BENTO DE JESUS CARAÇA

03-06-2002
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O papel da Universidade Popular Portuguesa

ao serviço da cultura do povo

(Artigo publicado por Armando Myre Dores no Boletim “O Erro” da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, Nº 1- Abril 2001)

A Universidade Popular Portuguesa foi fundada em 1919 por um grupo de intelectuais e de trabalhadores, por iniciativa do Dr. Ferreira de Macedo, com o objectivo de difundir a instrução e a cultura no bairro de Campo de Ourique em que foi criada e, em breve ,a sua acção se difundiu às classes trabalhadoras da capital.

Da sua primeira direcção, que se designava Conselho Administrativo, faziam parte, entre outros, 5 professores e 7 operários, o que marca desde logo o caracter da instituição.

Com efeito, quando mais tarde Bento de Jesus Caraça, que fazia parte do Conselho Administrativo desde o inicio da Universidade, profere, já como presidente da direcção, uma conferência sobe “As Universidades Populares e a cultura”, em 1931, pergunta:

“Encarando agora as sociedades organizadas, tal como actualmente se encontram, pergunta-se - quem deve ser o detentor da cultura?, a massa geral da humanidade, ou uma parte dela?

E mais adiante: “ À pergunta feita deve responder-se portanto condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite… Deve portanto promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante”.

A Universidade Popular Portuguesa correspondeu aos anseios das classes trabalhadoras elevarem o seu nível cultural com a ajuda de intelectuais de posições avançadas, dentro da ideia de que a cultura pode e deve ser um instrumento da emancipação individual e colectiva do homem.

Ela vem na continuidade dos esforços que já se assinalam desde os fins do século XIX, com a criação pelos operários do tabaco do jornal ” Voz do Operário” em 1879 e mais tarde da Sociedade Cooperativa com o mesmo nome, em 1883. E sobretudo ela vem na continuidade da Academia de Estudos Livres, sociedade de instrução fundada em Lisboa em 1889 por dois alunos do Instituto Industrial e Comercial, que rapidamente atingiu grande actividade com o apoio dum elevado escol intelectual e a participação entusiástica de jovens e trabalhadores. O exemplo da Academia de Estudos Livres, de cuja actividade saíu a Liga de Educação Nacional e a Sociedade de Estudos Pedagógicos, frutificou na Universidade Livre e na Universidade Popular Portuguesa.

Note-se que Bento Caraça proferiu a sua conferência sobre a “Escola única” precisamente na Sociedade de Estudos Pedagógicos em 10 de Abril de 1935.

Do plano de acção da Universidade Popular faziam parte:

1º Conferências sintéticas e harmoniosas sobre assuntos que possam interessar o indivíduo como homem moderno, qualquer que seja a sua profissão ou posição na sociedade.

2º Sessões de cinema na sede e for a da sede nas sucursais da Universidade.

3º Um Biblioteca, que chegou a ter 10 mil volumes.

4º Bibliotecas móveis que circulam nas sucursais ou departamentos estabelecidos nos meios operários.

5º Leituras para as crianças e para os adultos.

6º Excursões, teatro, sessões musicais e sinfónicas.

7º Orfeons populares.

8º Laboratório de psicologia experimental.

9º Conselho pedagógico para orientação de leitura.

Havia departamentos da Universidade em diferentes bairros da cidade e na província.

A Universidade tinha relações com o “Bureau International du Travail”, “Bureau International d’Education” e “Ligue International pour L’Education Nouvelle”.

Dado o prestigio da UPP e o reconhecimento da sua obra. o “Bureau International du Travail” ofereceu-lhe uma biblioteca.

A UPP foi declarada instituição de utilidade pública pelo Decreto nº 5781 de 10 de Maio de 1919.

Note-se que o Dr. Faria de Vasconceles preconizou nas páginas do orgão da Universidade ,“Educação Popular”, a criação pela instituição dum Instituto de orientação profissional, o que veio mais tarde a ser concretizado pelo Estado.

Depois dum período inicial de grande expansão, a UPP estava quase paralisada no biénio de 1926-27. Bento Caraça é eleito presidente do conselho administrativo da UPP em Dezembro de 1928, encetando a sua reactivação. Reorganiza a biblioteca , cria um conselho pedagógico e prepara-se para organizar uma cooperativa de cinema educativo.

Para se aquilatar da envergadura intelectual do conselho pedagógico formado por Bento Caraça em 10-01-1929 e do prestigio que a UPP tinha entre a intelectualidade portuguesa, transcrevemos aqui a sua composição:

Virgínia de Castro e Almeida; Aureliano Lopes de Mira Fernandes; António Faria de Vasconcelos; Matias B. Ferreira de Mira; António Sá Oliveira; F. Vieira de Almeida; José de Magalhães; Agostinho de Campos; Adolfo Lima; César Porto; Luís da Câmara Reys; Moisés Amzalak; Armando Cirilo Soares; Francisco Xavier da Silva Teles; Artur Urbano de Castro; António Oliveira Ramos; António Sérgio; Jaime Cortesão; Conceição e Silva; Armando de Lucena; Leite de Vasconcelos; Mendes Correia; José Pontes e Aurélio Quintanilha.(1)

Na Universidade Popular Portuguesa desenvolveu Bento Jesus Caraça uma grande actividade, assinalando-se uma conferência sobre “Comércio e Finanças”, em 1927 ou 1928, um “Curso de Iniciação Matemática”, de 53 lições, ministrado entre Janeiro de 1931 e fins de Junho de 1933, diversas palestras de altíssimo nível intelectual e diversas intervenções definindo a orientação da Universidade Popular.

Numa célebre conferência proferida em 25 de Maio de 1933, Bento Caraça definia o que entendia por um homem culto.” É aquele que:

1º- Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;

2º- Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;

3º- Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.(2)

Julgamos que estas palavras, que guiaram muitas gerações de jovens ao longo dos anos, definem exemplarmente os princípios que nortearem Bento Caraça à frente da Universidade Popular Portuguesa bem como na sua actividade como intelectual e como cidadão.

A UPP mobilizou centenas de trabalhadores e de jovens criando através da sua acção o fermento cultural e intelectual propiciador duma activa intervenção social num dos períodos mais conturbados do país (instauração do fascismo) e da Europa (guerra de Espanha em 1936-39; início da 2ª guerra mundial), arrostando com as perseguições do regime até à paralisação progressiva da sua actividade a partir de 1939, vindo a ser fechada em 1944.

Acabamos o nosso artigo com as palavras finais de Bento Caraça na sua conferência sobre “As Universidades Popular e a Cultura”:

“Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesses trabalho de libertação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.

A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais”.

(1)- Bento de Jesus Caraça o “Militante da Cultura”- Alberto Pedroso, in revista “História”, nº 9, Dezembro de 1998.

(2)- “A Cultura integral do indivíduo- problema central no nosso tempo”- Bento Jesus Caraça.

ANTOLOGIA

“O homem foi assim tornando a sua vida cada vez mais segura e isso só foi possível por virtude do seu conhecimento cada vez maior do mundo em que vive. A experiência mostrou-lhe então que só um caminho havia para assegurar com êxito a sua conservação- o conhecer quanto mais perfeitamente melhor. Isso fez nascer no seu espírito a ideia e a aspiração de investigar e procurar explicar cada vez melhor, isto é, a aspiração de um conhecimento cada vez mais completo. “

“…mas cultura não significa de modo nenhum opressão pois que,…”compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem”. O que deve fazer-se é, não destruir a cultura, mas pelo contrário intensificá-la e desenvolvê-la cada vez mais, acabando com o seu monopólio numa classe e restituindo-lhe toda a pureza dos seus fins”.

“Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais”.

(Da conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal em 22 de Março de 1931:

“As Universidades Populares e a Cultura”.)

“São essas ideias imortais que fazem o progresso da humanidade, e é na força com que se batem por elas que reside o valor moral dos homens e das gerações”.

“E por este exemplo se verá quanto é errónea a opinião, infelizmente muito generalizada ainda hoje, de que a história da ciência é qualquer coisa de seco, que só aos profissionais interessa. A culpa, bem sei, é dos próprios profissionais, que, na sua maioria, a não sabem viver e não têm olhos para ver, ou alma para sentir, esta verdade elementar: que a história da ciência, mesmo a do mais abstracto dos seus ramos, é uma história essencialmente, profundamente humana”.

“As atitudes da ciência e da religião, em face do problema da investigação, são portanto totalmente diferentes. E em nenhuma situação essa diferença aparece com tão saliente nitidez como em face do erro. Enquanto para a ciência o erro é, pode dizer-se sem paradoxo, o mais activo dos seus agentes, pois é ele que vem revelar sempre que as doutrinas interpretativas não se ajustam perfeitamente aos resultados da observação, o que origina imediatamente uma renovação doutrinária, que significa uma passagem a uma grau mais elevado do saber, a religião é insensível ao erro e à contradição racional; procura manter íntegro o seu sistema de ideias, só abandonando alguma quando a sua conservação por mais tempo é de molde a fazer perigar a estabilidade do edifício que possui.

Pode dizer-se, portanto, que o progresso da ciência se realiza pela aquisição, pela incorporação constante de ideias criadoras na sua vanguarda, ao passo que o da religião se faz, pelo contrário, pelo abandono, na retaguarda, de ideias fantasmas, cuja conservação se tornou já impossível.”

“Verifica-se facilmente que os períodos de grande actividade cientifica coincidem com aqueles em que domina a aspiração de liberdade e de plena realização do indivíduo. Tão certo é que em épocas de opressão e tirania, em que impera o sentimento da humildade da obediência, pode assistir-se ao vegetar de uma multidão de servos dóceis, mas nunca ao erguer daquelas superiores construções do pensamento criador e livre.

(Da conferência realizada na Universidade Popular Portuguesa em 22 de Junho de 1933

“Galileo Galilei valor científico e valor moral da sua obra.”)

“Pois bem, concedam-me…que eu tome para ponto de vista aquele fenómeno…da extensão progressiva do património cultural comum . Dele aparece uma linha regular de evolução que consiste no desejo e esforço constante, por parte do homem e da sociedade, no sentido de se apropriarem , numa medida cada vez maior, desse património cultural comum. Temos, por consequência, aqui uma lei que, à falta de melhor, designarei por lei de apropriação ou de integração progressiva.

O seu enunciado pede os esclarecimentos seguintes:

1º- Não confundir o fenómeno da extensão progressiva do património com a lei da integração progressiva dele. O primeiro, o fenómeno, refere-se a um alargamento constante, evidente aos olhos de quem queira ver, de todo o conjunto de possibilidades e aquisições humanas: económicas, científicas, morais, artísticas. A segunda, a lei, de caracter mais discutível, afirma uma tendência, cada vez mais pronunciada, que o homem e os agregados humanos têm para a posse e utilização desses conjunto de possibilidades e aquisições.

2º- Se o fenómeno e a lei são distintos, não são por isso independentes; entre eles existe uma relação de causalidade, não de simples causa e efeito, mas de acção recíproca que os faz criar-se mutuamente: a extensão do património permitindo uma apropriação cada vez maior por parte dos homens; essa apropriação, e consequente desenvolvimento humano, determinando, por sua vez, uma extensão cada vez mais larga do património cultural comum.

3º- A lei compreende um aspecto individual e um aspecto colectivo; o primeiro diz respeito ao homem-indivíduo que, pela apropriação progressiva, toma um conhecimento cada vez mais completo da natureza, do mundo, de si próprio, se desenvolve, cria, por virtude desse desenvolvimento, novas capacidades, e assim se integra, se eleva indefinidamente, se liberta; o segundo é um aspecto eminentemente social, diz respeito ao grau de acesso que a sociedade inteira, e não só alguns dos seus membros, tem ao património cultural comum.

O primeiro contém-se nesta pergunta- até que ponto pode ir, em cada estado de civilização, o desenvolvimento do homem? O segundo nesta outra -. quantos homens

podem atingir o grau máximo de desenvolvimento que esses estado permite ? Está de novo posta, perante nós, a questão do grau de qualidade da civilização.

Pois bem, a concepção tradicional…sobre o papel das elites na evolução da humanidade, considera estes dois aspectos como independentes um do outro, dando como compatível o florescimento do individual com o abandono do colectivo, por outras palavras, como não interessando, para aquilatar do valor de qualidade duma civilização e do futuro do seu desenvolvimento, o número daqueles que são admitidos ao gozo legítimo de todas as suas possibilidades.

Ora esta tese é redondamente falsa…”

“Das considerações que acabo de fazer, resultam, entre outras, duas consequências imediatas, que importa fixar.

Primeira. Desaparece a oposição habitual entre cultura de elite e cultura popular.

O património cultural comum é uno, a humanidade é una; não há, portanto, lugar para distinções artificiosas e geradoras de confusão. Substituiremos , por isso, a expressão cultura popular pela expressão, mais própria e mais geral, de cultura humana.

Segunda. Por isso mesmo, toda a acção progressiva, ou se faz num sentido de extensão

do património ou no de aumento de condições ou capacidade de apropriação dele, por parte dos homens.

(Da conferência realizada na Universidade Popular Portuguesa em 1936:

“A arte e a cultura popular”.)

“…qual deve ser a acção da Universidade Popular Portuguesa?

…” A sua acção deve limitar-se, se é que o termo limitar pode ser empregue aqui, ao desenvolvimento e propagação da cultura. Cultura, sempre cultura e, se é necessário adjectivá-la, direi cultura revolucionária. Revolucionária em que sentido? No sentido de que ela deve tender a dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade, o conhecimento completo de todos os seus direitos e de todos os seus deveres. Sejamos homens livres e criemos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade- o reconhecimento a cada um do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, morais e materiais.

Revolucionária ainda no sentido de que ela deve tender na sua essência ao desenvolvimento do espírito de solidariedade – dever do mais forte: ajudar o mais fraco- e deve ser portanto internacionalista na sua forma. E que ninguém ligue à ideia de internacionalismo a da destruição da pátria; o coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua pátria e o da humanidade.

Revolucionária ainda no sentido de que, dando a cada um, como disse, a consciência integral da sua dignidade, permita que cada proletário culto deixe de ser, como infelizmente na maioria dos casos até agora, um burguês e consequentemente um traidor à sua classe. Problema terrível este que urge resolver, para que deixemos de assistir ao espectáculo degradante da renúncia do povo em si próprio.

Revolucionária ainda e sobretudo no sentido de que, preparando cientifica e moralmente a classe proletária para o desempenho da missão futura que lhe incumbe, a torne bem consciente do seu dever último e supremo – o do seu próprio desaparecimento num futuro mais longínquo em que não deve haver classes mas apenas homens livres conhecendo-se , amando-se e trabalhando solidariamente dentro dum novo equilíbrio social- o da realização do bem comum.

(Da intervenção na sessão da Universidade Popular Portuguesa, de 21 de Novembro de 1929.)

O papel da Universidade Popular Portuguesa

ao serviço da cultura do povo

(Artigo publicado por Armando Myre Dores no Boletim “O Erro” da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, Nº 1- Abril 2001)

A Universidade Popular Portuguesa foi fundada em 1919 por um grupo de intelectuais e de trabalhadores, por iniciativa do Dr. Ferreira de Macedo, com o objectivo de difundir a instrução e a cultura no bairro de Campo de Ourique em que foi criada e, em breve ,a sua acção se difundiu às classes trabalhadoras da capital.

Da sua primeira direcção, que se designava Conselho Administrativo, faziam parte, entre outros, 5 professores e 7 operários, o que marca desde logo o caracter da instituição.

Com efeito, quando mais tarde Bento de Jesus Caraça, que fazia parte do Conselho Administrativo desde o inicio da Universidade, profere, já como presidente da direcção, uma conferência sobe “As Universidades Populares e a cultura”, em 1931, pergunta:

“Encarando agora as sociedades organizadas, tal como actualmente se encontram, pergunta-se - quem deve ser o detentor da cultura?, a massa geral da humanidade, ou uma parte dela?

E mais adiante: “ À pergunta feita deve responder-se portanto condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite… Deve portanto promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante”.

A Universidade Popular Portuguesa correspondeu aos anseios das classes trabalhadoras elevarem o seu nível cultural com a ajuda de intelectuais de posições avançadas, dentro da ideia de que a cultura pode e deve ser um instrumento da emancipação individual e colectiva do homem.

Ela vem na continuidade dos esforços que já se assinalam desde os fins do século XIX, com a criação pelos operários do tabaco do jornal ” Voz do Operário” em 1879 e mais tarde da Sociedade Cooperativa com o mesmo nome, em 1883. E sobretudo ela vem na continuidade da Academia de Estudos Livres, sociedade de instrução fundada em Lisboa em 1889 por dois alunos do Instituto Industrial e Comercial, que rapidamente atingiu grande actividade com o apoio dum elevado escol intelectual e a participação entusiástica de jovens e trabalhadores. O exemplo da Academia de Estudos Livres, de cuja actividade saíu a Liga de Educação Nacional e a Sociedade de Estudos Pedagógicos, frutificou na Universidade Livre e na Universidade Popular Portuguesa.

Note-se que Bento Caraça proferiu a sua conferência sobre a “Escola única” precisamente na Sociedade de Estudos Pedagógicos em 10 de Abril de 1935.

Do plano de acção da Universidade Popular faziam parte:

1º Conferências sintéticas e harmoniosas sobre assuntos que possam interessar o indivíduo como homem moderno, qualquer que seja a sua profissão ou posição na sociedade.

2º Sessões de cinema na sede e for a da sede nas sucursais da Universidade.

3º Um Biblioteca, que chegou a ter 10 mil volumes.

4º Bibliotecas móveis que circulam nas sucursais ou departamentos estabelecidos nos meios operários.

5º Leituras para as crianças e para os adultos.

6º Excursões, teatro, sessões musicais e sinfónicas.

7º Orfeons populares.

8º Laboratório de psicologia experimental.

9º Conselho pedagógico para orientação de leitura.

Havia departamentos da Universidade em diferentes bairros da cidade e na província.

A Universidade tinha relações com o “Bureau International du Travail”, “Bureau International d’Education” e “Ligue International pour L’Education Nouvelle”.

Dado o prestigio da UPP e o reconhecimento da sua obra. o “Bureau International du Travail” ofereceu-lhe uma biblioteca.

A UPP foi declarada instituição de utilidade pública pelo Decreto nº 5781 de 10 de Maio de 1919.

Note-se que o Dr. Faria de Vasconceles preconizou nas páginas do orgão da Universidade ,“Educação Popular”, a criação pela instituição dum Instituto de orientação profissional, o que veio mais tarde a ser concretizado pelo Estado.

Depois dum período inicial de grande expansão, a UPP estava quase paralisada no biénio de 1926-27. Bento Caraça é eleito presidente do conselho administrativo da UPP em Dezembro de 1928, encetando a sua reactivação. Reorganiza a biblioteca , cria um conselho pedagógico e prepara-se para organizar uma cooperativa de cinema educativo.

Para se aquilatar da envergadura intelectual do conselho pedagógico formado por Bento Caraça em 10-01-1929 e do prestigio que a UPP tinha entre a intelectualidade portuguesa, transcrevemos aqui a sua composição:

Virgínia de Castro e Almeida; Aureliano Lopes de Mira Fernandes; António Faria de Vasconcelos; Matias B. Ferreira de Mira; António Sá Oliveira; F. Vieira de Almeida; José de Magalhães; Agostinho de Campos; Adolfo Lima; César Porto; Luís da Câmara Reys; Moisés Amzalak; Armando Cirilo Soares; Francisco Xavier da Silva Teles; Artur Urbano de Castro; António Oliveira Ramos; António Sérgio; Jaime Cortesão; Conceição e Silva; Armando de Lucena; Leite de Vasconcelos; Mendes Correia; José Pontes e Aurélio Quintanilha.(1)

Na Universidade Popular Portuguesa desenvolveu Bento Jesus Caraça uma grande actividade, assinalando-se uma conferência sobre “Comércio e Finanças”, em 1927 ou 1928, um “Curso de Iniciação Matemática”, de 53 lições, ministrado entre Janeiro de 1931 e fins de Junho de 1933, diversas palestras de altíssimo nível intelectual e diversas intervenções definindo a orientação da Universidade Popular.

Numa célebre conferência proferida em 25 de Maio de 1933, Bento Caraça definia o que entendia por um homem culto.” É aquele que:

1º- Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;

2º- Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;

3º- Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.(2)

Julgamos que estas palavras, que guiaram muitas gerações de jovens ao longo dos anos, definem exemplarmente os princípios que nortearem Bento Caraça à frente da Universidade Popular Portuguesa bem como na sua actividade como intelectual e como cidadão.

A UPP mobilizou centenas de trabalhadores e de jovens criando através da sua acção o fermento cultural e intelectual propiciador duma activa intervenção social num dos períodos mais conturbados do país (instauração do fascismo) e da Europa (guerra de Espanha em 1936-39; início da 2ª guerra mundial), arrostando com as perseguições do regime até à paralisação progressiva da sua actividade a partir de 1939, vindo a ser fechada em 1944.

Acabamos o nosso artigo com as palavras finais de Bento Caraça na sua conferência sobre “As Universidades Popular e a Cultura”:

“Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesses trabalho de libertação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.

A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais”.

(1)- Bento de Jesus Caraça o “Militante da Cultura”- Alberto Pedroso, in revista “História”, nº 9, Dezembro de 1998.

(2)- “A Cultura integral do indivíduo- problema central no nosso tempo”- Bento Jesus Caraça.

ANTOLOGIA

“O homem foi assim tornando a sua vida cada vez mais segura e isso só foi possível por virtude do seu conhecimento cada vez maior do mundo em que vive. A experiência mostrou-lhe então que só um caminho havia para assegurar com êxito a sua conservação- o conhecer quanto mais perfeitamente melhor. Isso fez nascer no seu espírito a ideia e a aspiração de investigar e procurar explicar cada vez melhor, isto é, a aspiração de um conhecimento cada vez mais completo. “

“…mas cultura não significa de modo nenhum opressão pois que,…”compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem”. O que deve fazer-se é, não destruir a cultura, mas pelo contrário intensificá-la e desenvolvê-la cada vez mais, acabando com o seu monopólio numa classe e restituindo-lhe toda a pureza dos seus fins”.

“Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais”.

(Da conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal em 22 de Março de 1931:

“As Universidades Populares e a Cultura”.)

“São essas ideias imortais que fazem o progresso da humanidade, e é na força com que se batem por elas que reside o valor moral dos homens e das gerações”.

“E por este exemplo se verá quanto é errónea a opinião, infelizmente muito generalizada ainda hoje, de que a história da ciência é qualquer coisa de seco, que só aos profissionais interessa. A culpa, bem sei, é dos próprios profissionais, que, na sua maioria, a não sabem viver e não têm olhos para ver, ou alma para sentir, esta verdade elementar: que a história da ciência, mesmo a do mais abstracto dos seus ramos, é uma história essencialmente, profundamente humana”.

“As atitudes da ciência e da religião, em face do problema da investigação, são portanto totalmente diferentes. E em nenhuma situação essa diferença aparece com tão saliente nitidez como em face do erro. Enquanto para a ciência o erro é, pode dizer-se sem paradoxo, o mais activo dos seus agentes, pois é ele que vem revelar sempre que as doutrinas interpretativas não se ajustam perfeitamente aos resultados da observação, o que origina imediatamente uma renovação doutrinária, que significa uma passagem a uma grau mais elevado do saber, a religião é insensível ao erro e à contradição racional; procura manter íntegro o seu sistema de ideias, só abandonando alguma quando a sua conservação por mais tempo é de molde a fazer perigar a estabilidade do edifício que possui.

Pode dizer-se, portanto, que o progresso da ciência se realiza pela aquisição, pela incorporação constante de ideias criadoras na sua vanguarda, ao passo que o da religião se faz, pelo contrário, pelo abandono, na retaguarda, de ideias fantasmas, cuja conservação se tornou já impossível.”

“Verifica-se facilmente que os períodos de grande actividade cientifica coincidem com aqueles em que domina a aspiração de liberdade e de plena realização do indivíduo. Tão certo é que em épocas de opressão e tirania, em que impera o sentimento da humildade da obediência, pode assistir-se ao vegetar de uma multidão de servos dóceis, mas nunca ao erguer daquelas superiores construções do pensamento criador e livre.

(Da conferência realizada na Universidade Popular Portuguesa em 22 de Junho de 1933

“Galileo Galilei valor científico e valor moral da sua obra.”)

“Pois bem, concedam-me…que eu tome para ponto de vista aquele fenómeno…da extensão progressiva do património cultural comum . Dele aparece uma linha regular de evolução que consiste no desejo e esforço constante, por parte do homem e da sociedade, no sentido de se apropriarem , numa medida cada vez maior, desse património cultural comum. Temos, por consequência, aqui uma lei que, à falta de melhor, designarei por lei de apropriação ou de integração progressiva.

O seu enunciado pede os esclarecimentos seguintes:

1º- Não confundir o fenómeno da extensão progressiva do património com a lei da integração progressiva dele. O primeiro, o fenómeno, refere-se a um alargamento constante, evidente aos olhos de quem queira ver, de todo o conjunto de possibilidades e aquisições humanas: económicas, científicas, morais, artísticas. A segunda, a lei, de caracter mais discutível, afirma uma tendência, cada vez mais pronunciada, que o homem e os agregados humanos têm para a posse e utilização desses conjunto de possibilidades e aquisições.

2º- Se o fenómeno e a lei são distintos, não são por isso independentes; entre eles existe uma relação de causalidade, não de simples causa e efeito, mas de acção recíproca que os faz criar-se mutuamente: a extensão do património permitindo uma apropriação cada vez maior por parte dos homens; essa apropriação, e consequente desenvolvimento humano, determinando, por sua vez, uma extensão cada vez mais larga do património cultural comum.

3º- A lei compreende um aspecto individual e um aspecto colectivo; o primeiro diz respeito ao homem-indivíduo que, pela apropriação progressiva, toma um conhecimento cada vez mais completo da natureza, do mundo, de si próprio, se desenvolve, cria, por virtude desse desenvolvimento, novas capacidades, e assim se integra, se eleva indefinidamente, se liberta; o segundo é um aspecto eminentemente social, diz respeito ao grau de acesso que a sociedade inteira, e não só alguns dos seus membros, tem ao património cultural comum.

O primeiro contém-se nesta pergunta- até que ponto pode ir, em cada estado de civilização, o desenvolvimento do homem? O segundo nesta outra -. quantos homens

podem atingir o grau máximo de desenvolvimento que esses estado permite ? Está de novo posta, perante nós, a questão do grau de qualidade da civilização.

Pois bem, a concepção tradicional…sobre o papel das elites na evolução da humanidade, considera estes dois aspectos como independentes um do outro, dando como compatível o florescimento do individual com o abandono do colectivo, por outras palavras, como não interessando, para aquilatar do valor de qualidade duma civilização e do futuro do seu desenvolvimento, o número daqueles que são admitidos ao gozo legítimo de todas as suas possibilidades.

Ora esta tese é redondamente falsa…”

“Das considerações que acabo de fazer, resultam, entre outras, duas consequências imediatas, que importa fixar.

Primeira. Desaparece a oposição habitual entre cultura de elite e cultura popular.

O património cultural comum é uno, a humanidade é una; não há, portanto, lugar para distinções artificiosas e geradoras de confusão. Substituiremos , por isso, a expressão cultura popular pela expressão, mais própria e mais geral, de cultura humana.

Segunda. Por isso mesmo, toda a acção progressiva, ou se faz num sentido de extensão

do património ou no de aumento de condições ou capacidade de apropriação dele, por parte dos homens.

(Da conferência realizada na Universidade Popular Portuguesa em 1936:

“A arte e a cultura popular”.)

“…qual deve ser a acção da Universidade Popular Portuguesa?

…” A sua acção deve limitar-se, se é que o termo limitar pode ser empregue aqui, ao desenvolvimento e propagação da cultura. Cultura, sempre cultura e, se é necessário adjectivá-la, direi cultura revolucionária. Revolucionária em que sentido? No sentido de que ela deve tender a dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade, o conhecimento completo de todos os seus direitos e de todos os seus deveres. Sejamos homens livres e criemos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade- o reconhecimento a cada um do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, morais e materiais.

Revolucionária ainda no sentido de que ela deve tender na sua essência ao desenvolvimento do espírito de solidariedade – dever do mais forte: ajudar o mais fraco- e deve ser portanto internacionalista na sua forma. E que ninguém ligue à ideia de internacionalismo a da destruição da pátria; o coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua pátria e o da humanidade.

Revolucionária ainda no sentido de que, dando a cada um, como disse, a consciência integral da sua dignidade, permita que cada proletário culto deixe de ser, como infelizmente na maioria dos casos até agora, um burguês e consequentemente um traidor à sua classe. Problema terrível este que urge resolver, para que deixemos de assistir ao espectáculo degradante da renúncia do povo em si próprio.

Revolucionária ainda e sobretudo no sentido de que, preparando cientifica e moralmente a classe proletária para o desempenho da missão futura que lhe incumbe, a torne bem consciente do seu dever último e supremo – o do seu próprio desaparecimento num futuro mais longínquo em que não deve haver classes mas apenas homens livres conhecendo-se , amando-se e trabalhando solidariamente dentro dum novo equilíbrio social- o da realização do bem comum.

(Da intervenção na sessão da Universidade Popular Portuguesa, de 21 de Novembro de 1929.)

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