Um eurocéptico nas Necessidades

10-10-2003
marcar artigo

Um Eurocéptico nas Necessidades

Por TERESA DE SOUSA

Quarta-feira, 08 de Outubro de 2003 É na frente europeia que qualquer chefe da diplomacia de um Estado-membro da União tem o seu palco de actuação mais importante. Esta regra geral é ainda mais evidente quando se trata de um país como Portugal, pequeno e sem capacidade de influenciar, a não ser por via da Europa, o curso dos grandes acontecimentos internacionais. No ano e meio em que esteve à frente do Palácio das Necessidade, o embaixador António Martins da Cruz não deixou marcas dignas de registo na política europeia do país, nem deixará, provavelmente, muitas saudades entre os seus pares europeus. Não por falta de competência diplomática ou por falta de experiência nas questões europeias. Mas por razões que se prendem sobretudo com a sua formação de diplomata e com a sua personalidade polémica. Experiência europeia não lhe faltava quando ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros, em Maio do ano passado. O ex-ministro fez a sua aprendizagem europeia como principal assessor diplomático de Cavaco Silva de 1985 a 1994, acompanhando nessa qualidade de muito perto os primeiros passos da integração de Portugal na Comunidade, as ondas de choque da queda do Muro de Berlim e da unificação alemã e as negociações do Tratado de Maastricht. Foi, depois, embaixador de Portugal na NATO num período em que a Aliança Atlântica dava os primeiros passos na sua adaptação às novas condições geopolíticas do pós-guerra fria, ao mesmo tempo que a Europa fazia nos Balcãs a dolorosa aprendizagem da sua fraqueza política e militar. Finalmente, como embaixador em Madrid, a partir de 1999, Martins da Cruz viveu por dentro um dos vectores mais importantes e mais sensíveis da dimensão europeia da política externa portuguesa. Esta longa experiência acumulada não conseguiu fazer dele um europeísta convencido, nem levá-lo a partilhar as concepções europeias de Cavaco Silva ou de Durão Barroso. Pelo contrário, Martins da Cruz continuou a ser, enquanto esteve à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o que sempre foi ao longo da sua carreira diplomática: um eurocéptico, moldado na velha tradição atlantista da diplomacia portuguesa, que sempre se caracterizou por uma forte desconfiada em relação à Europa e, sobretudo, uma forte hostilidade em relação à ameaça "hegemónica" da Alemanha. Mas também não foram, certamente, as credenciais europeias que levaram Durão Barroso a escolhê-lo para a pasta dos Negócios Estrangeiros. Ele próprio antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Cavaco Silva, um profundo conhecedor das questões da Europa e do mundo, com fortes convicções sobre a importância estratégica vital da opção europeia do país, Barroso quis ter alguém nas Necessidades que pudesse ser o mais fiel intérprete da sua própria política europeia. Aparentemente, Martins da Cruz podia preencher na perfeição estes requisitos. Amigo de longa data do primeiro-ministro, diplomata experimentado, não tinha uma carreira política autónoma capaz de retirar a Barroso o protagonismo na condução da política externa e, em primeiro lugar, da política europeia do governo. A escolha de alguém com as credenciais europeias de Carlos Costa Neves para a secretaria de Estado dos Assuntos Europeus - por onde passa a gestão quotidiana das relações com Bruxelas - permitia contrabalançar o eurocepticismo do ministro e conferir equilíbrio e eficácia ao triângulo em que assenta a política europeia do país. A crise iraquiana deu, certamente, ao ex-ministro a possibilidade de pôr em prática as suas convicções atlantistas. Mas a estratégia do governo para os trabalhos da Convenção que preparou o texto da futura Constituição europeia foi sempre definida e conduzida por Durão Barroso e a sua execução esteve, em boa medida, a cargo de Carlos Costa Neves. Nessa medida, o afastamento de Martins da Cruz não terá implicações irreparáveis na Conferência Intergovernamental (CIG) que abriu os seus trabalhos em Roma, no sábado passado, para finalizar a redacção do novo texto constitucional. Pode mesmo revelar-se como positiva, agora que o governo quer deixar para trás as incomodidades do seu alinhamento com os EUA no Iraque e reafirmar as suas credenciais europeias. Como diplomata experiente, o antigo ministro poderia ter sido um bom negociador na CIG. Como político, a imagem que granjeou entre os seus pares não seria, porventura, a melhor para acentuar o "perfil europeu" de Portugal, que tem ditado o comportamento do primeiro-ministro nos últimos meses: mostrar aos seus parceiros europeus e, sobretudo, ao eixo Paris-Berlim, que o seu alinhamento com Washington na crise do Iraque não significa um menor empenho na construção europeia. Martins da Cruz quis ser um bom executante das orientações de Durão Barroso. O seu feitio polémico e o seu eurocepticismo não o ajudaram nessa missão. Deixará poucas saudades no ministério e poucas lembranças em Bruxelas. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Omissões de Martins da Cruz irritam membros do Governo

José Cesário remete responsabilidades para gabinete do ministro

Comunicado integral do MNE horas antes da demissão

Ferro Rodrigues:

Martins da Cruz, um diplomata que gosta de ter inimigos

Um eurocéptico nas Necessidades

Dixit da crise

EDITORIAL

No limite do patético

Um Eurocéptico nas Necessidades

Por TERESA DE SOUSA

Quarta-feira, 08 de Outubro de 2003 É na frente europeia que qualquer chefe da diplomacia de um Estado-membro da União tem o seu palco de actuação mais importante. Esta regra geral é ainda mais evidente quando se trata de um país como Portugal, pequeno e sem capacidade de influenciar, a não ser por via da Europa, o curso dos grandes acontecimentos internacionais. No ano e meio em que esteve à frente do Palácio das Necessidade, o embaixador António Martins da Cruz não deixou marcas dignas de registo na política europeia do país, nem deixará, provavelmente, muitas saudades entre os seus pares europeus. Não por falta de competência diplomática ou por falta de experiência nas questões europeias. Mas por razões que se prendem sobretudo com a sua formação de diplomata e com a sua personalidade polémica. Experiência europeia não lhe faltava quando ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros, em Maio do ano passado. O ex-ministro fez a sua aprendizagem europeia como principal assessor diplomático de Cavaco Silva de 1985 a 1994, acompanhando nessa qualidade de muito perto os primeiros passos da integração de Portugal na Comunidade, as ondas de choque da queda do Muro de Berlim e da unificação alemã e as negociações do Tratado de Maastricht. Foi, depois, embaixador de Portugal na NATO num período em que a Aliança Atlântica dava os primeiros passos na sua adaptação às novas condições geopolíticas do pós-guerra fria, ao mesmo tempo que a Europa fazia nos Balcãs a dolorosa aprendizagem da sua fraqueza política e militar. Finalmente, como embaixador em Madrid, a partir de 1999, Martins da Cruz viveu por dentro um dos vectores mais importantes e mais sensíveis da dimensão europeia da política externa portuguesa. Esta longa experiência acumulada não conseguiu fazer dele um europeísta convencido, nem levá-lo a partilhar as concepções europeias de Cavaco Silva ou de Durão Barroso. Pelo contrário, Martins da Cruz continuou a ser, enquanto esteve à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o que sempre foi ao longo da sua carreira diplomática: um eurocéptico, moldado na velha tradição atlantista da diplomacia portuguesa, que sempre se caracterizou por uma forte desconfiada em relação à Europa e, sobretudo, uma forte hostilidade em relação à ameaça "hegemónica" da Alemanha. Mas também não foram, certamente, as credenciais europeias que levaram Durão Barroso a escolhê-lo para a pasta dos Negócios Estrangeiros. Ele próprio antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Cavaco Silva, um profundo conhecedor das questões da Europa e do mundo, com fortes convicções sobre a importância estratégica vital da opção europeia do país, Barroso quis ter alguém nas Necessidades que pudesse ser o mais fiel intérprete da sua própria política europeia. Aparentemente, Martins da Cruz podia preencher na perfeição estes requisitos. Amigo de longa data do primeiro-ministro, diplomata experimentado, não tinha uma carreira política autónoma capaz de retirar a Barroso o protagonismo na condução da política externa e, em primeiro lugar, da política europeia do governo. A escolha de alguém com as credenciais europeias de Carlos Costa Neves para a secretaria de Estado dos Assuntos Europeus - por onde passa a gestão quotidiana das relações com Bruxelas - permitia contrabalançar o eurocepticismo do ministro e conferir equilíbrio e eficácia ao triângulo em que assenta a política europeia do país. A crise iraquiana deu, certamente, ao ex-ministro a possibilidade de pôr em prática as suas convicções atlantistas. Mas a estratégia do governo para os trabalhos da Convenção que preparou o texto da futura Constituição europeia foi sempre definida e conduzida por Durão Barroso e a sua execução esteve, em boa medida, a cargo de Carlos Costa Neves. Nessa medida, o afastamento de Martins da Cruz não terá implicações irreparáveis na Conferência Intergovernamental (CIG) que abriu os seus trabalhos em Roma, no sábado passado, para finalizar a redacção do novo texto constitucional. Pode mesmo revelar-se como positiva, agora que o governo quer deixar para trás as incomodidades do seu alinhamento com os EUA no Iraque e reafirmar as suas credenciais europeias. Como diplomata experiente, o antigo ministro poderia ter sido um bom negociador na CIG. Como político, a imagem que granjeou entre os seus pares não seria, porventura, a melhor para acentuar o "perfil europeu" de Portugal, que tem ditado o comportamento do primeiro-ministro nos últimos meses: mostrar aos seus parceiros europeus e, sobretudo, ao eixo Paris-Berlim, que o seu alinhamento com Washington na crise do Iraque não significa um menor empenho na construção europeia. Martins da Cruz quis ser um bom executante das orientações de Durão Barroso. O seu feitio polémico e o seu eurocepticismo não o ajudaram nessa missão. Deixará poucas saudades no ministério e poucas lembranças em Bruxelas. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Omissões de Martins da Cruz irritam membros do Governo

José Cesário remete responsabilidades para gabinete do ministro

Comunicado integral do MNE horas antes da demissão

Ferro Rodrigues:

Martins da Cruz, um diplomata que gosta de ter inimigos

Um eurocéptico nas Necessidades

Dixit da crise

EDITORIAL

No limite do patético

marcar artigo