O 'annus horribilis' do direito tecnológico

13-08-2004
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Ciberterrorismo e privacidade em debate na Ordem dos Advogados

O 'Annus Horribilis' do Direito Tecnológico

Segunda-feira, 07 de Junho de 2004

%Pedro Fonseca

Onde começam as necessidades legislativas e policiais e termina a privacidade individual? Há ou não uma exigência social, em nome do cada vez mais generalizado termo "terrorismo", para atentar contra as liberdades cívicas de todos os cidadãos? O que está a fazer Portugal no panorama legislativo?

Estas questões estiveram, na semana passada, presentes no debate organizado pela Ordem dos Advogados (OA), com a presença de José Magalhães, deputado do Partido Socialista, Ana Roque, professora na Universidade Autónoma de Lisboa, e Francisco Teixeira da Mota, advogado (e consultor jurídico do PÚBLICO), e os moderadores Pedro Amorim e Lopes Rocha, da secção de Direito das Novas Tecnologias e Comércio Electrónico da OA.

Neste terceiro debate - os anteriores foram sobre o cibercrime e o projecto MyLifeBits (ver "Pelo Direito ao Esquecimento", Computadores de 22-3-2004) -, Pedro Amorim começou por explicitar algumas interrogações e reflexões sobre o quadro legislativo nacional ou propostas ainda em discussão naquilo que classificou como um "annus horribilis" para o direito tecnológico em Portugal.

O jurista referia-se ao regime jurídico da obtenção de prova digital electrónica, que prevê o acesso a dados dos conteúdos de, por exemplo, mensagens de E-mail. Falou também do Orçamento de Estado, onde constam três alterações legislativas que permitem "o acesso indiscriminado" a dados fiscais e da segurança social pelas forças policiais, sem qualquer controlo judicial.

Finalmente, sobre a questão da videovigilância, remeteu para um texto de José Magalhães publicado no blogue parlamentar República Digital, onde, sobre o debate no Parlamento, é dito que "temos uma lei provisória a vigorar para o Euro 2004 em matéria de videovigilância mas as autoridades criminais, no último dia da vigência desse diploma, ficarão sem meios para actuar neste domínio". "Isto é, é urgente aprovar legislação estável e estrutural sobre o uso de meios de videovigilância por autoridades de investigação criminal, fora dos casos em que já há credencial para [a Polícia Judiciária] actuar".

Magalhães prossegue alertando que "o resultado desta forma de intervenção legislativa avulsa é muito insatisfatório e, na verdade, insustentável. A Comissão Nacional de Protecção de Dados [CNPD], felizmente, estabeleceu, através da Deliberação n.º 61/2004, princípios orientadores da sua acção, o que é de aplaudir, mas não basta, e a multiplicação de situações pode gerar perdas de eficácia ou atentados, não apenas por invasão da privacidade, mas, pelo contrário, por mau uso, ou défice de uso, da videovigilância para fins que são bons. Não se deve ter uma atitude de satanização da videovigilância [...], deve ter-se uma atitude de uso regrado e enquadrado da videovigilância com respeito pelos direitos, liberdades e garantias". Em resumo, referiu, falta "uma lei-quadro para a videovigilância, como Espanha e França têm, e é preciso fazer isso em Portugal".

Para Ana Roque, "a luta contra o terrorismo está a ser usada" como desculpa e não convém que a pressão do terrorismo conduza à pressão sobre a Constituição e "outros instrumentos para se cair em excessos". A professora da UAL salientou que, "a par da falta de produção legislativa", está também "preocupada com a falta de qualidade" dessa mesma produção.

Já para José Magalhães, "a questão é que não estamos a agir sozinhos" e se tem de olhar para os "parceiros europeus", sendo "errado agir como se fôssemos os Estados Unidos". O conhecimento da lei deste país "é importante" mas exige uma análise e um enquadramento do ponto de vista nacional.

Este enquadramento é, no entanto, de difícil substância adaptável porque, para Pedro Amorim, os EUA podem impor à Europa e a Portugal certas regras. O jurista deu o exemplo de um banco nacional a quem as autoridades norte-americanas pedem extractos de conta de um determinado cidadão: O banco recusa, ao abrigo da lei portuguesa, e os EUA ameaçam com o encerramento das respectivas delegações. Só restaria à instituição bancária fornecer os dados requeridos pelas autoridades norte-americanas...

"Há que evitar dois males opostos", salienta José Magalhães, "não se pode brincar com o terrorismo e a acção policial necessita de meios". Não vê "na armadura legal um impedimento a lutar" contra o terrorismo mas também concorda que este "não pode ser usado para combater a armadura constitucional". Para o deputado socialista, Portugal tem leis "e não há vazio legal". Há também uma transposição "atempada" das directivas comunitárias (apesar de referir mais tarde alguns atrasos nessa transposição) mas somos um "'case study' de inexplicabilidade": nota-se uma "política errática" sem coordenação, apesar da existência da Unidade de Missão Inovação e Conhecimento (UMIC), "com diferentes entidades a agir, com legislação avulsa".

José Magalhães salientou ainda o "timing" ditado para certas alterações legais por "opções políticas muito marcadas pelo caso Casa Pia" e que "é inapagável e terá questões funestas" no futuro. O deputado salientou ainda que "o cruzamento de dados" ou o referido (por Pedro Amorim) acesso aos dados fiscais ou da segurança social "é uma questão principal" e "aparece entre uma 'cena de estalos' entre o Ministério da Justiça e a CNPD", tendo assim avançado.

Perante o espanto na forma como estas questões são levadas a Conselho de Ministros ou à Assembleia da República, Teixeira da Mota salientou ainda duas questões para a falta de associação cívica na defesa destas questões. Por um lado, as pessoas estão preocupadas com a sobrevivência económica, o que as fragiliza para as lutas sociais. Por outro lado, o associativismo cívico em Portugal é mínimo e ainda menos nas questões relacionadas com as tecnologias ou a privacidade individual. "Desde 1994, andámos muito", salientou José Magalhães; "mas não nas questões cívicas", rematou Pedro Amorim.

Lopes Rocha lembrou, nesse sentido, haver uma quase inexistência de conhecimento em Portugal do que é feito em Bruxelas, um secretismo e défice de "transmissão para o público" nacional. Um exemplo recente foi a questão das patentes de "software", em que Portugal votou a favor, sem que se saiba que organismo ou político liderou a votação nacional (ver caixa "A incógnita da votação nacional nas patentes de 'software'").

Ciberterrorismo e privacidade em debate na Ordem dos Advogados

O 'Annus Horribilis' do Direito Tecnológico

Segunda-feira, 07 de Junho de 2004

%Pedro Fonseca

Onde começam as necessidades legislativas e policiais e termina a privacidade individual? Há ou não uma exigência social, em nome do cada vez mais generalizado termo "terrorismo", para atentar contra as liberdades cívicas de todos os cidadãos? O que está a fazer Portugal no panorama legislativo?

Estas questões estiveram, na semana passada, presentes no debate organizado pela Ordem dos Advogados (OA), com a presença de José Magalhães, deputado do Partido Socialista, Ana Roque, professora na Universidade Autónoma de Lisboa, e Francisco Teixeira da Mota, advogado (e consultor jurídico do PÚBLICO), e os moderadores Pedro Amorim e Lopes Rocha, da secção de Direito das Novas Tecnologias e Comércio Electrónico da OA.

Neste terceiro debate - os anteriores foram sobre o cibercrime e o projecto MyLifeBits (ver "Pelo Direito ao Esquecimento", Computadores de 22-3-2004) -, Pedro Amorim começou por explicitar algumas interrogações e reflexões sobre o quadro legislativo nacional ou propostas ainda em discussão naquilo que classificou como um "annus horribilis" para o direito tecnológico em Portugal.

O jurista referia-se ao regime jurídico da obtenção de prova digital electrónica, que prevê o acesso a dados dos conteúdos de, por exemplo, mensagens de E-mail. Falou também do Orçamento de Estado, onde constam três alterações legislativas que permitem "o acesso indiscriminado" a dados fiscais e da segurança social pelas forças policiais, sem qualquer controlo judicial.

Finalmente, sobre a questão da videovigilância, remeteu para um texto de José Magalhães publicado no blogue parlamentar República Digital, onde, sobre o debate no Parlamento, é dito que "temos uma lei provisória a vigorar para o Euro 2004 em matéria de videovigilância mas as autoridades criminais, no último dia da vigência desse diploma, ficarão sem meios para actuar neste domínio". "Isto é, é urgente aprovar legislação estável e estrutural sobre o uso de meios de videovigilância por autoridades de investigação criminal, fora dos casos em que já há credencial para [a Polícia Judiciária] actuar".

Magalhães prossegue alertando que "o resultado desta forma de intervenção legislativa avulsa é muito insatisfatório e, na verdade, insustentável. A Comissão Nacional de Protecção de Dados [CNPD], felizmente, estabeleceu, através da Deliberação n.º 61/2004, princípios orientadores da sua acção, o que é de aplaudir, mas não basta, e a multiplicação de situações pode gerar perdas de eficácia ou atentados, não apenas por invasão da privacidade, mas, pelo contrário, por mau uso, ou défice de uso, da videovigilância para fins que são bons. Não se deve ter uma atitude de satanização da videovigilância [...], deve ter-se uma atitude de uso regrado e enquadrado da videovigilância com respeito pelos direitos, liberdades e garantias". Em resumo, referiu, falta "uma lei-quadro para a videovigilância, como Espanha e França têm, e é preciso fazer isso em Portugal".

Para Ana Roque, "a luta contra o terrorismo está a ser usada" como desculpa e não convém que a pressão do terrorismo conduza à pressão sobre a Constituição e "outros instrumentos para se cair em excessos". A professora da UAL salientou que, "a par da falta de produção legislativa", está também "preocupada com a falta de qualidade" dessa mesma produção.

Já para José Magalhães, "a questão é que não estamos a agir sozinhos" e se tem de olhar para os "parceiros europeus", sendo "errado agir como se fôssemos os Estados Unidos". O conhecimento da lei deste país "é importante" mas exige uma análise e um enquadramento do ponto de vista nacional.

Este enquadramento é, no entanto, de difícil substância adaptável porque, para Pedro Amorim, os EUA podem impor à Europa e a Portugal certas regras. O jurista deu o exemplo de um banco nacional a quem as autoridades norte-americanas pedem extractos de conta de um determinado cidadão: O banco recusa, ao abrigo da lei portuguesa, e os EUA ameaçam com o encerramento das respectivas delegações. Só restaria à instituição bancária fornecer os dados requeridos pelas autoridades norte-americanas...

"Há que evitar dois males opostos", salienta José Magalhães, "não se pode brincar com o terrorismo e a acção policial necessita de meios". Não vê "na armadura legal um impedimento a lutar" contra o terrorismo mas também concorda que este "não pode ser usado para combater a armadura constitucional". Para o deputado socialista, Portugal tem leis "e não há vazio legal". Há também uma transposição "atempada" das directivas comunitárias (apesar de referir mais tarde alguns atrasos nessa transposição) mas somos um "'case study' de inexplicabilidade": nota-se uma "política errática" sem coordenação, apesar da existência da Unidade de Missão Inovação e Conhecimento (UMIC), "com diferentes entidades a agir, com legislação avulsa".

José Magalhães salientou ainda o "timing" ditado para certas alterações legais por "opções políticas muito marcadas pelo caso Casa Pia" e que "é inapagável e terá questões funestas" no futuro. O deputado salientou ainda que "o cruzamento de dados" ou o referido (por Pedro Amorim) acesso aos dados fiscais ou da segurança social "é uma questão principal" e "aparece entre uma 'cena de estalos' entre o Ministério da Justiça e a CNPD", tendo assim avançado.

Perante o espanto na forma como estas questões são levadas a Conselho de Ministros ou à Assembleia da República, Teixeira da Mota salientou ainda duas questões para a falta de associação cívica na defesa destas questões. Por um lado, as pessoas estão preocupadas com a sobrevivência económica, o que as fragiliza para as lutas sociais. Por outro lado, o associativismo cívico em Portugal é mínimo e ainda menos nas questões relacionadas com as tecnologias ou a privacidade individual. "Desde 1994, andámos muito", salientou José Magalhães; "mas não nas questões cívicas", rematou Pedro Amorim.

Lopes Rocha lembrou, nesse sentido, haver uma quase inexistência de conhecimento em Portugal do que é feito em Bruxelas, um secretismo e défice de "transmissão para o público" nacional. Um exemplo recente foi a questão das patentes de "software", em que Portugal votou a favor, sem que se saiba que organismo ou político liderou a votação nacional (ver caixa "A incógnita da votação nacional nas patentes de 'software'").

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