Espaço Público

20-09-2003
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O PS Implodiu?

Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Quinta-feira, 18 de Setembro de 2003 Talvez o melhor retrato do PS, nos dias de hoje, se encontre num artigo de José Saraiva no "Jornal de Notícias" de ontem, intitulado "Um mestre e o seu tabuleiro". Ninguém repara nestes artigos e, no entanto, eles são o melhor retrato da mentalidade e da sociabilidade da política portuguesa. Quando esta desce perto do zero, produz destas coisas. O "mestre" é o eng. Orlando Gaspar e o "tabuleiro" é o PS-Porto, onde a personagem do "mestre" se move há dezenas de anos. A "jogada" do "mestre" ou o "rugido" do leão, como também a descreve Saraiva, foi ter ido almoçar com Narciso de Miranda: "No PS-Porto, um simples almoço entre duas personalidades - Narciso Miranda e Orlando Gaspar - provocou um evidente desconforto e um nervosismo invulgar. Como é que, de repente, o homem que tinha decidido a mudança no Porto decidira, outra vez, sentar-se à mesa e comungar uma troca de ideias - convergindo? - com Narciso? Ademais, levou consigo e não certamente para servir de testemunha o seu sucessor à frente da 'concelhia' portuense e putativo candidato, no Outubro de 2005, à Câmara do Porto. À surpresa, uns reagiram inicialmente com bonomia, mas à amplificação jornalística, a resposta denunciava já uma indisfarçável irritação... Outros, impensadamente, talvez tenham esfregado as mãos de contentamento e talvez até tenham feito contas de cabeça..." Mas o que é isto? O que é que isto tem a ver com qualquer problema nacional, ou sequer local, com qualquer ideia, qualquer debate político, qualquer pretensão, vaga que seja, a uma actividade de carácter cívico? E quando se lê o que vem a seguir, ainda o ridículo é mais poderoso: "O engenheiro Gaspar, silencioso, sorriu. Com desdém olha para uns e para outros, como um 'mestre' para o tabuleiro que está colocado diante de si. Tem consciência de que lançou um aviso sério à navegação." Aqui está um homem de Estado no seu esplendor majestático, o engenheiro Gaspar. É a isto que estão reduzidos o maior partido da oposição e a alternativa democrática necessária? Como é que, num dos mais importantes jornais portugueses, numa coluna de opinião que, pela sua natureza, é um espaço raro, um homem que foi deputado da nação, dirigente local, director desse mesmo jornal onde escreve, jornalista, e, por isso mesmo, capaz de medir a importância do que se diz, acha que há um qualquer português, portuense que seja, interessado no "desdém" do engenheiro Gaspar, um dirigente local do PS incrustado eternamente nos lugares autárquicos e partidários do Porto, por razões que só os socialistas conhecerão. O artigo revela que Saraiva não sente qualquer constrangimento em escrever sobre estas minudências, e que o ar que se respira na casa socialista não é movido por nenhum combate nacional do partido, nenhum sentimento de exigência cívica, nenhum problema que os socialistas entendam que podem resolver melhor do que o Governo, sequer por nenhuma vontade de ganhar um voto que seja atacando os seus adversários. É verdade que, no meu partido, no PSD, há coisas semelhantes, e basta ler alguns jornais locais para perceber a similitude na mediocridade e no conflito de pequenas influências, sem qualquer dimensão que não sejam invejas, ressentimentos e procura desesperada de lugares. Mas o que torna o artigo de Saraiva gritante é a dimensão que ele toma pela ausência de qualquer outra actividade significativa dos socialistas, o imenso vazio de causas que vai da base ao topo. Nem sequer deram atenção a um dos discursos mais à direita feito recentemente no espectro político português. Várias vezes isto aconteceu e eu não menosprezo as enormes dificuldades de afirmação de um partido na oposição. Hoje o PS, e ontem o PSD sofreram o efeito do poder do outro, a rarefacção que se dá na vida pública da voz alternativa quando se está na mó de baixo. Sei também que este tipo de constatações tendem a ser periódicas e são muitas vezes injustas. Aparecem quando a vontade de novidade mediática não encontra objecto. Vítor Constâncio, de quem já ninguém se lembra como dirigente do PS, foi vítima de uma campanha sobre o seu "desaparecimento", e Durão Barroso foi muitas vezes criticado pela ineficácia da sua oposição. Só que agora, pensado e ponderado tudo isto, a questão parece-me existir e ser sólida - passa-se de facto algo de errado com o PS e a sua liderança, que não é redutível às dificuldades de fazer oposição. Há uma génese dupla nos problemas que justificam a implosão do PS, um conjuntural e outro estrutural. O conjuntural tem a ver com a hipoteca completamente insensata em que a direcção de Ferro Rodrigues se colocou face ao processo da pedofilia. Desde o primeiro minuto, era óbvio que uma coisa era a solidariedade pessoal que os membros da direcção socialista, amigos de Pedroso, lhe poderiam dar sem limites e outra seria o comprometimento da direcção do partido nos resultados do processo, fazendo depender o PS de se saber se Pedroso era culpado ou inocente. Ferro Rodrigues cometeu aí o erro que, mais cedo ou mais tarde, o afastará da direcção do PS. Fê-lo por desprendimento, mas a verdade é que não cumpriu com as suas responsabilidades, nem com o PS, nem com Pedroso. Para envolver o PS, como envolveu, no processo de pedofilia, Ferro Rodrigues só podia ter uma justificação: a de pensar que a prisão de Pedroso era uma manobra conspiratória do poder contra o PS. Esta interpretação foi esboçada com a "cabala", mas nunca teve a continuidade que a gravidade da insinuação implicava. Se a prisão de Pedroso era o sinal de uma perseguição política ao PS, este deveria estar nas ruas a manifestar-se contra o fim da democracia em Portugal. Se a "cabala" fosse tomada a sério, o poder político e os juízes estariam a participar numa conspiração contra a democracia em Portugal e um partido como o PS não poderia estar a fazer nada menos do que a denunciá-la. A tese da "cabala" é suficientemente grave para não poder servir para avanços e recuos e não pode ser enunciada numa linguagem que não passa da insinuação e por isso a desacredita. O problema estrutural já vinha de antes e não tem novidade, a não ser o seu arrastamento: o PS não tem uma estratégia clara sobre se pretende confrontar o PSD no centro do espectro político, como Guterres fez, ou dirigir uma frente de esquerda contra um governo que a coligação com o PP desloca para a direita. Não é possível compatibilizar estas duas estratégias porque elas são mutuamente exclusivas. No primeiro caso, o PS recusará qualquer aliança com o PCP e o BE (que, convém lembrar, é um partido mais à esquerda do que o PCP) e limitar-se-á a tentar servir de pólo de atracção no centro do espectro político aos "renovadores" do PCP e ao descontentamento gerado pela presença do PP no Governo. No segundo caso, o PS aliar-se-á com o PCP e eventualmente com o BE. Há indicadores de que Ferro Rodrigues prefere esta via, para que muita gente no PS, incluindo um Mário Soares mais à esquerda do que o BE, o empurra. As posições sobre matérias de Estado fundamentais, como a política externa, o crescente antiamericanismo, a recente participação no Fórum Social Português, as declarações sobre o envio de forças para o Iraque estão longe da tradição socialista de entendimento "central" com o PSD. Não me sobram dúvidas de que, a curto prazo, é o problema conjuntural que explica o vazio em que nascem artigos como o de Saraiva. O PS tem uma tradição de ambiguidade estratégica e, embora essa oscilação política lhe traga estragos, é capaz de sobreviver saltando de uma posição para outra. Mas o absurdo e insensato comprometimento da direcção do PS num processo criminal de costumes, aquele que mais longe está das margens da política, que diz respeito a comportamentos individuais irredutíveis a qualquer sociabilidade transparente, é o que cria um hiato na política, uma suspensão do oxigénio socialista, deixando o PS impotente. O PS implodiu e, neste caso, a responsabilidade é exclusiva da direcção de Ferro Rodrigues. Por estranho que pareça, ele, que politicamente está a milhas do artigo de Saraiva, criou a ecologia em que este pode ser escrito. Se o PS estivesse "em luta", José Saraiva dificilmente teria condições para, num jornal nacional, falar do seu "mestre" e das suas jogadas. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

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"Não foi só mais uma ponte que caiu"

"Universal baixa em 30 por cento o preço dos discos nos EUA"

Ministro da Educação não fala verdade

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Ademais, levou consigo e não certamente para servir de testemunha o seu sucessor à frente da 'concelhia' portuense e putativo candidato, no Outubro de 2005, à Câmara do Porto. À surpresa, uns reagiram inicialmente com bonomia, mas à amplificação jornalística, a resposta denunciava já uma indisfarçável irritação... Outros, impensadamente, talvez tenham esfregado as mãos de contentamento e talvez até tenham feito contas de cabeça..." Mas o que é isto? O que é que isto tem a ver com qualquer problema nacional, ou sequer local, com qualquer ideia, qualquer debate político, qualquer pretensão, vaga que seja, a uma actividade de carácter cívico? E quando se lê o que vem a seguir, ainda o ridículo é mais poderoso: "O engenheiro Gaspar, silencioso, sorriu. Com desdém olha para uns e para outros, como um 'mestre' para o tabuleiro que está colocado diante de si. Tem consciência de que lançou um aviso sério à navegação." Aqui está um homem de Estado no seu esplendor majestático, o engenheiro Gaspar. É a isto que estão reduzidos o maior partido da oposição e a alternativa democrática necessária? Como é que, num dos mais importantes jornais portugueses, numa coluna de opinião que, pela sua natureza, é um espaço raro, um homem que foi deputado da nação, dirigente local, director desse mesmo jornal onde escreve, jornalista, e, por isso mesmo, capaz de medir a importância do que se diz, acha que há um qualquer português, portuense que seja, interessado no "desdém" do engenheiro Gaspar, um dirigente local do PS incrustado eternamente nos lugares autárquicos e partidários do Porto, por razões que só os socialistas conhecerão. O artigo revela que Saraiva não sente qualquer constrangimento em escrever sobre estas minudências, e que o ar que se respira na casa socialista não é movido por nenhum combate nacional do partido, nenhum sentimento de exigência cívica, nenhum problema que os socialistas entendam que podem resolver melhor do que o Governo, sequer por nenhuma vontade de ganhar um voto que seja atacando os seus adversários. É verdade que, no meu partido, no PSD, há coisas semelhantes, e basta ler alguns jornais locais para perceber a similitude na mediocridade e no conflito de pequenas influências, sem qualquer dimensão que não sejam invejas, ressentimentos e procura desesperada de lugares. Mas o que torna o artigo de Saraiva gritante é a dimensão que ele toma pela ausência de qualquer outra actividade significativa dos socialistas, o imenso vazio de causas que vai da base ao topo. Nem sequer deram atenção a um dos discursos mais à direita feito recentemente no espectro político português. Várias vezes isto aconteceu e eu não menosprezo as enormes dificuldades de afirmação de um partido na oposição. Hoje o PS, e ontem o PSD sofreram o efeito do poder do outro, a rarefacção que se dá na vida pública da voz alternativa quando se está na mó de baixo. Sei também que este tipo de constatações tendem a ser periódicas e são muitas vezes injustas. Aparecem quando a vontade de novidade mediática não encontra objecto. Vítor Constâncio, de quem já ninguém se lembra como dirigente do PS, foi vítima de uma campanha sobre o seu "desaparecimento", e Durão Barroso foi muitas vezes criticado pela ineficácia da sua oposição. Só que agora, pensado e ponderado tudo isto, a questão parece-me existir e ser sólida - passa-se de facto algo de errado com o PS e a sua liderança, que não é redutível às dificuldades de fazer oposição. Há uma génese dupla nos problemas que justificam a implosão do PS, um conjuntural e outro estrutural. O conjuntural tem a ver com a hipoteca completamente insensata em que a direcção de Ferro Rodrigues se colocou face ao processo da pedofilia. Desde o primeiro minuto, era óbvio que uma coisa era a solidariedade pessoal que os membros da direcção socialista, amigos de Pedroso, lhe poderiam dar sem limites e outra seria o comprometimento da direcção do partido nos resultados do processo, fazendo depender o PS de se saber se Pedroso era culpado ou inocente. Ferro Rodrigues cometeu aí o erro que, mais cedo ou mais tarde, o afastará da direcção do PS. Fê-lo por desprendimento, mas a verdade é que não cumpriu com as suas responsabilidades, nem com o PS, nem com Pedroso. Para envolver o PS, como envolveu, no processo de pedofilia, Ferro Rodrigues só podia ter uma justificação: a de pensar que a prisão de Pedroso era uma manobra conspiratória do poder contra o PS. Esta interpretação foi esboçada com a "cabala", mas nunca teve a continuidade que a gravidade da insinuação implicava. Se a prisão de Pedroso era o sinal de uma perseguição política ao PS, este deveria estar nas ruas a manifestar-se contra o fim da democracia em Portugal. Se a "cabala" fosse tomada a sério, o poder político e os juízes estariam a participar numa conspiração contra a democracia em Portugal e um partido como o PS não poderia estar a fazer nada menos do que a denunciá-la. A tese da "cabala" é suficientemente grave para não poder servir para avanços e recuos e não pode ser enunciada numa linguagem que não passa da insinuação e por isso a desacredita. O problema estrutural já vinha de antes e não tem novidade, a não ser o seu arrastamento: o PS não tem uma estratégia clara sobre se pretende confrontar o PSD no centro do espectro político, como Guterres fez, ou dirigir uma frente de esquerda contra um governo que a coligação com o PP desloca para a direita. Não é possível compatibilizar estas duas estratégias porque elas são mutuamente exclusivas. No primeiro caso, o PS recusará qualquer aliança com o PCP e o BE (que, convém lembrar, é um partido mais à esquerda do que o PCP) e limitar-se-á a tentar servir de pólo de atracção no centro do espectro político aos "renovadores" do PCP e ao descontentamento gerado pela presença do PP no Governo. No segundo caso, o PS aliar-se-á com o PCP e eventualmente com o BE. Há indicadores de que Ferro Rodrigues prefere esta via, para que muita gente no PS, incluindo um Mário Soares mais à esquerda do que o BE, o empurra. As posições sobre matérias de Estado fundamentais, como a política externa, o crescente antiamericanismo, a recente participação no Fórum Social Português, as declarações sobre o envio de forças para o Iraque estão longe da tradição socialista de entendimento "central" com o PSD. Não me sobram dúvidas de que, a curto prazo, é o problema conjuntural que explica o vazio em que nascem artigos como o de Saraiva. O PS tem uma tradição de ambiguidade estratégica e, embora essa oscilação política lhe traga estragos, é capaz de sobreviver saltando de uma posição para outra. Mas o absurdo e insensato comprometimento da direcção do PS num processo criminal de costumes, aquele que mais longe está das margens da política, que diz respeito a comportamentos individuais irredutíveis a qualquer sociabilidade transparente, é o que cria um hiato na política, uma suspensão do oxigénio socialista, deixando o PS impotente. O PS implodiu e, neste caso, a responsabilidade é exclusiva da direcção de Ferro Rodrigues. Por estranho que pareça, ele, que politicamente está a milhas do artigo de Saraiva, criou a ecologia em que este pode ser escrito. Se o PS estivesse "em luta", José Saraiva dificilmente teria condições para, num jornal nacional, falar do seu "mestre" e das suas jogadas. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

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