Portugal e o futuro da UE

16-09-2003
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TRIBUNA

Portugal e o futuro da UE (e do PE)

Por Sérgio Ribeiro

Há poucas semanas, nesta "tribuna", o camarada João Amaral, a propósito da campanha do referendo sobre a despenalização do aborto, pedia debate democrático. Pertinentemente. Dando exemplo. Outros debates andam por aí. Um sobre o futuro da União Europeia. Em que escasseiam amostras de democracia. Em que, a propósito de fundos (e de milhões), se dão golpes baixos, se falta à verdade, ainda por cima com a agravante de tais métodos servirem de cortina de fumo para não se debaterem as causas das consequências que se lamentam e cuja responsabilidade se imputa a quem exige (e luta por) alternativas.

Alternativas para a estratégia do capital financeiro transnacional, contra "a vitória das teses neo-liberais (que) subalterniza claramente a coesão económica e social, a política social, as 'novas políticas' (ICT, ambiente, etc.)", como há 10 anos escrevia o dr. José Barros Moura, a propósito do Acto Único(1). É precisamente um artigo de agora do mesmo autor (2) que nos estimula a debater o futuro da UE e, nela, do Parlamento Europeu, e de Portugal no PE e na UE. Porque, a nosso ver, tal artigo tem duas facetas. A do debate ausente de pressupostos democráticos, a raiar a provocação, mas, também, a do debate prenhe de potencial democrático.

O mais breve possível, fica o repúdio "venenosa" insinuação de que "só o esquecimento de que o esquerdismo é uma 'doença infantil' levou o grupo comunista a inviabilizar um compromisso que teria evitado o mal pior...". O "mal pior" era findar o acesso ao Fundo de Coesão para os países no euro que, no cumprimento do objectivo da coesão económica e social, a ele têm direito. Ficaria para nós o ónus da culpa; para nós, que desde sempre vimos denunciando a estratégia em que essa exclusão se insere; para nós, que em todas as circunstâncias - e também naquela - lutamos para minorar os males da dita estratégia. Mas que não aceitamos travestir o "mal pior" com uma tanga faz-de-conta que lhe faria parecer um "mal assim-assim".

Talvez BM, para se curar da doença que cita e de que terá eventualmente sofrido, tenha tomado tal dose de remédio que agora sofra de doença simétrica, que se poderia chamar "síndrome de senilidade social-democrata", e que não só o leva a aceitar os males piores se disfarçados como a ter fixações no que respeita a culpas e responsabilização. Fora essa manifestação de doentia agressividade, aliás dispensável no conjunto do artigo, as posições de BM, e como as defende, podem servir o debate "o Parlamento Europeu e o futuro da UE", como propõe no título.

Contra uma "lógica renacionalizante"?!

Este debate é tanto mais necessário e oportuno quanto se aproximam as eleições para o PE e desejável é que se identifiquem estratégias e políticas, e se discutam ideias e projectos. Caminhos percorridos e a percorrer.

Para BM, o PE é a "instituição supranacional independente, de suporte à coesão económica e social e ao apoio comunitário aos países e regiões menos desenvolvidos" que, com a Comissão, jogaria "o jogo institucional supranacional que faz contrapeso à negociação intergovernamental do Conselho e promove a síntese, tão original, de método comunitário de decisão".

Passado o entusiasmo encomiástico, que o leva - hoje! - a dizer que esse jogo foi "exemplarmente praticado pela Comissão Delors", BM ataca a metodologia intergovernamental que foi a que trouxe a integração europeia até ao actual estádio. Foram governos, legitimados democraticamente, que entre si negociaram e levaram os resultados dessas negociações a ratificação, seja pelos eleitos directamente, isto é, pelos parlamentos, seja por via de referendos. Assim se deram todos os passos, com base em soberanias nacionais, mesmo quando desses passos resultavam transferências de competências para nível supranacional.

É esta metodologia, traduzida no equilíbrio inter-institucional "comunitário" pela continuidade intergovernamental no Conselho, que é posta em causa por BM. Com uma clareza de pensamento e de exposição raro encontrada noutros que alinham nas mesmas posições, alguns sem saberem o que atacam e o que defendem.

O Conselho representa, para BM, a "lógica renacionalizante", que seria, para ele, o caminho inverso do que até agora se percorreu, a Comissão ter-se-ia transformado "numa espécie de secretariado de apoio ao Conselho", traindo o Parlamento Europeu que, pelo seu lado, também não anda lá muito bem, com uma "clara renacionalização de atitude", como exemplos recentes revelariam.

O Parlamento Europeu (e Portugal!) e o futuro da UE

Daqui não parte BM para uma reflexão sobre se não se teria andado depressa e longe demais na concretização das teses neo-liberais, sendo o Acto Único o antepassado de Maastricht e este de Amsterdam e este de Bruxelas da decisão sobre moeda única, num percurso que, pelo caminho, veio esmagando quanto possível as resistências que se podem rever no objectivo, também no Acto Único definido, de coesão económica e social. Caminho que tem feito crescer desemprego, divergências e exclusão sociais, quer chova ou faça sol, isto é, seja a conjuntura económica boa ou má. Não por ser intergovernamental o método mas por a intergovernamentalidade vir servindo opções de classe. Que, agora, a dispensariam, já capaz - a classe, na sua dimensão transnacional - de regular a economia sem empecilhos estatais e, ainda por cima, democráticos.

Reconhece BM que não há controlo democrático para o Banco Central Europeu, a primeira instituição federal, liberta de intergovernamentalidades. Mas, em vez de encontrar nesse reconhecimento a prova de que "o domínio das transnacionais"(1) foi demasiado longe, ataca a intergovernamentalidade (que então defendia, com salvaguarda do direito de veto e tudo!) e quer avançar, em força, para "uma fiscalidade europeia e a coordenação das políticas económicas e do emprego". E quer mais: "não tenhamos dúvidas (!), mais tarde ou mais cedo, um orçamento da UE que garanta a coesão económica e social". O que, face à intransigência da Agenda 2000 no "plafond" orçamental dos 1,27% apesar do alargamento em negociação (e também face à perspectiva de aceitação ou submissão a tal imposição pelos grandes partidos "europeus"), pareceria ingenuidade se não se conhecesse o autor.

A culpa, diz BM, é do método, da "intergovernamentalidade renacionalizante", impondo-se voltar ao trilho, "refazer o caminho"... Ora, em 1988, escrevia BM:

"Isso corresponderia a supor, anti-cientificamente, contra os ensinamentos do marxismo-leninismo, que na CEE desaparecem as contradições de classe e as contradições nacionais. Não é verdade. Cavaco pode dizê-lo - para tentar desvalorizar a oposição interna à sua política anti-patriótica e anti-popular. Lucas Pires pode apregoar o suposto consenso europeísta para mistificar a oposição real à política (ultra-liberal) dos monopólios. Nós não podemos meter tudo no mesmo saco."

O debate democrático e uma lembrança/homenagem

Já agora, sendo o artigo em comentário dedicado a Francisco Lucas Pires, não metamos nós todos no mesmo saco, e lembremos que este, à medida que o tempo ia avançando e a "construção europeia" dando passos, levantava dúvidas e punha questões, com que a sua prática política poderia não ser coerente mas que mostravam, pelo menos academicamente e sobre as alternativas institucionais no terreno, reservas que BM ignora.

Não sobra espaço para citações, mas lembra-se que, a propósito da CIG (Conferência Intergovernamental) para 1996, LP escreveu um livro (3) em que alertava para o risco de se entrar por vias, como em Duverger se descortinava, que substituíssem o Estado-nação pelo Estado-população, reforçando a via de adopção de um Directório e em que, ao abstrair-se, segundo LP, da "valia autónoma da ideia de Estado", não susceptível de se reduzir a uma "realidade puramente económica ou populacional", os "pequenos países" mais pequenos ficariam.

Este é, julgamos, um debate maior. Em aberto. E não se trata tão-somente do futuro do PE na UE, e vice-versa, mas do futuro de Portugal na União Europeia, ou melhor, de que União Europeia será compatível com a preservação do Estado-nação enquanto ideia com uma "valia autónoma" (e dinâmica), como tantos séculos de Portugal o mostram.

Para fazer prevalecer a oposição a uma política anti-patriótica e anti-popular que prossegue.

______________________________________________

(1) - Situação Actual na CEE, in Portugal e a CEE Hoje, Edições Avante, 1988

(2) - O Parlamento Europeu e o futuro da UE, in Diário de Notícias de 16 de Junho de 1998

(3) - Portugal e o futuro da União Europeia - sobre a revisão dos Tratados em 1996, Difusão Cultural, 1995

«Avante!» Nº 1284 - 9.Julho.98

TRIBUNA

Portugal e o futuro da UE (e do PE)

Por Sérgio Ribeiro

Há poucas semanas, nesta "tribuna", o camarada João Amaral, a propósito da campanha do referendo sobre a despenalização do aborto, pedia debate democrático. Pertinentemente. Dando exemplo. Outros debates andam por aí. Um sobre o futuro da União Europeia. Em que escasseiam amostras de democracia. Em que, a propósito de fundos (e de milhões), se dão golpes baixos, se falta à verdade, ainda por cima com a agravante de tais métodos servirem de cortina de fumo para não se debaterem as causas das consequências que se lamentam e cuja responsabilidade se imputa a quem exige (e luta por) alternativas.

Alternativas para a estratégia do capital financeiro transnacional, contra "a vitória das teses neo-liberais (que) subalterniza claramente a coesão económica e social, a política social, as 'novas políticas' (ICT, ambiente, etc.)", como há 10 anos escrevia o dr. José Barros Moura, a propósito do Acto Único(1). É precisamente um artigo de agora do mesmo autor (2) que nos estimula a debater o futuro da UE e, nela, do Parlamento Europeu, e de Portugal no PE e na UE. Porque, a nosso ver, tal artigo tem duas facetas. A do debate ausente de pressupostos democráticos, a raiar a provocação, mas, também, a do debate prenhe de potencial democrático.

O mais breve possível, fica o repúdio "venenosa" insinuação de que "só o esquecimento de que o esquerdismo é uma 'doença infantil' levou o grupo comunista a inviabilizar um compromisso que teria evitado o mal pior...". O "mal pior" era findar o acesso ao Fundo de Coesão para os países no euro que, no cumprimento do objectivo da coesão económica e social, a ele têm direito. Ficaria para nós o ónus da culpa; para nós, que desde sempre vimos denunciando a estratégia em que essa exclusão se insere; para nós, que em todas as circunstâncias - e também naquela - lutamos para minorar os males da dita estratégia. Mas que não aceitamos travestir o "mal pior" com uma tanga faz-de-conta que lhe faria parecer um "mal assim-assim".

Talvez BM, para se curar da doença que cita e de que terá eventualmente sofrido, tenha tomado tal dose de remédio que agora sofra de doença simétrica, que se poderia chamar "síndrome de senilidade social-democrata", e que não só o leva a aceitar os males piores se disfarçados como a ter fixações no que respeita a culpas e responsabilização. Fora essa manifestação de doentia agressividade, aliás dispensável no conjunto do artigo, as posições de BM, e como as defende, podem servir o debate "o Parlamento Europeu e o futuro da UE", como propõe no título.

Contra uma "lógica renacionalizante"?!

Este debate é tanto mais necessário e oportuno quanto se aproximam as eleições para o PE e desejável é que se identifiquem estratégias e políticas, e se discutam ideias e projectos. Caminhos percorridos e a percorrer.

Para BM, o PE é a "instituição supranacional independente, de suporte à coesão económica e social e ao apoio comunitário aos países e regiões menos desenvolvidos" que, com a Comissão, jogaria "o jogo institucional supranacional que faz contrapeso à negociação intergovernamental do Conselho e promove a síntese, tão original, de método comunitário de decisão".

Passado o entusiasmo encomiástico, que o leva - hoje! - a dizer que esse jogo foi "exemplarmente praticado pela Comissão Delors", BM ataca a metodologia intergovernamental que foi a que trouxe a integração europeia até ao actual estádio. Foram governos, legitimados democraticamente, que entre si negociaram e levaram os resultados dessas negociações a ratificação, seja pelos eleitos directamente, isto é, pelos parlamentos, seja por via de referendos. Assim se deram todos os passos, com base em soberanias nacionais, mesmo quando desses passos resultavam transferências de competências para nível supranacional.

É esta metodologia, traduzida no equilíbrio inter-institucional "comunitário" pela continuidade intergovernamental no Conselho, que é posta em causa por BM. Com uma clareza de pensamento e de exposição raro encontrada noutros que alinham nas mesmas posições, alguns sem saberem o que atacam e o que defendem.

O Conselho representa, para BM, a "lógica renacionalizante", que seria, para ele, o caminho inverso do que até agora se percorreu, a Comissão ter-se-ia transformado "numa espécie de secretariado de apoio ao Conselho", traindo o Parlamento Europeu que, pelo seu lado, também não anda lá muito bem, com uma "clara renacionalização de atitude", como exemplos recentes revelariam.

O Parlamento Europeu (e Portugal!) e o futuro da UE

Daqui não parte BM para uma reflexão sobre se não se teria andado depressa e longe demais na concretização das teses neo-liberais, sendo o Acto Único o antepassado de Maastricht e este de Amsterdam e este de Bruxelas da decisão sobre moeda única, num percurso que, pelo caminho, veio esmagando quanto possível as resistências que se podem rever no objectivo, também no Acto Único definido, de coesão económica e social. Caminho que tem feito crescer desemprego, divergências e exclusão sociais, quer chova ou faça sol, isto é, seja a conjuntura económica boa ou má. Não por ser intergovernamental o método mas por a intergovernamentalidade vir servindo opções de classe. Que, agora, a dispensariam, já capaz - a classe, na sua dimensão transnacional - de regular a economia sem empecilhos estatais e, ainda por cima, democráticos.

Reconhece BM que não há controlo democrático para o Banco Central Europeu, a primeira instituição federal, liberta de intergovernamentalidades. Mas, em vez de encontrar nesse reconhecimento a prova de que "o domínio das transnacionais"(1) foi demasiado longe, ataca a intergovernamentalidade (que então defendia, com salvaguarda do direito de veto e tudo!) e quer avançar, em força, para "uma fiscalidade europeia e a coordenação das políticas económicas e do emprego". E quer mais: "não tenhamos dúvidas (!), mais tarde ou mais cedo, um orçamento da UE que garanta a coesão económica e social". O que, face à intransigência da Agenda 2000 no "plafond" orçamental dos 1,27% apesar do alargamento em negociação (e também face à perspectiva de aceitação ou submissão a tal imposição pelos grandes partidos "europeus"), pareceria ingenuidade se não se conhecesse o autor.

A culpa, diz BM, é do método, da "intergovernamentalidade renacionalizante", impondo-se voltar ao trilho, "refazer o caminho"... Ora, em 1988, escrevia BM:

"Isso corresponderia a supor, anti-cientificamente, contra os ensinamentos do marxismo-leninismo, que na CEE desaparecem as contradições de classe e as contradições nacionais. Não é verdade. Cavaco pode dizê-lo - para tentar desvalorizar a oposição interna à sua política anti-patriótica e anti-popular. Lucas Pires pode apregoar o suposto consenso europeísta para mistificar a oposição real à política (ultra-liberal) dos monopólios. Nós não podemos meter tudo no mesmo saco."

O debate democrático e uma lembrança/homenagem

Já agora, sendo o artigo em comentário dedicado a Francisco Lucas Pires, não metamos nós todos no mesmo saco, e lembremos que este, à medida que o tempo ia avançando e a "construção europeia" dando passos, levantava dúvidas e punha questões, com que a sua prática política poderia não ser coerente mas que mostravam, pelo menos academicamente e sobre as alternativas institucionais no terreno, reservas que BM ignora.

Não sobra espaço para citações, mas lembra-se que, a propósito da CIG (Conferência Intergovernamental) para 1996, LP escreveu um livro (3) em que alertava para o risco de se entrar por vias, como em Duverger se descortinava, que substituíssem o Estado-nação pelo Estado-população, reforçando a via de adopção de um Directório e em que, ao abstrair-se, segundo LP, da "valia autónoma da ideia de Estado", não susceptível de se reduzir a uma "realidade puramente económica ou populacional", os "pequenos países" mais pequenos ficariam.

Este é, julgamos, um debate maior. Em aberto. E não se trata tão-somente do futuro do PE na UE, e vice-versa, mas do futuro de Portugal na União Europeia, ou melhor, de que União Europeia será compatível com a preservação do Estado-nação enquanto ideia com uma "valia autónoma" (e dinâmica), como tantos séculos de Portugal o mostram.

Para fazer prevalecer a oposição a uma política anti-patriótica e anti-popular que prossegue.

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(1) - Situação Actual na CEE, in Portugal e a CEE Hoje, Edições Avante, 1988

(2) - O Parlamento Europeu e o futuro da UE, in Diário de Notícias de 16 de Junho de 1998

(3) - Portugal e o futuro da União Europeia - sobre a revisão dos Tratados em 1996, Difusão Cultural, 1995

«Avante!» Nº 1284 - 9.Julho.98

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