António José Saraiva

02-04-2003
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António José Saraiva

Por POR CARLOS CÂMARA LEME

Segunda-feira, 17 de Março de 2003 O semeador de estrelas Ao fim da tarde de 18 de Março de 1993, na sede da Associação Portuguesa de Escritores, em Lisboa, António José Saraiva ia começar a falar. Acabara de receber o Prémio de Ensaio da Associação Internacional de Críticos, pelo seu último livro "História e Utopia - Ensaios sobre Vieira". Muito debilitado, levantou-se da cadeira e já não se percebeu muito bem o que disse. A verdade, porém, é que se emocionou e caiu. Levado para o Hospital da CUF, chegou já sem vida. Acabara de morrer uma das personalidades mais polémicas e apaixonantes da segunda metade do século XX português. Natural de Leiria, onde nasceu a 31 de Dezembro de 1917 - o ano da Revolução russa, que virá a marcar tanto a sua vida - o primeiro acontecimento que lembrava era uma meningite aos 14 anos, altura em que devora os clássicos, filão que nunca mais abandonará. A vermelhinha... Chega à Faculdade de Letras de Lisboa nos anos 40, onde se forma em Filologia Românica, com uma tese sobre Bernardim Ribeiro. Dois anos depois, doutora-se com "Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval". Passa a assistente de Vitorino Nemésio mas incompatibiliza-se com o açoriano. Levantam-lhe um processo disciplinar e vai dar aulas para o Liceu Passos Manuel onde, não só o seu pai era reitor, como encontra o seu amigo de sempre, Óscar Lopes. Ambos tinham admiração por Salazar. Em 1991, quando o "Expresso" lhe perguntou qual tinha sido para ele o melhor primeiro-ministro português, nem pestaneja: Salazar. Ainda hoje a declaração é discutível. "Não penso que no final da vida tivesse um especial respeito pelo Salazar ou se tivesse tornado um homem de direita. Julgo que ele queria acertar contas consigo próprio e que, se calhar, sentia ter sido injusto, quando comunista, por ter dito tanto mal do Salazar", diz Teresa Rita Lopes. Revisionista, no sentido de uma autocrítica permanente, como recordou ao PÚBLICO Óscar Lopes, Saraiva "era um homem aberto ao diálogo". "Discutia tudo. No fundo não tinha grandes convicções. Talvez tenha sido daí a minha aproximação". Uma aproximação que desaguará na "História da Literatura Portuguesa" - "a vermelhinha", como era apelidada na altura e que, até hoje, constitui uma obra de referência obrigatória. Dez anos antes, António José Saraiva tem outra aproximação, a uma mulher, Maria Isabel Saraiva (a mãe dos seus três filhos). Tudo aconteceu depois de uma aula sobre Padre António Vieira. Maria Isabel criticou alguns pontos de vista do mestre. No fim, Saraiva abordou-a: "A menina não se importa de desenvolver o que disse? Gostei muito de a ouvir. As suas palavras parece que ficam a dançar no ar." Estávamos em Junho de 1943. Depois de uma correspondência febril, ("Só para meu Amor é sempre Maio", Gradiva, a editora que está a reeditar a sua obra), Maria Isabel e António José casam no Mosteiro dos Jerónimos, a 16 de Outubro. Em 1943, o escritor vai leccionar para Viana do Castelo. Dos anos minhotos saem alguns dos seus ensaios mais lúcidos: "Para a História da Cultura em Portugal" ou "As Ideias de Eça de Queirós". No ano seguinte, entra para o PCP e rapidamente já é um comunista ortoxodo, puro e duro. Mas como é que se dá a mudança? "O António achava que todos tínhamos que ser iguais. E convenceu-se que o comunismo era a realização desses ideais. O que ia ao encontro de uma coisa que era profunda nele - o seu espírito franciscano. Dentro da cabeça do António houve uma união entre o franciscanismo e o comunismo", é a tese de Maria Isabel Saraiva. Teresa Rita Lopes, que só conhecerá António José Saraiva em Paris, no início dos anos 60 - e manterá com o ensaísta um "emparceiramento de longa duração" - dá outra explicação: "A entrada dele no PCP é um acto de resistência. Ele teve uma relação passional como o PC. E, como todas as relações passionais, deixam um grande sulco. Era um apaixonado de sua natureza." Da mesma forma, que, acrescenta, ele sentir-se-á "interiormente traído com o comunismo porque pensou que a causa era uma coisa e depois, a prática, revelou-se-lhe outra. Sentiu-se traído como por uma mulher". Preso pela PIDE, demitido do ensino, chega a Paris, como exilado, em 1961. Um ano antes publica "O Dicionário Crítico de Algumas ideias e Palavras Correntes" (apreendido pelo regime salazarista). Mas a ruptura com o PC já tinha começado em 1956. No prólogo do "Dicionário", de 1983, nota: "Começou em mim um processo irreversível, lento mas irreversível [de afastamento do marxismo]." "Sou israelita!" Primeiro, ficara indignado com o fuzilamento pelos russos de Imre Nagy, que liderara a insurreição de Budapeste, em 1962. No mesmo ano, a gota de água transborda em Moscovo com... Cunhal. Saraiva, com Maria Lamas, tinha redigido um discurso contra a Guerra Colonial para ler no Congresso pela Paz e Desarmamento. Cunhal diz-lhe que "os camaradas soviéticos não queriam que se falasse na guerra colonial". Saraiva desiste de "recitar como um papagaio". Sai da tribuna e bate, para sempre, com a porta aos amanhãs que cantam. Mas numa manhã de Paris, onde era bolseiro no Centre National de la Recherce Scientifique, a cidade incendeia-se. António José fica entusiasmado e vai para as barricadas com os estudantes. "Ele e a Maria Lamas viveram aquilo com uma intensidade de meninos. A janela dela era o nosso camarote da revolução", conta Rita Lopes. Maio 68 marca, definitivamente, a ruptura de Saraiva apesar de, como se interrogava ao "Expresso", em 1990, não ter percebido o que se passou debaixo do seus olhos. Como podiam os burgueses alimentar os estudantes desordeiros que incendiaram Paris? No rescaldo de 68, escreve, com o pseudónimo de João Cândido, "Maio e a Crise da Civilização Burguesa", que desencadeia uma outra polémica, sobretudo com Sottomayor Cardia. Afirma, qual mosqueteiro português, que "contrariamente ao que se geralmente se diz, a doutrina marxista não é exterior, e muito menos oposta à mentalidade burguesa. Ela nasce dentro da cultura burguesa e as suas teses são consequências do ponto de vista burguês". E, brutal, acrescenta: "Só há verdadeira crise revolucionária lá onde as duas culturas se combatem. Se não fosse o meu receio pela relutância pelas fórmulas publicitárias (...) diria que toda a revolução é cultural." O escândalo instala-se. Como acontecerá com Silva-Révah, aquando da publicação de "Inquisição e Cristãos-Novos", em 1969. A sua tese era a de que os judeus permaneceram em Portugal e se assimilaram. Porém, em 1991, ao PÚBLICO, exclama: "Eu sou israelita! Não me peça para lhe explicar. É uma coisa subjectiva." Um agudo sentido crítico Adere à Revolução dos Cravos e mete-se num avião em Amesterdão, onde então leccionava, para participar no 1º de Maio. "Parecia uma criança", recordou ao PÚBLICO um empregado do café Tentadora, em Campo de Ourique, o bairro que tanto amou. Rapidamente desilude-se: "Ele é um indisciplinador de almas, como Pessoa", afirma Rita Lopes. "O que é que aconteceu? Odiava o óbvio e ficou horrorizado com aquelas multidões a brandir a sua verdade." Demolidor, desanca nos Capitães de Abril e no processo de descolonização. Em 1979, no Centro Nacional de Cultura (onde animou a revista "Raiz & Utopia") não está com meias palavras. Acusa-os de terem deixado as colónias "como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles". Em 1988, com "O Crepúsculo da Idade Média em Portugal" e, sobretudo com "A Tertúlia Ocidental" (um livro-quase-romance em torno de Eça, Antero e Oliveira Martins), confirma o que escreveu José Mattoso, dois dias depois da sua morte: "Conferiu à sua prosa uma nitidez e um recorte que tornam todos os seus escritos extremamente agradáveis de ler. Todavia, nada disto por si só teria feito dele um dos espíritos mais fascinantes da cultura portuguesa contemporânea se não fosse o seu temperamento dotado de uma insaciável curiosidade, a sua rebeldia inata, o seu indomável inconformismo e o seu agudo sentido crítico". No dia seguinte ao seu desaparecimento, no PÚBLICO, o jornalista Torcato Sepúlveda acertou na muche: "Um homem assim não morre." A sua obra também não. OUTROS TÍTULOS EM CULTURA António José Saraiva

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Chega à Faculdade de Letras de Lisboa nos anos 40, onde se forma em Filologia Românica, com uma tese sobre Bernardim Ribeiro. Dois anos depois, doutora-se com "Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval". Passa a assistente de Vitorino Nemésio mas incompatibiliza-se com o açoriano. Levantam-lhe um processo disciplinar e vai dar aulas para o Liceu Passos Manuel onde, não só o seu pai era reitor, como encontra o seu amigo de sempre, Óscar Lopes. Ambos tinham admiração por Salazar. Em 1991, quando o "Expresso" lhe perguntou qual tinha sido para ele o melhor primeiro-ministro português, nem pestaneja: Salazar. Ainda hoje a declaração é discutível. "Não penso que no final da vida tivesse um especial respeito pelo Salazar ou se tivesse tornado um homem de direita. Julgo que ele queria acertar contas consigo próprio e que, se calhar, sentia ter sido injusto, quando comunista, por ter dito tanto mal do Salazar", diz Teresa Rita Lopes. Revisionista, no sentido de uma autocrítica permanente, como recordou ao PÚBLICO Óscar Lopes, Saraiva "era um homem aberto ao diálogo". "Discutia tudo. No fundo não tinha grandes convicções. Talvez tenha sido daí a minha aproximação". Uma aproximação que desaguará na "História da Literatura Portuguesa" - "a vermelhinha", como era apelidada na altura e que, até hoje, constitui uma obra de referência obrigatória. Dez anos antes, António José Saraiva tem outra aproximação, a uma mulher, Maria Isabel Saraiva (a mãe dos seus três filhos). Tudo aconteceu depois de uma aula sobre Padre António Vieira. Maria Isabel criticou alguns pontos de vista do mestre. No fim, Saraiva abordou-a: "A menina não se importa de desenvolver o que disse? Gostei muito de a ouvir. As suas palavras parece que ficam a dançar no ar." Estávamos em Junho de 1943. Depois de uma correspondência febril, ("Só para meu Amor é sempre Maio", Gradiva, a editora que está a reeditar a sua obra), Maria Isabel e António José casam no Mosteiro dos Jerónimos, a 16 de Outubro. Em 1943, o escritor vai leccionar para Viana do Castelo. Dos anos minhotos saem alguns dos seus ensaios mais lúcidos: "Para a História da Cultura em Portugal" ou "As Ideias de Eça de Queirós". No ano seguinte, entra para o PCP e rapidamente já é um comunista ortoxodo, puro e duro. Mas como é que se dá a mudança? "O António achava que todos tínhamos que ser iguais. E convenceu-se que o comunismo era a realização desses ideais. O que ia ao encontro de uma coisa que era profunda nele - o seu espírito franciscano. Dentro da cabeça do António houve uma união entre o franciscanismo e o comunismo", é a tese de Maria Isabel Saraiva. Teresa Rita Lopes, que só conhecerá António José Saraiva em Paris, no início dos anos 60 - e manterá com o ensaísta um "emparceiramento de longa duração" - dá outra explicação: "A entrada dele no PCP é um acto de resistência. Ele teve uma relação passional como o PC. E, como todas as relações passionais, deixam um grande sulco. Era um apaixonado de sua natureza." Da mesma forma, que, acrescenta, ele sentir-se-á "interiormente traído com o comunismo porque pensou que a causa era uma coisa e depois, a prática, revelou-se-lhe outra. Sentiu-se traído como por uma mulher". Preso pela PIDE, demitido do ensino, chega a Paris, como exilado, em 1961. Um ano antes publica "O Dicionário Crítico de Algumas ideias e Palavras Correntes" (apreendido pelo regime salazarista). Mas a ruptura com o PC já tinha começado em 1956. No prólogo do "Dicionário", de 1983, nota: "Começou em mim um processo irreversível, lento mas irreversível [de afastamento do marxismo]." "Sou israelita!" Primeiro, ficara indignado com o fuzilamento pelos russos de Imre Nagy, que liderara a insurreição de Budapeste, em 1962. No mesmo ano, a gota de água transborda em Moscovo com... Cunhal. Saraiva, com Maria Lamas, tinha redigido um discurso contra a Guerra Colonial para ler no Congresso pela Paz e Desarmamento. Cunhal diz-lhe que "os camaradas soviéticos não queriam que se falasse na guerra colonial". Saraiva desiste de "recitar como um papagaio". Sai da tribuna e bate, para sempre, com a porta aos amanhãs que cantam. Mas numa manhã de Paris, onde era bolseiro no Centre National de la Recherce Scientifique, a cidade incendeia-se. António José fica entusiasmado e vai para as barricadas com os estudantes. "Ele e a Maria Lamas viveram aquilo com uma intensidade de meninos. A janela dela era o nosso camarote da revolução", conta Rita Lopes. Maio 68 marca, definitivamente, a ruptura de Saraiva apesar de, como se interrogava ao "Expresso", em 1990, não ter percebido o que se passou debaixo do seus olhos. Como podiam os burgueses alimentar os estudantes desordeiros que incendiaram Paris? No rescaldo de 68, escreve, com o pseudónimo de João Cândido, "Maio e a Crise da Civilização Burguesa", que desencadeia uma outra polémica, sobretudo com Sottomayor Cardia. Afirma, qual mosqueteiro português, que "contrariamente ao que se geralmente se diz, a doutrina marxista não é exterior, e muito menos oposta à mentalidade burguesa. Ela nasce dentro da cultura burguesa e as suas teses são consequências do ponto de vista burguês". E, brutal, acrescenta: "Só há verdadeira crise revolucionária lá onde as duas culturas se combatem. Se não fosse o meu receio pela relutância pelas fórmulas publicitárias (...) diria que toda a revolução é cultural." O escândalo instala-se. Como acontecerá com Silva-Révah, aquando da publicação de "Inquisição e Cristãos-Novos", em 1969. A sua tese era a de que os judeus permaneceram em Portugal e se assimilaram. Porém, em 1991, ao PÚBLICO, exclama: "Eu sou israelita! Não me peça para lhe explicar. É uma coisa subjectiva." Um agudo sentido crítico Adere à Revolução dos Cravos e mete-se num avião em Amesterdão, onde então leccionava, para participar no 1º de Maio. "Parecia uma criança", recordou ao PÚBLICO um empregado do café Tentadora, em Campo de Ourique, o bairro que tanto amou. Rapidamente desilude-se: "Ele é um indisciplinador de almas, como Pessoa", afirma Rita Lopes. "O que é que aconteceu? Odiava o óbvio e ficou horrorizado com aquelas multidões a brandir a sua verdade." Demolidor, desanca nos Capitães de Abril e no processo de descolonização. Em 1979, no Centro Nacional de Cultura (onde animou a revista "Raiz & Utopia") não está com meias palavras. Acusa-os de terem deixado as colónias "como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles". Em 1988, com "O Crepúsculo da Idade Média em Portugal" e, sobretudo com "A Tertúlia Ocidental" (um livro-quase-romance em torno de Eça, Antero e Oliveira Martins), confirma o que escreveu José Mattoso, dois dias depois da sua morte: "Conferiu à sua prosa uma nitidez e um recorte que tornam todos os seus escritos extremamente agradáveis de ler. Todavia, nada disto por si só teria feito dele um dos espíritos mais fascinantes da cultura portuguesa contemporânea se não fosse o seu temperamento dotado de uma insaciável curiosidade, a sua rebeldia inata, o seu indomável inconformismo e o seu agudo sentido crítico". No dia seguinte ao seu desaparecimento, no PÚBLICO, o jornalista Torcato Sepúlveda acertou na muche: "Um homem assim não morre." A sua obra também não. OUTROS TÍTULOS EM CULTURA António José Saraiva

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