"Estou na primeira linha para fazer a revolução"

06-02-2004
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"Estou na Primeira Linha para Fazer a Revolução"

Sábado, 31 de Janeiro de 2004

% Rui Pereira

No ano em que celebra os 50 anos de carreira, o maestro António Victorino de Almeida vê sair no mercado uma série de discos que mostram ao público uma das suas mais importantes e desconhecidas facetas, a de compositor. Em entrevista ao Mil Folhas, fala de um percurso de vida que nem sempre escolheu e da singularidade com que combate as adversidades do sistema.

R. - A questão é antes o que eu dou à composição. É a actividade em que tenho plena consciência de que sou mais capaz e, não sendo um defensor dos canudos, é a área onde tenho maior formação. Eu sei que em Portugal as pessoas tiram cursos nas universidades das cuecas, que por vezes nem são reconhecidas, e a Maria João Pires, se quiser, não pode dar aulas num conservatório. Mas disso nem vale a pena falar. É uma realidade que me formei em Composição na Academia Superior de Viena e é a área onde tenho mais a dar. A mim é com certeza a que me dá menos.

R. - Sim. Não vamos exagerar e dizer que comecei a compor aos seis anos, mas, efectivamente, tentei começar. Escrevi os "Prelúdios para piano", curiosamente a única obra minha editada, com 14 anos. Saiu até recentemente uma gravação minha dessa altura à qual eu não reagi muito bem, pois foi feita sem o meu conhecimento e, ao anteceder o lançamento destes outros CD, poderia levar as pessoas a pensar que apenas escrevi aquele tipo de música.

R. - Não, até porque as revi todas quando tinha os meus 19 anos. No entanto, tenho que estar de acordo com o Jorge Rodrigues, do Ritornello [programa da Antena 1], e admitir que aquilo está muito bem tocado.

R. - Só não fui pianista porque este país não deixou. Quer isto dizer, eu tinha que comer. Era de facto um grande pianista e falo disso pois sei que as opiniões eram gerais. Fiz o curso de Piano em Lisboa, mas em Viena os professores da academia achavam que eu devia ser pianista. Até me ocorreu um episódio conflituoso numa altura que quis fazer um exame de piano só para obter o tal canudo e o professor ameaçou-me dizendo que não admitia que um pianista como eu fizesse exames fraudulentos só para ter um papel para mostrar no meu país. Nessa noite fomos os dois para os copos (risos). Seriamente, não tinha hipótese. Tinha já duas filhas, família e precisava de ganhar a vida, pelo que fui trabalhar para a embaixada.

"Passo a vida a trabalhar"

R. - No início fui com uma bolsa que terminaria ao fim de quatro anos. Nos últimos anos, antes de ser adido cultural, aguentei-me a dar alguns concertos, a compor para cinema, tanto na Áustria como cá, mas foi uma vida financeiramente difícil.

R. - Para mim é completamente ridícula a questão da dispersão da minha carreira, de que sou muitas vezes acusado. É certo que levo muito a sério a escrita, porque tive dois professores geniais. No meu tempo de estudante ou se fazia o conservatório e se estudava em casa, ou vice-versa. Tive a tremenda sorte de ir para o conservatório e o privilégio de ter aulas com o António José Saraiva (é uma coisa do tipo Alexandre, o Grande, com Aristóteles) e o Jorge Borges de Macedo. São duas figuras que me marcaram tremendamente e por isso levo a escrita muito a sério.

Agora, eu fui parar à televisão, e da televisão à realização, para ganhar dinheiro. Parece que ninguém percebe isso. Julgam que faço estas coisas porque me divirto muito. Não percebem que fiz o "Coronel Bombarda" para ganhar dinheiro e fazer estes discos. Independentemente do grande gosto e honra que foi trabalhar com a Maria do Céu Guerra, nunca faria teatro se não fosse para ganhar dinheiro. Na altura pensei: há 40 ou 50 anos que não publico um disco, vou usar este dinheiro para o fazer. Isto não é uma lamúria, mas acusarem-me de me dispersar é um perfeito disparate. Passo a vida a trabalhar.

R. - Vou no opus 132, sendo que "12 Prelúdios" são um "opus", ou "7 Nocturnos" outro.

R. - Não. Tenho muitas escritas para piano durante a juventude, mas a "Música antiga" que consta deste CD triplo, por exemplo, foi escrita quando eu tinha uns 20 anos. Desde cedo me interessei pela escrita orquestral. Fui aluno do Joly Braga Santos e naturalmente aprendi muito sobre orquestração. O meu "Concerto para piano", que escrevi com 19 anos, está muito bem orquestrado. Vai ser tocado pela Orquestra Nacional do Porto, em Junho. Ainda não sei o dia ao certo, mas só não pode ser em nenhum em que Portugal jogue, senão vai ser um deserto. Nem eu estaria no palco...

R. - Vou dirigir a orquestra. Ao piano vai estar uma pianista fabulosa, Ingeborg Baldaszti, uma artista internacional que já tocou com o Ashkenazy e as maiores orquestras do mundo.

R. - De forma alguma. Improviso muito bem e sei três ou quatro peças minhas. É com isso que faço o fogo todo. Não estou a fazer carreira. Para isso tinha que vestir a casaca e não fazer mais nada. Não quer isto dizer que por vezes não toque uma sonata de Beethoven, mas são coisas que vou buscar à cartola, que faço com a despreocupação de não ser concertista. Não se pode brincar com estas coisas...

R. - Ah, mas aí eu tinha conseguido dinheiro com duas digressões que fiz na Alemanha e pude estar dois meses em casa. Estudava oito horas de piano por dia e então fui pianista. Até fui recompensado com uma carta do Alfred Brendel em que ele diz que fiz a melhor gravação que existe das valsas.

R. - Não, fico muitas vezes maravilhado com o que fazem com a minha música. Uma intérprete como a Ana Bela Chaves, por exemplo, tem um domínio do instrumento que lhe permite salientar coisas que surpreendem mesmo o compositor. Geralmente o único problema que tenho com os intérpretes é em relação aos tempos. A minha música tocada devagar de mais é um horror. O que é rápido é rápido, custe o que custar. Até costumo dizer por brincadeira: toquem as notas erradas, mas os tempos certos.

Substância, não ornamento

R. - Acho que quem começa a conhecer a minha música a reconhece. A Olga Prats, o Alejandro Oliva reconhecem a minha música. Um destes dias telefonou-me o maestro Álvaro Cassuto a dizer que ouviu uma coisa na rádio e que soube imediatamente que era minha. É difícil de explicar. Quando terminei o curso em Viena, verifiquei que havia um conformismo vanguardista terrível. Os vanguardistas, quando ficam contentes, são as pessoas mais reaccionárias do mundo, porque se convencem que têm todos os álibis. Um conservador não é um reaccionário, é alguém ligado a valores do passado, o que não significa que sirva de tampão à evolução das coisas. Os vanguardistas são um tampão, uma pedra no caminho. Comecei a ver que eram uma associação de elogio mútuo. Há aquela música que diz: hoje somos cem, amanhã somos mil... Eles são precisamente o contrário: hoje somos cem, amanhã 50, depois 30, até que ficam só 20 a aplaudirem-se uns aos outros, apesar de dizerem mal uns dos outros fora da sala. O que é mau da música pimba é a previsibilidade e isso foi o que aconteceu com a música da vanguarda. Queriam chocar e já não chocavam ninguém. Passou a ser uma música de efeitos e não de conteúdo, perfeitamente baratucha.

O meu professor em Viena, que era um homem da vanguarda, costumava dizer: substância, não ornamento! A minha música tem que ter significado, uma filosofia subjacente. Para obter significados acho que temos o privilégio de viver numa época maravilhosa. O século XX é tão diverso, desde o Cage ao Rachmaninov, do jazz à bossa-nova ou ao Pierre Boulez, que é o Brahms do século XX.

É óbvio que, se faço música para um filme, escrevo algo mais ligeiro e fácil de ouvir, mas, se a função da música for outra, escrevo música dissonante ou até atonal, que são duas coisas bem diferentes.

R. - Sim, mas sou um pescador de baleias na Suíça. Não me consigo conformar com o facto de não haver meios para ouvir essa música.

R. - Não gosto. Eu digo que dirijo mal, mas sei solfejar. Há outros que dizem que dirigem bem, mas não sabem solfejar. O facto de uma pessoa saber solfejar não significa que é um chefe de orquestra. Agora, vão sair dois discos em que dirijo a Sinfónica de Viena e a Sinfónica de Linz. No entanto, continuo a dizer que não sou chefe de orquestra. Nesses CD recuperamos duas gravações antigas com o maestro Cassuto, muito bem gravadas, e quatro por mim.

R. - Em primeiro lugar ao Coronel Bombarda, a personagem que representei na televisão, uma das minhas dispersões. Ao Fernando Rocha, da Numérica, que sozinho já editou mais música clássica portuguesa que todas as outras entidades, incluindo o Estado, juntas. Deviam ter todos vergonha. Não sei o que fazem ao dinheiro, pois sei o que as coisas custam, mas também o que não custam. E, se não fosse um subsídio do ministro Manuel Carrilho, para poder pagar aos copistas, ainda estava tudo na gaveta.

A ditadura dos "lobbies"

R. - Como dizia o José Gomes Ferreira, o fascismo tem mil caras, e a ditadura também. A ditadura dos "lobbies" é uma ditadura como outra qualquer. Eles mandam, reprimem, atrofiam, só que têm outra cara. Estou na primeira linha para fazer a revolução. Não é o 25 de Abril, nem é com tanques, mas é outro tipo de revolução. As pessoas da cultura vivem na clandestinidade.

R. - Toda essa gente está nas catacumbas e muitos fazem música de enorme qualidade. Bem reparei que, quando o Santana Lopes tentou fazer uma orquestra, levantou-se um alvoroço de gente furiosa. Não queriam orquestra e até agora não há orquestra. O que temos não basta. Os compositores portugueses conseguem estrear uma peça sinfónica de quatro em quatro anos e estamos a destruir uma geração de ouro de intérpretes.

R. - Sim, mas a nossa geração de ouro não é a Maria João Pires. Ela podia ter nascido em qualquer país do mundo. É uma excepção. Porque não apoiam a música de câmara, em vez de só pensarem em orquestras de quarto de cauda? Há grandes músicos em Portugal e condições para o fazer. Mas chamo outra vez a atenção para uma coisa: há x nomes aos quais se acrescenta o adjectivo coitado. Fulano, coitado! São esses que mandam e dão-lhes o poder para os compensarem por não saberem fazer nada. Já ouviu alguém dizer o António Rosado, coitado!, ou o Pedro Burmester, coitado!? Não. Os coitados são uma seita.

Edições recentes

"Músicas da Minha Vida" - Ed. Dom Quixote, 235 pp.

"É um livro despretensioso, muito sincero, que escrevi a olhar para a minha estante de CD e que por uma questão de metodologia organizei desde a Idade Média até hoje. É um guia de audição da história da música ocidental. As pessoas estão a aderir de uma forma surpreendente. É utópico pensar que possam comprar todos os discos, mas não é mau se ouvirem alguns."

Música de Câmara

3CD - Numérica 1109

Um CD triplo que reúne obras escritas durante um longo período e que conta com algumas excelentes interpretações de músicos portugueses. Desde o humor de alguma música para teatro ao semblante mais sério de uma linha erudita, é uma mostra da variedade estilística do compositor.

Música para piano

Numérica 1110

Ingeborg Baldaszti - piano

Uma pianista predilecta do maestro António Victorino de Almeida interpreta as sonatas nº 4 e 7, bem como os "Sete Nocturnos" dedicados a Maria João Pires. Segundo o recente livro do maestro, Ingeborg Baldaszti é uma referência em grandes obras do repertório, tais como a Sonata de Liszt.

"Oito Prelúdios"

Movieplay 11056

António Victorino de Almeida - piano

Apesar de já não se rever nesta estética musical, escrita quando o compositor tinha cerca de 14 anos, este é um testemunho de um grande talento precoce e de qualidades pianísticas raras num jovem. Algumas das peças constam do programa oficial dos conservatórios nacionais de música, mas quase nunca são tocadas com este nível interpretativo.

destaques, se necessários:

O meu "Concerto para piano" vai ser tocado pela Orquestra Nacional do Porto, em Junho. Ainda não sei o dia ao certo, mas só não pode ser em nenhum em que Portugal jogue, senão vai ser um deserto. Nem eu estaria no palco...

Os vanguardistas, quando ficam contentes, são as pessoas mais reaccionárias do mundo

Sou um pescador de baleias na Suíça

Os compositores portugueses conseguem estrear uma peça sinfónica de quatro em quatro anos e estamos a destruir uma geração de ouro de intérpretes

"Estou na Primeira Linha para Fazer a Revolução"

Sábado, 31 de Janeiro de 2004

% Rui Pereira

No ano em que celebra os 50 anos de carreira, o maestro António Victorino de Almeida vê sair no mercado uma série de discos que mostram ao público uma das suas mais importantes e desconhecidas facetas, a de compositor. Em entrevista ao Mil Folhas, fala de um percurso de vida que nem sempre escolheu e da singularidade com que combate as adversidades do sistema.

R. - A questão é antes o que eu dou à composição. É a actividade em que tenho plena consciência de que sou mais capaz e, não sendo um defensor dos canudos, é a área onde tenho maior formação. Eu sei que em Portugal as pessoas tiram cursos nas universidades das cuecas, que por vezes nem são reconhecidas, e a Maria João Pires, se quiser, não pode dar aulas num conservatório. Mas disso nem vale a pena falar. É uma realidade que me formei em Composição na Academia Superior de Viena e é a área onde tenho mais a dar. A mim é com certeza a que me dá menos.

R. - Sim. Não vamos exagerar e dizer que comecei a compor aos seis anos, mas, efectivamente, tentei começar. Escrevi os "Prelúdios para piano", curiosamente a única obra minha editada, com 14 anos. Saiu até recentemente uma gravação minha dessa altura à qual eu não reagi muito bem, pois foi feita sem o meu conhecimento e, ao anteceder o lançamento destes outros CD, poderia levar as pessoas a pensar que apenas escrevi aquele tipo de música.

R. - Não, até porque as revi todas quando tinha os meus 19 anos. No entanto, tenho que estar de acordo com o Jorge Rodrigues, do Ritornello [programa da Antena 1], e admitir que aquilo está muito bem tocado.

R. - Só não fui pianista porque este país não deixou. Quer isto dizer, eu tinha que comer. Era de facto um grande pianista e falo disso pois sei que as opiniões eram gerais. Fiz o curso de Piano em Lisboa, mas em Viena os professores da academia achavam que eu devia ser pianista. Até me ocorreu um episódio conflituoso numa altura que quis fazer um exame de piano só para obter o tal canudo e o professor ameaçou-me dizendo que não admitia que um pianista como eu fizesse exames fraudulentos só para ter um papel para mostrar no meu país. Nessa noite fomos os dois para os copos (risos). Seriamente, não tinha hipótese. Tinha já duas filhas, família e precisava de ganhar a vida, pelo que fui trabalhar para a embaixada.

"Passo a vida a trabalhar"

R. - No início fui com uma bolsa que terminaria ao fim de quatro anos. Nos últimos anos, antes de ser adido cultural, aguentei-me a dar alguns concertos, a compor para cinema, tanto na Áustria como cá, mas foi uma vida financeiramente difícil.

R. - Para mim é completamente ridícula a questão da dispersão da minha carreira, de que sou muitas vezes acusado. É certo que levo muito a sério a escrita, porque tive dois professores geniais. No meu tempo de estudante ou se fazia o conservatório e se estudava em casa, ou vice-versa. Tive a tremenda sorte de ir para o conservatório e o privilégio de ter aulas com o António José Saraiva (é uma coisa do tipo Alexandre, o Grande, com Aristóteles) e o Jorge Borges de Macedo. São duas figuras que me marcaram tremendamente e por isso levo a escrita muito a sério.

Agora, eu fui parar à televisão, e da televisão à realização, para ganhar dinheiro. Parece que ninguém percebe isso. Julgam que faço estas coisas porque me divirto muito. Não percebem que fiz o "Coronel Bombarda" para ganhar dinheiro e fazer estes discos. Independentemente do grande gosto e honra que foi trabalhar com a Maria do Céu Guerra, nunca faria teatro se não fosse para ganhar dinheiro. Na altura pensei: há 40 ou 50 anos que não publico um disco, vou usar este dinheiro para o fazer. Isto não é uma lamúria, mas acusarem-me de me dispersar é um perfeito disparate. Passo a vida a trabalhar.

R. - Vou no opus 132, sendo que "12 Prelúdios" são um "opus", ou "7 Nocturnos" outro.

R. - Não. Tenho muitas escritas para piano durante a juventude, mas a "Música antiga" que consta deste CD triplo, por exemplo, foi escrita quando eu tinha uns 20 anos. Desde cedo me interessei pela escrita orquestral. Fui aluno do Joly Braga Santos e naturalmente aprendi muito sobre orquestração. O meu "Concerto para piano", que escrevi com 19 anos, está muito bem orquestrado. Vai ser tocado pela Orquestra Nacional do Porto, em Junho. Ainda não sei o dia ao certo, mas só não pode ser em nenhum em que Portugal jogue, senão vai ser um deserto. Nem eu estaria no palco...

R. - Vou dirigir a orquestra. Ao piano vai estar uma pianista fabulosa, Ingeborg Baldaszti, uma artista internacional que já tocou com o Ashkenazy e as maiores orquestras do mundo.

R. - De forma alguma. Improviso muito bem e sei três ou quatro peças minhas. É com isso que faço o fogo todo. Não estou a fazer carreira. Para isso tinha que vestir a casaca e não fazer mais nada. Não quer isto dizer que por vezes não toque uma sonata de Beethoven, mas são coisas que vou buscar à cartola, que faço com a despreocupação de não ser concertista. Não se pode brincar com estas coisas...

R. - Ah, mas aí eu tinha conseguido dinheiro com duas digressões que fiz na Alemanha e pude estar dois meses em casa. Estudava oito horas de piano por dia e então fui pianista. Até fui recompensado com uma carta do Alfred Brendel em que ele diz que fiz a melhor gravação que existe das valsas.

R. - Não, fico muitas vezes maravilhado com o que fazem com a minha música. Uma intérprete como a Ana Bela Chaves, por exemplo, tem um domínio do instrumento que lhe permite salientar coisas que surpreendem mesmo o compositor. Geralmente o único problema que tenho com os intérpretes é em relação aos tempos. A minha música tocada devagar de mais é um horror. O que é rápido é rápido, custe o que custar. Até costumo dizer por brincadeira: toquem as notas erradas, mas os tempos certos.

Substância, não ornamento

R. - Acho que quem começa a conhecer a minha música a reconhece. A Olga Prats, o Alejandro Oliva reconhecem a minha música. Um destes dias telefonou-me o maestro Álvaro Cassuto a dizer que ouviu uma coisa na rádio e que soube imediatamente que era minha. É difícil de explicar. Quando terminei o curso em Viena, verifiquei que havia um conformismo vanguardista terrível. Os vanguardistas, quando ficam contentes, são as pessoas mais reaccionárias do mundo, porque se convencem que têm todos os álibis. Um conservador não é um reaccionário, é alguém ligado a valores do passado, o que não significa que sirva de tampão à evolução das coisas. Os vanguardistas são um tampão, uma pedra no caminho. Comecei a ver que eram uma associação de elogio mútuo. Há aquela música que diz: hoje somos cem, amanhã somos mil... Eles são precisamente o contrário: hoje somos cem, amanhã 50, depois 30, até que ficam só 20 a aplaudirem-se uns aos outros, apesar de dizerem mal uns dos outros fora da sala. O que é mau da música pimba é a previsibilidade e isso foi o que aconteceu com a música da vanguarda. Queriam chocar e já não chocavam ninguém. Passou a ser uma música de efeitos e não de conteúdo, perfeitamente baratucha.

O meu professor em Viena, que era um homem da vanguarda, costumava dizer: substância, não ornamento! A minha música tem que ter significado, uma filosofia subjacente. Para obter significados acho que temos o privilégio de viver numa época maravilhosa. O século XX é tão diverso, desde o Cage ao Rachmaninov, do jazz à bossa-nova ou ao Pierre Boulez, que é o Brahms do século XX.

É óbvio que, se faço música para um filme, escrevo algo mais ligeiro e fácil de ouvir, mas, se a função da música for outra, escrevo música dissonante ou até atonal, que são duas coisas bem diferentes.

R. - Sim, mas sou um pescador de baleias na Suíça. Não me consigo conformar com o facto de não haver meios para ouvir essa música.

R. - Não gosto. Eu digo que dirijo mal, mas sei solfejar. Há outros que dizem que dirigem bem, mas não sabem solfejar. O facto de uma pessoa saber solfejar não significa que é um chefe de orquestra. Agora, vão sair dois discos em que dirijo a Sinfónica de Viena e a Sinfónica de Linz. No entanto, continuo a dizer que não sou chefe de orquestra. Nesses CD recuperamos duas gravações antigas com o maestro Cassuto, muito bem gravadas, e quatro por mim.

R. - Em primeiro lugar ao Coronel Bombarda, a personagem que representei na televisão, uma das minhas dispersões. Ao Fernando Rocha, da Numérica, que sozinho já editou mais música clássica portuguesa que todas as outras entidades, incluindo o Estado, juntas. Deviam ter todos vergonha. Não sei o que fazem ao dinheiro, pois sei o que as coisas custam, mas também o que não custam. E, se não fosse um subsídio do ministro Manuel Carrilho, para poder pagar aos copistas, ainda estava tudo na gaveta.

A ditadura dos "lobbies"

R. - Como dizia o José Gomes Ferreira, o fascismo tem mil caras, e a ditadura também. A ditadura dos "lobbies" é uma ditadura como outra qualquer. Eles mandam, reprimem, atrofiam, só que têm outra cara. Estou na primeira linha para fazer a revolução. Não é o 25 de Abril, nem é com tanques, mas é outro tipo de revolução. As pessoas da cultura vivem na clandestinidade.

R. - Toda essa gente está nas catacumbas e muitos fazem música de enorme qualidade. Bem reparei que, quando o Santana Lopes tentou fazer uma orquestra, levantou-se um alvoroço de gente furiosa. Não queriam orquestra e até agora não há orquestra. O que temos não basta. Os compositores portugueses conseguem estrear uma peça sinfónica de quatro em quatro anos e estamos a destruir uma geração de ouro de intérpretes.

R. - Sim, mas a nossa geração de ouro não é a Maria João Pires. Ela podia ter nascido em qualquer país do mundo. É uma excepção. Porque não apoiam a música de câmara, em vez de só pensarem em orquestras de quarto de cauda? Há grandes músicos em Portugal e condições para o fazer. Mas chamo outra vez a atenção para uma coisa: há x nomes aos quais se acrescenta o adjectivo coitado. Fulano, coitado! São esses que mandam e dão-lhes o poder para os compensarem por não saberem fazer nada. Já ouviu alguém dizer o António Rosado, coitado!, ou o Pedro Burmester, coitado!? Não. Os coitados são uma seita.

Edições recentes

"Músicas da Minha Vida" - Ed. Dom Quixote, 235 pp.

"É um livro despretensioso, muito sincero, que escrevi a olhar para a minha estante de CD e que por uma questão de metodologia organizei desde a Idade Média até hoje. É um guia de audição da história da música ocidental. As pessoas estão a aderir de uma forma surpreendente. É utópico pensar que possam comprar todos os discos, mas não é mau se ouvirem alguns."

Música de Câmara

3CD - Numérica 1109

Um CD triplo que reúne obras escritas durante um longo período e que conta com algumas excelentes interpretações de músicos portugueses. Desde o humor de alguma música para teatro ao semblante mais sério de uma linha erudita, é uma mostra da variedade estilística do compositor.

Música para piano

Numérica 1110

Ingeborg Baldaszti - piano

Uma pianista predilecta do maestro António Victorino de Almeida interpreta as sonatas nº 4 e 7, bem como os "Sete Nocturnos" dedicados a Maria João Pires. Segundo o recente livro do maestro, Ingeborg Baldaszti é uma referência em grandes obras do repertório, tais como a Sonata de Liszt.

"Oito Prelúdios"

Movieplay 11056

António Victorino de Almeida - piano

Apesar de já não se rever nesta estética musical, escrita quando o compositor tinha cerca de 14 anos, este é um testemunho de um grande talento precoce e de qualidades pianísticas raras num jovem. Algumas das peças constam do programa oficial dos conservatórios nacionais de música, mas quase nunca são tocadas com este nível interpretativo.

destaques, se necessários:

O meu "Concerto para piano" vai ser tocado pela Orquestra Nacional do Porto, em Junho. Ainda não sei o dia ao certo, mas só não pode ser em nenhum em que Portugal jogue, senão vai ser um deserto. Nem eu estaria no palco...

Os vanguardistas, quando ficam contentes, são as pessoas mais reaccionárias do mundo

Sou um pescador de baleias na Suíça

Os compositores portugueses conseguem estrear uma peça sinfónica de quatro em quatro anos e estamos a destruir uma geração de ouro de intérpretes

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