenvoltura. Não tenho dúvidas sobre isso. Mas temos de afinar "isto". Serão os chavões da actualidade, mas de facto temos de aprender a ser mais competitivos, mais produtivos, a gostar mais da qualidade e a exigi-la no que fazemos e recebemos, a ter mais cultura. É por aí. P - Do seu ponto de vista, há ou não, nos tempos que correm, um abrandamento do "élan" afirmativo dos portugueses? R - Acho que há. O dinheiro fácil, o laxismo, uma certa falta de rigor têm minado a atmosfera do país. Precisávamos de um novo sobressalto, no melhor sentido do termo - maiores energias partidárias, maior empenhamento dos responsáveis políticos, a começar naturalmente por mim. Ponho-me todos os dias essa questão - o que é que poderemos fazer mais? Não estou a fazer demagogia para a entrevista, é mesmo assim, sabendo nós que não se respeita a autoridade do Estado, que não se pagam as multas, que se foge às notificações e aos impostos, que a justiça é pouco célere e por vezes quase inacessível. A cultura cívica portuguesa deixa ainda muito a desejar. Daí a necessidade de um novo sobressalto democrático. Temos de ter um outro cumprimento das regras fiscais, uma outra capacidade de ganhar consciência do que os nossos impostos podem fazer pelos outros, uma capacidade de olharmos para a escola como um centro efectivo onde os nossos filhos vão ser educados e não um mero local de depósito durante uma boa parte do dia. Como é que se trata da emancipação dos cidadãos e, ao mesmo tempo, se fortalece o núcleo familiar das pessoas? Como é que se reforça a tal energia que pode fazer subir a desastrosa auto-estima dos portugueses? Tudo questões para as quais não tenho respostas seguras, é evidente. Mas se nós até estamos bem classificados no "ranking" dos países! Nos índices de desenvolvimento humano, Portugal ocupa o lugar vinte e tal e é de não esquecer que há 150 países no mundo. Convém também lembrarmo-nos que temos hoje muito melhores condições de vida do que a maioria dos nossos pais tiveram. Seria bom reconhecermos isso com satisfação e sentirmo-nos, todos, de algum modo responsáveis por exigir e fazer mais e melhor. Seria excelente fazermos dessa satisfação um contraponto àquela outra tendência de nos deixarmos derrapar para o atoleiro do negativismo e do desânimo, que é normalmente o palco de eleição das notícias que nos são dadas. Lembro-me sempre do que o meu pai dizia, com alguma ironia, quando eu me queixava da situação portuguesa - pensa no Chade e diz-me se não tiveste sorte em ter nascido cá! Isto tinha uma continuação que era, no fundo, estimular-me a que me preparasse bem, em vez de me queixar tanto, para contribuir para que as coisas fossem melhores. P - Onde é que se joga, do seu ponto de vista, o "tudo" que falta à sociedade portuguesa para avançar futuro dentro com outra qualidade e com outro entusiasmo? R - Na escola. Regresso sempre à escola. É no pré-escolar, no básico e no secundário que tudo se joga: na inventiva, na capacidade de problematizar, na apreciação cívica, na iniciação à cultura científica, nas escolhas pelas artes, nas visitas aos museus, às salas de concerto, ao teatro, no gosto pelas práticas desportivas... Para isso são precisos meios financeiros e a maior parte das escolas públicas não os têm. Não me canso de dizer aos empresários - escolham uma escola como "afilhada", meus senhores, e dêem para lá 300 euros por mês! Seria uma grande ajuda. P - Estamos a terminar e gostava de sair um pouco do espaço português. Somos vizinhos dos países do Magrebe, de quem herdámos tanta coisa e de quem, apesar da proximidade e do passado histórico, ignoramos quase tudo. Peço-lhe um comentário, por breve que seja, à questão dominante deste princípio de século: a "causa árabe", praticamente quase só identificada com o terrorismo e com o radicalismo islâmico. R - Todas as fés têm os seus fundamentalistas. Se nós, pelas razões mais diversas, ajudamos o fundamentalismo a avançar, julgo que temos, como civilização judaico-cristã, um problema muito complicado entre nós. E é por isso que vejo com grande preocupação o crescendo da questão iraquiana, porque ela está a extravasar para a radicalização da questão árabe e da questão islão. Esse é, de facto, o problema mais difícil do início do século XXI. Deverá exigir um reforço do multilateralismo, em que acredito profundamente, uma vigilância aturada em relação ao terrorismo... Mas este é um fenómeno trágico, porque assenta numa fé fanática. E se não conseguirmos atacar rapidamente a questão, por exemplo, do conflito israelo-árabe, se não conseguirmos equilibrar a situação no Iraque, se não conseguirmos ter um diálogo reaberto com um conjunto de países, se não conseguirmos também olhar para isto enquanto matéria que requer uma solução política, uma solução económica e uma solução social, então, aí, o meu pessimismo não pode ser maior. Há que rever muita coisa, há que repensar muita coisa. O Ocidente tem de fazer um reexame profundo sobre o que também tem sido a arrogância da sua atitude no mundo - arrogância cultural, política, económica, militar. Há muitos factores novos, que apontam para novas soluções. Soluções que pedem uma revisão de todo o sistema financeiro internacional, que estão apostadas em contrariar a distribuição inigualitária dos modos de produção e em reduzir a escala dos muitos proteccionismos que ainda existem. Temos de perceber tudo isto e compreender que este estado de coisas em nada tem contribuído para dar aos países emergentes a segurança do seu próprio desenvolvimento. Para além de tentar perceber, de tentar reavaliar tudo, temos também de estar, naturalmente, disponíveis para alguns sacrifícios. Não o fazendo, teremos um confronto de contornos dificilmente previsíveis. P - Senhor Presidente, uma palavra de eleição. R - Justiça, nas suas várias vertentes - como aspiração, como estado de espírito, como objectivo, como meta. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Morangos para sempre

QUATRO NÚMEROS E DIFERENÇAS

Horóscopo semanal 6 a 12 de Junho

CRÓNICAS

O Índex

Um estalo bem mal dado

Conversa com Vista Para...

Por JORGE SAMPAIO

Domingo, 06 de Junho de 2004 Bocadinho de África A porta de um santuário, um enorme vaso de cerâmica, máscaras de madeira, esculturas e adornos de barcos, da Costa do Marfim, do Burkina Faso ou do Gabão. A arte da África Ocidental está na "Pó di terra". Pó di terra quer dizer, em criolo, um pouco de terra de África e fica na Rua D. Pedro V, 62, Lisboa. J.H Cozidos à mão (FOI POR MAIL) Rosa Pomar retalha os tecidos, alinhava os bocados e, depois, transforma-os em bonecos que coze à mão. São coloridos e muito mais divertidos do que os bonecos tradicionais-todos iguais destes tempos. Custam entre 30 e 60 (de acordo com os materiais usados) e vendem-se para todo o mundo no site www.rosapomar.com. No Museu Berardo, em Sintra, e na Rua do Norte 40, em Lisboa, também há. %Maria João Seixas Ir conversar com o Presidente da República e não querer que o lado institucional se esgueirasse para o interior das questões, para delas tomar conta, deu-me algum nervosismo. Ao atravessar as salas do palácio, ainda consegui que o olhar espreitasse as primeiras e fabulosas "Cenas da Virgem", de Paula Rego, para, em segredo, lhes pedir socorro. Alinhadas na capelinha de Belém, de porta em boa hora deixada aberta, as telas não se fizeram rogadas, perceberam a minha aflição e, achei eu, concederam-me a bênção. Mais tranquila fiquei quando, já no pequeno escritório onde o Presidente me recebeu, o ouvi dizer, com aquele ar desarmante conhecido de nós todos, que também achava não ser óbvio, nem fácil, expor-se ao desafio desta "vista para". A conversa acabou por ser uma bela viagem pelo tempo, sem nada de nostálgico, temperada apenas por uma memória recheada de momentos, tão vivos e tão vividos, que só podem contribuir para soprar, sobre o presente e o futuro, ventos mais enérgicos e inspiradores. Conheci-o nas lides associativas, no ano que se seguiu ao da crise académica de 62, era eu caloira de Direito. Jorge Sampaio, o "Dr. Sampaio", tinha já o prestígio dos líderes, não se dando a grandes intimidades com novatos e não-novatos, desde que não fizessem parte do círculo mais apertado dos "seus". Sempre admirei nele o modo como, sem endeusar as virtudes do diálogo e da confrontação de ideias, praticava ambos, em momentos de risco e em clima de grande tensão, com um sentido de temperança raro, simultaneamente firme e cortês. Essa temperança, ou fleuma, como alguns preferem, nunca o afastava das razões e dos objectivos principais que nos levavam, enquanto estudantes (que ele, entretanto, deixara de ser), a estar juntos e com vontade de intervir na cena pública. Para a mudar. Sei-me testemunha privilegiada de quatro décadas do percurso de um homem a quem o país por duas vezes concedeu o crédito maior na hierarquia do Estado, cuja exemplaridade mais relevante se situa na dimensão ética da sua fidelidade, constante, aos valores da justiça e da liberdade. O colorido mais vibrante desta fidelidade é nele trabalhado por uma matéria, preciosa entre todas, que é uma espécie de optimismo, persistente e sem nada de vão, nas reais qualidades da comunidade a que pertence, de sua graça - Portugal. P - Senhor Presidente, diga-me quem é. R - Acho que essa é a pergunta mais difícil de todas, até porque somos um pouco nós e, ao mesmo tempo, somos também o reflexo que os outros têm de nós. Em qualquer caso, sempre se poderá dizer que sou um inconformista, inquieto, muito exigente. Às vezes as pessoas dizem "lá vai ele com aquela cara, parece que leva o país às costas", não é nada disso, sinto é que estou, sempre, um pouco em défice relativamente àquilo que deveria, porventura, poder fazer. O que dá uma grande exigência. Tenho tido a sorte e o privilégio de canalizar algumas das minhas energias (que, confesso, têm sido muitas) para aquilo que hoje chamamos o serviço à comunidade e que outros chamarão de maneiras menos nobres. Isso tem ocupado grande parte da minha vida e já obscureceu a vida profissional, que foi intensa. Continuo tão inquieto como dantes, com pena de não poder dizer algumas coisas que, um dia mais tarde, provavelmente direi, mas hoje acho que não devo, ainda, fazê-lo. Para além deste ar austero e preocupado, que me é natural, tenho outro lado, mais divertido e mais desconhecido, que deixo para os meus amigos e para a dispersão dos meus gostos. Essa dispersão é avassaladora, porque adoro música - nada melhor para mim do que assistir ao ensaio de um concerto, não tanto já a execução no dia do espectáculo, mas o ensaio, com as "nuances" da aprendizagem -, gosto de touradas - o que é muito criticado, não fiz nada que me levasse a gostar e até é um pouco contraditório com a minha personalidade -, gosto imenso de futebol, de ver e de estudar futebol - porquê, não sei -, gosto imenso de pintura, de que não percebo o que gostaria, e é sempre com grande interesse e alegria que ouço o que os artistas plásticos me dizem das suas obras, preferencialmente fora das "vernisages". Procuro sempre estar aberto ao que se passa no meu tempo e ao que poderá acontecer no tempo que há-de seguir-se e não nego que tenho preocupações muito pesadas (apesar de ser pessoa de um optimismo permanente, de um optimismo que é até mais um assumir de que é preciso a vontade para transformar, para melhorar) e que tenho um grande sentido da injustiça que existe e dos enormes contrastes sociais que há em Portugal, de uma ponta à outra do país. Sempre gostei de ser português e dos portugueses, mas hoje gosto ainda mais. Acho, quando falo com as pessoas, que há qualquer coisa dentro dos portugueses que, lentamente, consegue tomar expressão e sair cá para fora de um modo franco e lúcido que, antes, talvez eu não soubesse que assim era. Confesso ainda que fui um europeu antes de tempo, tive a sorte de ter essa dimensão desde cedo, dimensão que os meus pais sempre me proporcionaram, fazendo de mim uma pessoa aberta ao mundo. P - Tem nítida consciência de que o berço onde nasceu e a educação recebida dos seus pais foram e são a base, bem sedimentada, que serviu de orientação para o seu percurso de vida, para as opções que fez, para o modo como as assumiu? R - Absolutamente. Lembro-me, por exemplo, como se fosse hoje, do primeiro cartaz político que vi, para as eleições presidenciais, creio que de 1951, em que o almirante Quintão Meireles se apresentou pela oposição. Ia com o meu pai, em Sintra, e havia uns cartazes que diziam, sobre o candidato do regime: este faz mais estradas, faz mais isto e aquilo...; este promete ainda melhor nesta e naquela área... Foi a minha primeira lição política prática, com o meu pai a explicar-me, perante aqueles cartazes, o que é que tudo aquilo quereria significar. Tive ainda a sorte de ter uma família muito cosmopolita, o que ajudou bastante naquela altura. A minha mãe tinha feito o liceu em Inglaterra, tinha as suas amigas estrangeiras, ensinou-me inglês desde pequeno. O meu pai fez parte da sua formação lá fora e eu estive nos Estados Unidos da América (EUA) com oito anos, na escola primária americana, onde também frequentei o Conservatório em estudos de piano. Fui muitas vezes com a escola (porque os estudos de música obrigavam a uma participação no coro) assistir àquelas espantosas aulas para crianças que o Bernstein dava. Só anos mais tarde (foi preciso a minha mãe lembrar-mo) é que soube quem era aquele senhor que estava no palco do teatro de Baltimore a conduzir aquela grande orquestra, a ensinar-nos a cantar com um termómetro ao lado, para tirar a temperatura das nossas vozes e a ensinar-nos música, a ouvir música. A nossa casa, além de cosmopolita, era uma casa democrática. O meu pai, sendo um homem de ciência, era uma pessoa muito envolvida no quotidiano e, talvez por isso, tenha derivado de uma forma muito intensa para a saúde pública. A minha mãe era uma espécie de sufragista democrática, talvez menos elaborada, mas muito fiel aos seus princípios e sempre em contraste com as suas amigas, que, obviamente, tinham outras convicções e eram de outro tipo de formação. Esta atmosfera foi contínua, foi constante. Os meus pais foram muito marcantes, porque foram instituidores não só de múltiplas e sólidas referências, como também de uma liberdade vasta. P - Até chegar ao liceu? R - Até aí, claro, e mesmo depois. Nunca estudei em colégios e guardo do ensino público recordações extraordinárias. Como vivíamos em Sintra, acabei por vir fazer o liceu para casa da minha avó, que era em Campo de Ourique. Tenho uma grande estima pelos cafés daquele bairro, os meus primeiros cafés, que ainda lá estão, e pelos amigos com quem me encontrava por ali. O Pedro Nunes era um liceu de um tipo completamente diferente do Passos Manuel, para onde era necessário mudar, se se queria ir para Direito. Tenho melhores recordações do segundo confesso, do ponto de vista da abertura e das relações de convivialidade, mas mantenho amigos que vêm ainda do Pedro Nunes. Caracterizo-me, aliás, por ter um grupo de amigos que vêm de há mais de 40 nos. Há muitos novos, felizmente, mas há entre nós uma solidariedade disfarçada, a que mais tarde se veio a chamar a "Máfia de 62" - o que me pareceu sempre um despropósito imenso! Este grupo de amigos era, de facto, muito íntimo e, simultaneamente, muito cerimonioso. O Nuno Brederode dos Santos é que diz: "Nós continuamos a ser amigos como poucos, porque fazemos cerimónia, fazemos alguma cerimónia uns com os outros." O que é verdade e é magnífico. O liceu Passos Manuel foi também o meu primeiro contacto com o Chiado - subia-se a Calçada do Combro, ia-se às livrarias ver e folhear os livros... e, por falta de dinheiro, era-se tentado a levar discretamente para casa um ou outro. Confesso que nunca fui capaz de exercer essa modalidade! Foram tempos magníficos e tive a sorte de encontrar grandes figuras como professores - para além de Figanier (em Francês), de Silva Gomes (em Português), Palma Fernandes (em Matemática, disciplina em que me ajudou a sobreviver) e de outros. Houve três grandes personalidades no Passos Manuel que foram marcantes para a minha formação: Garcia Pereira, um notável professor de Alemão, pai do Garcia Pereira que todos conhecemos, e dois grandes historiadores, qualquer que seja a maneira como olhamos para a História, José Hermano Saraiva e Joel Serrão. O feudalismo dado por José Hermano Saraiva, estávamos em 1954, era qualquer coisa de fantástico! Ainda há pouco tempo, na Batalha, o ouvi fazer uma espantosa homenagem ao Soldado Desconhecido, na cerimónia em que participei. Com o mesmo entusiasmo e vigor de há 50 anos! Estas são grandes recordações que foram sempre combinadas com sólidas amizades até à universidade, onde os pólos de atracção começaram a dispersar-se. Mas muitas dessas amizades duram desde aí, com casos paradigmáticos como, por exemplo, o do Miguel Galvão Telles. P - Considera que o cosmopolitismo familiar de que fala e até a estadia, em criança, nos EUA terão contribuído para reconhecer que a realidade "sufocante" do país, nesses anos de chumbo das décadas de 50 e 60, lhe era insuportável e exigia que se batesse para ajudar a mudá-la? R - Não tenho consciência de que tenha começado assim tão cedo. O meu pai, como já referi, era um democrata, toda a gente o sabia. Um dia, no primeiro ou segundo ano do liceu, fui ter com ele e disse-lhe que queria ir para o curso de chefe de quina da Mocidade Portuguesa. Olhou para mim e disse: "Não vais gostar, mas não te proíbo de ir." Fui e chumbei. Antes disso, também me lembro de algumas situações vividas durante a Segunda Grande Guerra e logo a seguir ao seu fim, celebrado com grande vibração em casa dos meus pais - nos comboios da linha de Sintra havia, nesse tempo, lugares quase marcados, com uma divisão nítida: de um lado os pró-Aliados e do outro, os pró-Eixo, divisão cujo significado o meu pai me ia explicando. São pequenos exemplos como estes que marcaram o meu crescimento, mas a faculdade é que foi decisiva para a chamada "awareness" (tomada de consciência) da situação política portuguesa, embora as minhas leituras fossem já um pouco estranhas. No primeiro e segundo ano do curso de Direito, recordo-me como se fosse hoje, lia com voracidade os mais diversos autores e revistas - de Evelyn Waugh a Bernard Shaw, dos "Cahiers du Cinéma" à "Esprit", mas foi lentamente que comecei a perceber que o que se vivia em Portugal era particularmente difícil e sufocante. O papel das associações académicas foi, naquele tempo, para a minha formação e para a de muitos, insubstituível. P - A aproximação ao mundo associativo da época foi imediata à sua entrada na faculdade ou deu-se lentamente, como referiu ter sido a tomada de consciência da situação política portuguesa? R - Foi-se dando. Chegado à faculdade, tive logo um embate forte, com as eleições para presidente da Associação Académica de Direito. Quem eram os candidatos? Serra Lopes e Miguel Quina, ambos finalistas, que muito impressionaram, com as suas discussões acesas, um caloiro como eu. Serra Lopes ganhou por um ou dois votos e eu segui aquele combate com a maior atenção. Logo no primeiro e segundo ano fiz parte de uma tertúlia intelectual com colegas e amigos, que gostavam de ler as mesmas coisas que eu lia e que se interessavam pelos mesmos assuntos. Depois chegou o grupo que vinha do Liceu Camões, onde estava o José Vera Jardim, o Luís Braz Teixeira (que já morreu), o Sousa Brito e outros. O Sousa Brito, conhecido hoje pelos seus trabalhos nas áreas do Direito Criminal, da Filosofia do Direito e da liberdade religiosa, que esteve no Tribunal Constitucional, tinha uma tal envergadura que, numa conversa com o professor Martinho Nobre de Mello, lhe pediu mais bibliografia, e ouviu: - "Mas que idade é que você tem, ó Brito?" - "Tenho 18 anos." - "Ó homem, vá-se divertir e volte cá daqui a um ano!" Havia na verdade um conjunto de pessoas, muito unidas, que se foi acompanhando até à formatura. Havia de tudo - católicos progressistas, outros mais dogmáticos e algumas raparigas que se foram aproximando de nós, com as dificuldades que ao tempo ser-se associativo representava, estou-me a lembrar, por exemplo, da Clara Simões Moita, da Raquel Bettencourt Ferreira (que veio depois a ser embaixadora), da Teresa Rapazote Fernandes, da Teresa Coelho, da Maria Angélica, da Live e da Gabriela Álvaro. O curso era atravessado por um radicalismo que o dividia ao meio - uns para a direita, outros para a esquerda e ainda aqueles que estabeleciam as pontes. Por isso digo que a faculdade foi para mim decisiva. Fui um aluno muito ocupado em associações e matérias correlativas, não tão bom como gostaria, dando-me muito bem com os melhores com quem estudava muitas vezes e sempre envolvido nas mais variadas coisas. Conheci nessa altura o Emmanuel Nunes, que andava em Letras, se não me engano, e sempre metido nas reuniões associativas. Quando fugíamos da polícia, isso constituía uma grande preocupação para nós, porque, frágil como ele era, não sabíamos bem como o poderíamos ajudar. Uma pessoa notável. Tínhamos uma actividade intensa, desde o apoio ao desporto, à revista "Quadrante" e ao grupo de teatro de Direito, que era muito forte. O Álvaro Cassuto promovia sessões musicais. Os célebres Jograis de Lisboa (com Lobo Vilela e Joaquim Mestre) faziam recitais admiráveis. Havia serviço social prestado aos estudantes. A compreensão dos meus pais para estas andanças foi sempre total. Sempre. O meu pai só me dizia - "Se queres ir para a política (e nesse tempo estas coisas tinham um grande significado), sê primeiro um bom profissional. Depois, podes ser o que quiseres." Isto, hoje, soa a paternalismo, mas não me inibo de dizer o mesmo a alguns jovens que vêm até aqui falar comigo. A basezinha sólida é fundamental e, depois, façam as derivas que quiserem, para o inconformismo, para a rebeldia, porque senão a vida também se torna uma grande maçada. P - Nitidamente quis ir para a política, como o seu pai previa. Acabado o curso, esse desígnio significou exactamente o quê? R - Acabei o curso antes da greve de 62 e já estava licenciado quando fui secretário-geral da RIA (Reunião Inter-Associações), o que deixava alguns dos meus professores muito preocupados. Lembro-me do professor Lumbralles, com quem de resto me dava muito bem, perguntar-me se eu tinha ido à Checoslováquia receber instruções. O ano de 62 foi da maior importância. O meu pai tinha-me oferecido uma bolsa para o estrangeiro (tinha essa visão do que era importante), mas não fui. Fiquei para a greve académica. Olhando para trás, penso que a minha vida teria sido necessariamente muito diferente se tivesse ido. A minha presença activíssima naquela greve significou, pela primeira vez e dada a força dos embates, que achei que tinha de ajudar a mudar "isto". Significou que achar isso se tornara inseparável do sentido da minha vida. P - Quais foram os primeiros passos que deu (para além da participação activa na greve académica) no campo minado da acção política? R - Para além e também por causa das actividades associativas, directamente ligadas ao movimento estudantil, fui começando a assistir a todo o processo das prisões, das detenções, dos interrogatórios e a participar nas oposições e na defesa dos presos políticos. O processo de Beja, por exemplo, foi uma espécie de baptismo muito forte. O dr. Mário Soares teve o talento de conseguir, para cobrir todos os réus de Beja, que eram muitos, juntar desde os mais veteranos nomes da advocacia de então até aos mais novos. É assim que eu apareço, que o Jorge Santos aparece. É ali que travo conhecimento directo com tudo o que "aquilo" verdadeiramente era - já sabíamos algumas coisas, já tínhamos experimentado, já tínhamos fugido, já tínhamos estado detidos em Caxias (três dias só e chega!), mas é ali que o desígnio se instala, sem sombra de dúvidas. Rebentara, entretanto, a guerra colonial, outro factor importantíssimo, para muitos da minha geração, que viria a reforçar o já referido desígnio. Eu tinha ficado isento da tropa, em 58, porque o médico militar, imagine-se, topou o meu problema da válvula (a que depois nunca mais ninguém ligou, até ter de fazer aquela intervenção cirúrgica de há uns anos atrás), e não tive que me confrontar com aquelas terríveis opções que dilaceraram, naqueles tempos, tantos de nós. Quando passo, ainda hoje, na Rua Artilharia Um, junto a uma garagem que há lá ao princípio, para quem vem do Rato, lembro-me de um encontro que ali tive com o Manuel Lucena e em que ele me disse que se ia embora. Foram separações dramáticas que tive a sorte de não ter de fazer e nunca fui capaz de dizer a alguém - sim ou não, sobre essa matéria. Eram decisões absolutamente pessoais e terrivelmente dolorosas - tanto as dos que iam para a guerra, como as dos que se foram embora do país. Lembro-me que estava no café Tatu, no Campo Grande, com o Afonso de Barros (que já morreu), o Pedro Ramos de Almeida e outros, quando a rádio noticiou os primeiros ataques em Angola e todos dissemos "isto" vai acabar próximo, o regime não aguenta. Pois, acabou de facto, mas só daí a 13 anos, como bem sabemos! P - Que linhas ideológicas inspiraram com mais peso, nesse tempo, as suas inclinações políticas? Foi alguma vez tentado pela acção clandestina do Partido Comunista? R - Fui convidado várias vezes para entrar no partido e tive reuniões clandestinas com elementos do PCP. Nunca aderi ao Partido Comunista, por razões que não importa aqui focar e que eram, em resumo, de incompatibilidade programática. A casa da minha avó, em Campo de Ourique, iam funcionários do partido, que estavam obviamente na clandestinidade. Coitada da senhora, o risco que lhe fiz correr. Ela sabia que havia por ali qualquer coisa que não era legal, mas, generosamente, deixava correr. Uma das pessoas que por lá passaram era o meu amigo José Bernardino, membro do PCP, homem muito inteligente e de grande coragem. No que me diz respeito, tinha frequências de leitura próximas do marxismo (não do leninismo), do socialismo francês da época, do que se podia ler na "Esprit" e nos "Temps Modernes". Era um socialista independente, se assim se pode dizer, com as melhores relações com os católicos progressistas, onde estavam muitos dos meus melhores amigos, e tinha encontros regulares, quase que diria profissionais, com a esquerda clandestina. Era, em suma, um socialista não alinhado - numa certa época autogestionário, muito rocardiano noutra altura, leitor também da influência socialista inglesa do tempo, ou seja, para facilitar, um socialista de esquerda. Isto hoje, dito assim, não tem significado, mas era por aí que eu andava. Fui grande frequentador da Maspero, em Paris, e segui atentamente o processo da criação dos novos países africanos, a guerra da Argélia, a revolução cubana e as expectativas iniciais que gerou em toda a parte. O caso Delgado e o assalto ao Santa Cruz foram acontecimentos que também me marcaram muito, como é evidente. Este tipo de percurso explica muito do comportamento de um grupo de pessoas que, por exemplo, não aderiram em 1973 ao Partido Socialista (tenho suficiente abertura de espírito para reconhecer que talvez tenha sido um erro, reparado com a adesão em 78) e apoiaram, no 25 de Abril e desde o início, a ala moderada dos militares do MFA. Este grupo de pessoas, em que me incluo, não sendo marxistas-leninistas, nem comunistas, questionava e tinha também algumas reservas em relação a certos posicionamentos da social-democracia. Era um grupo que ficou, no fundo, um bocado dependurado na busca de soluções alternativas nesta área política do socialismo democrático, para utilizar a habitual fórmula, essa busca contínua (basta pensar na "terceira via") e é tanto mais difícil quanto, hoje, numa época como a que estamos a viver, não há respostas suficientemente claras para praticamente coisa nenhuma. Tudo isto também explica que esse grupo de que estamos a falar tenha aparecido nas primeiras "eleições" do tempo de Marcelo Caetano, em 1969, na CDE, cuja verdadeira história está ainda por fazer. Depois houve a Intervenção Socialista, uns entraram no PS, outros não. E o resto é bem conhecido. P - Menos bem conhecido, muito se devendo à discrição com que envolve e protege a família, é o modo como a sua mulher, Maria José, e os seus filhos, Vera e André, acompanharam o seu percurso e a ele se foram, ou não, adaptando. Importa-se de levantar uma franja desse véu? R - Os filhos nasceram, cresceram e fizeram-se mulher e homem num contexto familiar em que a quase total disponibilidade da Maria José, que também tinha o seu emprego, foi determinante. Digo isto sem demagogia e com orgulho. Claro que os pais da Vera e do André sempre se pautaram por valores familiares sólidos e enquadradores, mas a minha presença nesse longo processo educatório foi muito afectada pelas ausências que a política impunha. É todavia inesquecível o apoio e acompanhamento global de toda a família, incluindo irmão, cunhada e sobrinhos, na primeira Campanha presidencial de 1995, a que não faltaram os telefonemas da minha Mãe. Finalmente, espero que um dia a Maria José escreva sobre o modo como viu a sua participação nestes anos, desde 1996 até ao fim do segundo mandato, o que me parece da mais incontornável justiça, para quem interrompeu uma carreira profissional para me ajudar. E que os meus filhos possam continuar a seguir o seu próprio caminho, como até agora vêm conseguindo. P - Recuando ao princípio desta conversa, disse-me que aprendeu, pelo exercício dos seus cargos públicos, não só a conhecer melhor como, sobretudo, a amar melhor o povo português. Gostaria que me contasse mais sobre o sentido desse "amar" melhor os portugueses. R - É certo que temos um individualismo doentio, que a administração pública é constituída por partes que não falam umas com as outras (com uma coordenação deficiente e com um desperdício imenso), que as "quintas" são muito óbvias... mas, deixando isso de lado, há tanta gente que precisa de um bocadinho de atenção que, quando a política desce ao tablado dessa necessidade de atenção, consegue-se perceber que em muitas pessoas anónimas há maior reserva de energia do que à primeira vista se poderia pensar e que há maior disponibilidade para se acreditar nos políticos, desde que os considerem sérios para, de facto, fazerem alguma coisa por elas. Claro que há léguas de falta de participação, de iliteracia no seu sentido mais amplo. Mas o que eu quero realçar é que o exercício destas funções não se dirige só às elites. Há o lado, muito importante, dos encontros com outros chefes de Estado, da rotina do expediente diário, que é muito, das visitas ao estrangeiro a promover o país, a sua cultura e a sua economia. E há o outro lado, que é um lado porventura mais invisível, que eu me pus como meta essencial - é o lado da proximidade com os portugueses, que é muito estimulante e também exigente. Muitas vezes em detrimento de um certo estadão que o cargo, para alguns, devia privilegiar mais. Mas eu não vou por aí - sempre que posso gosto de saber o nome das pessoas, o que fazem, o que as aflige, o que sonham. A democracia tem de significar uma renovação ao nível das bases. É aí que ela pode e deve renascer, continuamente. E o chefe de Estado, no meu entender, deve suscitar isso. Dos oito anos que levo na Presidência da República e mais os seis na Câmara de Lisboa, (que em nada se comparam à experiência como deputado), retiro uma grande lição de modéstia e uma consciência, muito aguda, da atenção devida ao muito que há para fazer. Como é que se renova, agora, essa energia? Como é que se dá agora, passados 30 anos sobre o 25 de Abril, o sentido do colectivo à dimensão de Portugal, àquilo que o país tem de ser, à melhoria das condições de educação, ao combate à iliteracia, à capacidade de exposição internacional? É aterrador e, ao mesmo tempo, altamente estimulante. Porque os portugueses (que, em diálogo franco, são amáveis e estão disponíveis para meter mãos à obra) é isso que esperam da democracia, é isso que também querem fazer por ela, e é isso que merecem. Mas têm de ser mais ouvidos, para serem melhor estimulados. O que eu acho e lamento, e já o disse noutra entrevista, é que em Portugal os interesses triunfam sempre. É uma mancha que vem desde sempre. É difícil criarmos classes médias robustas, é difícil garantirmos que a ascensão social seja mais generalizada, seja mais generalizável, como deveria ser em democracia. Como tem de ser em democracia. P - Trinta anos passados, onde está o sinal mais luminoso, no retrato que tem do país, da mudança qualitativa que a instauração da democracia devia ter introduzido? R - Houve um progresso evidente num conjunto de elites jovens, de cientistas, de investigadores sociais, por aí fora, que marca uma grande mudança. No nosso tempo havia cerca de 40 mil alunos na universidade e passámos para 400 mil no conjunto do ensino superior. Dez vezes mais em 30 anos é um grande triunfo, como tal reconhecido. A generalização deste esforço é que é mais duvidosa. Esse é o debate a fazer - temos de tratar das elites, com certeza, mas temos de tratar paralelamente da mediania. A mediania é que tem de subir de nível. É óptimo que haja dois ou três dezanoves mas se, no mesmo curso, há 30 ou 40 reprovações, tenho é que saber porquê e atacar, com vigor e eficácia, essa realidade. A mudança qualitativa é muito mais lenta do que os números fazem crer, embora, seja como for, o país tem hoje outra capacidade, outra desenvoltura. Não tenho dúvidas sobre isso. Mas temos de afinar "isto". Serão os chavões da actualidade, mas de facto temos de aprender a ser mais competitivos, mais produtivos, a gostar mais da qualidade e a exigi-la no que fazemos e recebemos, a ter mais cultura. É por aí. P - Do seu ponto de vista, há ou não, nos tempos que correm, um abrandamento do "élan" afirmativo dos portugueses? R - Acho que há. O dinheiro fácil, o laxismo, uma certa falta de rigor têm minado a atmosfera do país. Precisávamos de um novo sobressalto, no melhor sentido do termo - maiores energias partidárias, maior empenhamento dos responsáveis políticos, a começar naturalmente por mim. Ponho-me todos os dias essa questão - o que é que poderemos fazer mais? Não estou a fazer demagogia para a entrevista, é mesmo assim, sabendo nós que não se respeita a autoridade do Estado, que não se pagam as multas, que se foge às notificações e aos impostos, que a justiça é pouco célere e por vezes quase inacessível. A cultura cívica portuguesa deixa ainda muito a desejar. Daí a necessidade de um novo sobressalto democrático. Temos de ter um outro cumprimento das regras fiscais, uma outra capacidade de ganhar consciência do que os nossos impostos podem fazer pelos outros, uma capacidade de olharmos para a escola como um centro efectivo onde os nossos filhos vão ser educados e não um mero local de depósito durante uma boa parte do dia. Como é que se trata da emancipação dos cidadãos e, ao mesmo tempo, se fortalece o núcleo familiar das pessoas? Como é que se reforça a tal energia que pode fazer subir a desastrosa auto-estima dos portugueses? Tudo questões para as quais não tenho respostas seguras, é evidente. Mas se nós até estamos bem classificados no "ranking" dos países! Nos índices de desenvolvimento humano, Portugal ocupa o lugar vinte e tal e é de não esquecer que há 150 países no mundo. Convém também lembrarmo-nos que temos hoje muito melhores condições de vida do que a maioria dos nossos pais tiveram. Seria bom reconhecermos isso com satisfação e sentirmo-nos, todos, de algum modo responsáveis por exigir e fazer mais e melhor. Seria excelente fazermos dessa satisfação um contraponto àquela outra tendência de nos deixarmos derrapar para o atoleiro do negativismo e do desânimo, que é normalmente o palco de eleição das notícias que nos são dadas. Lembro-me sempre do que o meu pai dizia, com alguma ironia, quando eu me queixava da situação portuguesa - pensa no Chade e diz-me se não tiveste sorte em ter nascido cá! Isto tinha uma continuação que era, no fundo, estimular-me a que me preparasse bem, em vez de me queixar tanto, para contribuir para que as coisas fossem melhores. P - Onde é que se joga, do seu ponto de vista, o "tudo" que falta à sociedade portuguesa para avançar futuro dentro com outra qualidade e com outro entusiasmo? R - Na escola. Regresso sempre à escola. É no pré-escolar, no básico e no secundário que tudo se joga: na inventiva, na capacidade de problematizar, na apreciação cívica, na iniciação à cultura científica, nas escolhas pelas artes, nas visitas aos museus, às salas de concerto, ao teatro, no gosto pelas práticas desportivas... Para isso são precisos meios financeiros e a maior parte das escolas públicas não os têm. Não me canso de dizer aos empresários - escolham uma escola como "afilhada", meus senhores, e dêem para lá 300 euros por mês! Seria uma grande ajuda. P - Estamos a terminar e gostava de sair um pouco do espaço português. Somos vizinhos dos países do Magrebe, de quem herdámos tanta coisa e de quem, apesar da proximidade e do passado histórico, ignoramos quase tudo. Peço-lhe um comentário, por breve que seja, à questão dominante deste princípio de século: a "causa árabe", praticamente quase só identificada com o terrorismo e com o radicalismo islâmico. R - Todas as fés têm os seus fundamentalistas. Se nós, pelas razões mais diversas, ajudamos o fundamentalismo a avançar, julgo que temos, como civilização judaico-cristã, um problema muito complicado entre nós. E é por isso que vejo com grande preocupação o crescendo da questão iraquiana, porque ela está a extravasar para a radicalização da questão árabe e da questão islão. Esse é, de facto, o problema mais difícil do início do século XXI. Deverá exigir um reforço do multilateralismo, em que acredito profundamente, uma vigilância aturada em relação ao terrorismo... Mas este é um fenómeno trágico, porque assenta numa fé fanática. E se não conseguirmos atacar rapidamente a questão, por exemplo, do conflito israelo-árabe, se não conseguirmos equilibrar a situação no Iraque, se não conseguirmos ter um diálogo reaberto com um conjunto de países, se não conseguirmos também olhar para isto enquanto matéria que requer uma solução política, uma solução económica e uma solução social, então, aí, o meu pessimismo não pode ser maior. Há que rever muita coisa, há que repensar muita coisa. O Ocidente tem de fazer um reexame profundo sobre o que também tem sido a arrogância da sua atitude no mundo - arrogância cultural, política, económica, militar. Há muitos factores novos, que apontam para novas soluções. Soluções que pedem uma revisão de todo o sistema financeiro internacional, que estão apostadas em contrariar a distribuição inigualitária dos modos de produção e em reduzir a escala dos muitos proteccionismos que ainda existem. Temos de perceber tudo isto e compreender que este estado de coisas em nada tem contribuído para dar aos países emergentes a segurança do seu próprio desenvolvimento. Para além de tentar perceber, de tentar reavaliar tudo, temos também de estar, naturalmente, disponíveis para alguns sacrifícios. Não o fazendo, teremos um confronto de contornos dificilmente previsíveis. P - Senhor Presidente, uma palavra de eleição. R - Justiça, nas suas várias vertentes - como aspiração, como estado de espírito, como objectivo, como meta. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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