"o senhor só leva os bons, não é?"

11-01-2005
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"o Senhor Só Leva Os Bons, Não É?"

Por ÂNGELO TEIXEIRA MARQUES (TEXTO)FERNANDO VELUDO (FOTO)

Segunda-feira, 27 de Dezembro de 2004 O naufrágio do "Salgueirinha", na noite de 19 para 20 de Outubro, a 2,5 milhas da barra de Aveiro, enlutou, mais uma vez, a numerosa comunidade piscatória das Caxinas (Vila do Conde), onde moravam os seis tripulantes. A morte dos pescadores só por si foi uma tragédia, mas as circunstâncias que a envolveram, a forma espaçada como o mar foi devolvendo os corpos e o facto de alguns dos falecidos terem graus de parentesco próximos carrega de negro a história do acidente. "Somos feitos para viver e morrer, mas de forma tão trágica, não!" É Bertelina Fangueiro, a viúva de José Pontes Viana, 50 anos, mestre e proprietário do barco, quem o diz. Nas Caxinas, as famílias continuam a interrogar-se como foi possível ocorrer o naufrágio. O "Salgueirinha", construído há 16 anos, ficou como novo depois de no Verão ter estado na carreira (no estaleiro) a substituir o motor e a consertar pequenas mazelas; foi vistoriado e cumpria todas as normas de segurança; na altura do naufrágio navegava para terra em condições de tempo difíceis, mas nada do outro mundo; e, acima de tudo, ao leme ia um mestre experiente. José "barrega" (alcunha pela qual era conhecido devido à sua voz forte e em tom alto) conhecia o rumo para Aveiro como as palmas das mãos, já que há 11 anos acostava ao mesmo porto. Talvez por tudo isto, alguns pescadores levantaram a hipótese de o barco ter sido abalroado por um navio, possibilidade que os mergulhos efectuados pela Marinha acabaram por desmentir. Para não deixar que o mistério massacre ainda mais a alma, Bertelina apoia-se na versão de outros armadores, que apontam para a existência, na zona do acidente, de uma manhosa corrente provocada pelo choque do caudal da Ria de Aveiro com as ondas. Uma vaga repentina terá surpreendido a tripulação. Tragédia a duas velocidades Fosse o que fosse, tudo sucedeu num ápice. A viúva falou ao telemóvel com o mestre em cima da hora em que se crê que tudo terá acontecido. "Disse-me que estava a chegar à barra e fiquei mais tranquila. Mais vinte minutos e estaria em terra. Fui adormecer a minha filha mais nova, que tem sete anos e às 7h30 teria de acordar para ir para à escola." Bertelina acabou por cair no sono, mas acordou sobressaltada com uma chamada do irmão, que tinha ido buscar a tripulação, a perguntar-lhe se tinha tido notícias do barco. Da barra de Aveiro Jaime Fangueiro disse que já tentara ligar para o mestre, mas sem sucesso. "Olhei para o relógio na mesinha de cabeceira e vi que tinha passado uma hora desde que falara com o meu marido. Percebi logo que tinha havido uma tragédia e comecei a gritar: 'Morreram-me todos!'" Desesperada, Bertelina alertou a filha mais velha, que, além do pai, tinha também o marido e o cunhado a bordo. O "Salgueirinha" não lançara qualquer pedido de socorro, mas as famílias ainda hoje defendem que as autoridades deveriam ter feito mais naquela madrugada em que foram avisadas por Jaime Fangueiro de que algo se passara. Os meios de busca só arrancaram ao raiar do dia seguinte, na mesma altura em que um dos corpos dava à costa. Armando Viana (40 anos), irmão do mestre, estava praticamente sem roupa, sinal de que teria tentado nadar até à praia. Na memória de muitos ficou a imagem de José Dias - um tripulante que não embarcou por estar a recuperar de uma intervenção cirúrgica - a chorar junto ao cadáver do camarada de trabalho. As semanas seguintes foram traumáticas: o corpo de Bruno Gavina (26 anos) apareceu no dia 20, o do mestre no dia seguinte, o de Torcato Filipe (52 anos) a 27 e o de Torcato Marques no dia 29. O mar ficou com Antonio Torrão, de 47 anos. Por esses dias, a tragédia alongava-se devagarinho. Em cada cerimónia fúnebre as Caxinas choravam, numa dor colectiva que parecia não ter fim. A ansiedade apoderava-se de toda a comunidade, cuja larga maioria também labuta no mar. "São momentos dolorosos e quem acompanha isto fica doente", resumiu na ocasião o presidente da Câmara de Vila do Conde, Mário Almeida, que prestou auxílio às famílias. Pesca, nunca mais Passado o tormento da falta dos corpos e dos funerais cíclicos, abriu-se o vazio nas famílias. A saudade fere, os dias outrora festivos são agora motivo de choro intenso pelas ausências que as fotografias recordam a cada instante. "O meu quarto parece um santuário, com tantas imagens", diz Bertelina, que quer arrumar de vez com a ligação à pesca. O PÚBLICO encontrou-a com a irmã, no quintal de uma casa que servia de armazém ao barco. Era ali que a tripulação reparava as redes, preparava os aprestos para a faina e matava algumas horas mortas com histórias de mareio ou discussão do futebol. Quem trabalhava em terra e escapou ao naufrágio já está a cargo de outros barcos para poder sobreviver. "A barriga manda a perna", desabafa a viúva, que com a irmã vai desunindo redes gastas das cordas que ainda poderão servir para algum outro barco. "Não quero ver mais nada disto por aqui. Tenho o alvará e poderia construir outro barco, mas para mim acabou. Para já só penso em dedicar-me a criar os meus filhos e ajudar os meus dois netos", assegura Bertelina, enquanto afaga um coelho que era a mascote do "Salgueirinha". Até meados deste mês, a viúva tinha recebido da seguradora apenas pensões de sobrevivência para ela e para os três filhos menores. A indemnização de um barco avaliado em 80 mil euros que tinha a bordo todas as redes novas ainda vai durar alguns meses, lamenta. Bertelina quer que as filhas Cláudia e Maria, com 16 e sete anos, prossigam os estudos. Já para Eduardo, de 17, o desempenho escolar não tem sido famoso, mas dizem-lhe que é um guarda-redes promissor. Joga nas camadas jovens do Rio Ave e a mãe até nem se importava que o rapaz chegasse a profissional. E se lhe der para ser pescador? A viúva responde de pronto: "Nem pensar. A família já sofreu bastante. E depois o Senhor só leva os bons, não é?" OUTROS TÍTULOS EM SOCIEDADE Ordem dos Médicos vai

A Ordem não pode ser "assexuada"

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"o senhor só leva os bons, não é?"

Como montar um espaço de oração

Dezenas de mochilas e uma "grande" experiência

Nove mortos nas estradas desde a passada quinta-feira

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O MISTÉRIO

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Segunda-feira, 27 de Dezembro de 2004 O naufrágio do "Salgueirinha", na noite de 19 para 20 de Outubro, a 2,5 milhas da barra de Aveiro, enlutou, mais uma vez, a numerosa comunidade piscatória das Caxinas (Vila do Conde), onde moravam os seis tripulantes. A morte dos pescadores só por si foi uma tragédia, mas as circunstâncias que a envolveram, a forma espaçada como o mar foi devolvendo os corpos e o facto de alguns dos falecidos terem graus de parentesco próximos carrega de negro a história do acidente. "Somos feitos para viver e morrer, mas de forma tão trágica, não!" É Bertelina Fangueiro, a viúva de José Pontes Viana, 50 anos, mestre e proprietário do barco, quem o diz. Nas Caxinas, as famílias continuam a interrogar-se como foi possível ocorrer o naufrágio. O "Salgueirinha", construído há 16 anos, ficou como novo depois de no Verão ter estado na carreira (no estaleiro) a substituir o motor e a consertar pequenas mazelas; foi vistoriado e cumpria todas as normas de segurança; na altura do naufrágio navegava para terra em condições de tempo difíceis, mas nada do outro mundo; e, acima de tudo, ao leme ia um mestre experiente. José "barrega" (alcunha pela qual era conhecido devido à sua voz forte e em tom alto) conhecia o rumo para Aveiro como as palmas das mãos, já que há 11 anos acostava ao mesmo porto. Talvez por tudo isto, alguns pescadores levantaram a hipótese de o barco ter sido abalroado por um navio, possibilidade que os mergulhos efectuados pela Marinha acabaram por desmentir. Para não deixar que o mistério massacre ainda mais a alma, Bertelina apoia-se na versão de outros armadores, que apontam para a existência, na zona do acidente, de uma manhosa corrente provocada pelo choque do caudal da Ria de Aveiro com as ondas. Uma vaga repentina terá surpreendido a tripulação. Tragédia a duas velocidades Fosse o que fosse, tudo sucedeu num ápice. A viúva falou ao telemóvel com o mestre em cima da hora em que se crê que tudo terá acontecido. "Disse-me que estava a chegar à barra e fiquei mais tranquila. Mais vinte minutos e estaria em terra. Fui adormecer a minha filha mais nova, que tem sete anos e às 7h30 teria de acordar para ir para à escola." Bertelina acabou por cair no sono, mas acordou sobressaltada com uma chamada do irmão, que tinha ido buscar a tripulação, a perguntar-lhe se tinha tido notícias do barco. Da barra de Aveiro Jaime Fangueiro disse que já tentara ligar para o mestre, mas sem sucesso. "Olhei para o relógio na mesinha de cabeceira e vi que tinha passado uma hora desde que falara com o meu marido. Percebi logo que tinha havido uma tragédia e comecei a gritar: 'Morreram-me todos!'" Desesperada, Bertelina alertou a filha mais velha, que, além do pai, tinha também o marido e o cunhado a bordo. O "Salgueirinha" não lançara qualquer pedido de socorro, mas as famílias ainda hoje defendem que as autoridades deveriam ter feito mais naquela madrugada em que foram avisadas por Jaime Fangueiro de que algo se passara. Os meios de busca só arrancaram ao raiar do dia seguinte, na mesma altura em que um dos corpos dava à costa. Armando Viana (40 anos), irmão do mestre, estava praticamente sem roupa, sinal de que teria tentado nadar até à praia. Na memória de muitos ficou a imagem de José Dias - um tripulante que não embarcou por estar a recuperar de uma intervenção cirúrgica - a chorar junto ao cadáver do camarada de trabalho. As semanas seguintes foram traumáticas: o corpo de Bruno Gavina (26 anos) apareceu no dia 20, o do mestre no dia seguinte, o de Torcato Filipe (52 anos) a 27 e o de Torcato Marques no dia 29. O mar ficou com Antonio Torrão, de 47 anos. Por esses dias, a tragédia alongava-se devagarinho. Em cada cerimónia fúnebre as Caxinas choravam, numa dor colectiva que parecia não ter fim. A ansiedade apoderava-se de toda a comunidade, cuja larga maioria também labuta no mar. "São momentos dolorosos e quem acompanha isto fica doente", resumiu na ocasião o presidente da Câmara de Vila do Conde, Mário Almeida, que prestou auxílio às famílias. Pesca, nunca mais Passado o tormento da falta dos corpos e dos funerais cíclicos, abriu-se o vazio nas famílias. A saudade fere, os dias outrora festivos são agora motivo de choro intenso pelas ausências que as fotografias recordam a cada instante. "O meu quarto parece um santuário, com tantas imagens", diz Bertelina, que quer arrumar de vez com a ligação à pesca. O PÚBLICO encontrou-a com a irmã, no quintal de uma casa que servia de armazém ao barco. Era ali que a tripulação reparava as redes, preparava os aprestos para a faina e matava algumas horas mortas com histórias de mareio ou discussão do futebol. Quem trabalhava em terra e escapou ao naufrágio já está a cargo de outros barcos para poder sobreviver. "A barriga manda a perna", desabafa a viúva, que com a irmã vai desunindo redes gastas das cordas que ainda poderão servir para algum outro barco. "Não quero ver mais nada disto por aqui. Tenho o alvará e poderia construir outro barco, mas para mim acabou. Para já só penso em dedicar-me a criar os meus filhos e ajudar os meus dois netos", assegura Bertelina, enquanto afaga um coelho que era a mascote do "Salgueirinha". Até meados deste mês, a viúva tinha recebido da seguradora apenas pensões de sobrevivência para ela e para os três filhos menores. A indemnização de um barco avaliado em 80 mil euros que tinha a bordo todas as redes novas ainda vai durar alguns meses, lamenta. Bertelina quer que as filhas Cláudia e Maria, com 16 e sete anos, prossigam os estudos. Já para Eduardo, de 17, o desempenho escolar não tem sido famoso, mas dizem-lhe que é um guarda-redes promissor. Joga nas camadas jovens do Rio Ave e a mãe até nem se importava que o rapaz chegasse a profissional. E se lhe der para ser pescador? A viúva responde de pronto: "Nem pensar. A família já sofreu bastante. E depois o Senhor só leva os bons, não é?" OUTROS TÍTULOS EM SOCIEDADE Ordem dos Médicos vai

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