EXPRESSO: Opinião

29-08-2002
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Estado e responsabilidade política

«Não adianta queimar etapas com a revolução da Internet se não se resolvem os problemas básicos e não se fomenta, a todos os níveis, o espírito de serviço público e a ética de responsabilidade política. A reforma da mentalidade e uma outra concepção do Estado são a mãe de todas as reformas. Sem elas, haverá sempre o risco de uma ponte cair ou, como diria Eça, do próprio Estado aluir. Que é o que acontece quando os cidadãos deixam de acreditar nas instituições.»

É POSSÍVEL que nada fique na mesma depois do que ocorreu na noite de 4 de Março na ponte de Entre-os-Rios/Castelo de Paiva. O desleixo do Estado, essa velha doença nacional, pode provocar tragédias de dimensão inesperada. Não é de agora. O que é novo é a projecção que as televisões dão aos factos. As pontes caem-nos dentro de casa, as mortes, a dor, o luto, o irreparável. E a constatação de que tudo poderia ter sido evitado. De repente todos os dedos apontam para o mesmo réu: o Estado.

Talvez finalmente se entenda que a reforma da mentalidade, essa inglória batalha de António Sérgio, tenha de começar por aqui, por uma outra concepção de responsabilidade do Estado perante os cidadãos. E talvez os termos em que Jorge Coelho apresentou a demissão tenham iniciado uma nova etapa na vida política portuguesa. Havia os exemplos de Walter Rosa e de Francisco Sousa Tavares. Com a sua atitude, Jorge Coelho contribuiu para ressuscitar o conceito de responsabilidade política no exercício do poder. A partir de agora, é muito difícil que outros ministros possam «brincar» com a colocação de lugares à disposição. E é sobretudo mais difícil que a culpa possa continuar a ficar solteira.

Na Dinamarca houve um ministro que se demitiu por uma pequena omissão numa audição parlamentar. Ninguém o acusou. Nem foi preciso. A cultura de responsabilidade no exercício de cargos públicos levou-o a concluir que mesmo esse pequeno deslize era incompatível com a sua condição de ministro. Em Portugal vigora outra tradição: lavar as mãos, encontrar bodes expiatórios, nomear comissões de inquérito, dar tempo ao tempo para o tempo fazer esquecer. Por isso a demissão de Jorge Coelho, até pelo seu peso no Governo e no partido, constitui uma ruptura com essa tradição de desleixo e passa-culpas.

Não adianta queimar etapas com a revolução da Internet se não se resolvem os problemas básicos e não se fomenta, a todos os níveis, o espírito de serviço público e a ética de responsabilidade política. A reforma da mentalidade e uma outra concepção do Estado são a mãe de todas as reformas. Sem elas, haverá sempre o risco de uma ponte cair ou, como diria Eça, do próprio Estado aluir. Que é o que acontece quando os cidadãos deixam de acreditar nas instituições.

2. A tragédia da ponte relegou para segundo plano o sequestro do advogado Jorge Neto Valente. Algo vai mal quando um país, ou os seus «media», pareceram acomodar-se à ideia de que a mais destacada figura da comunidade portuguesa em Macau estava condenada. Parafraseando o outro, a notícia antecipada da morte de Neto Valente foi um tanto exagerada. Houve quem não se resignasse. O presidente Sampaio, o MNE, Mário Soares, as autoridades chinesas de Macau, a Polícia e o Grupo de Operações Especiais (GOE), que são um legado português ali deixado pelo patriotismo e a competência de um grande militar, o brigadeiro Manuel Monge. Eu tive ocasião de apreciar em Macau o aprumo, o rigor e o profissionalismo das forças de polícia. Por isso nunca perdi a esperança. Independentemente das motivações do rapto, é óbvio que as suas consequências seriam e serão sempre políticas. Se as coisas tivessem corrido mal, a comunidade portuguesa sentir-se-ia fragilizada e começaria por certo a abandonar o território. Com o êxito da operação de salvamento de Neto Valente, saem reforçados Edmundo Ho e as autoridades chinesas de Macau. Mas também aqui é necessária uma reflexão sobre a protecção e a defesa de cidadãos portugueses em situação de risco no estrangeiro. É uma responsabilidade de todos, do Governo, dos meios de comunicação, da própria oposição. Algo em que Durão Barroso deveria meditar, já que me pareceu muito infeliz a sua intervenção a propósito do rapto de Neto Valente, quando aproveitou a circunstância para uma desajustada e demagógica alusão ao caso dos portugueses sequestrados em Cabinda. Não que não seja igualmente grave e urgente. Mas não era o momento nem o modo. O eleitoralismo tem limites. É também um problema de sentido de Estado e de responsabilidade política.

E-mail: alegre@ar.parlamento.pt

Estado e responsabilidade política

«Não adianta queimar etapas com a revolução da Internet se não se resolvem os problemas básicos e não se fomenta, a todos os níveis, o espírito de serviço público e a ética de responsabilidade política. A reforma da mentalidade e uma outra concepção do Estado são a mãe de todas as reformas. Sem elas, haverá sempre o risco de uma ponte cair ou, como diria Eça, do próprio Estado aluir. Que é o que acontece quando os cidadãos deixam de acreditar nas instituições.»

É POSSÍVEL que nada fique na mesma depois do que ocorreu na noite de 4 de Março na ponte de Entre-os-Rios/Castelo de Paiva. O desleixo do Estado, essa velha doença nacional, pode provocar tragédias de dimensão inesperada. Não é de agora. O que é novo é a projecção que as televisões dão aos factos. As pontes caem-nos dentro de casa, as mortes, a dor, o luto, o irreparável. E a constatação de que tudo poderia ter sido evitado. De repente todos os dedos apontam para o mesmo réu: o Estado.

Talvez finalmente se entenda que a reforma da mentalidade, essa inglória batalha de António Sérgio, tenha de começar por aqui, por uma outra concepção de responsabilidade do Estado perante os cidadãos. E talvez os termos em que Jorge Coelho apresentou a demissão tenham iniciado uma nova etapa na vida política portuguesa. Havia os exemplos de Walter Rosa e de Francisco Sousa Tavares. Com a sua atitude, Jorge Coelho contribuiu para ressuscitar o conceito de responsabilidade política no exercício do poder. A partir de agora, é muito difícil que outros ministros possam «brincar» com a colocação de lugares à disposição. E é sobretudo mais difícil que a culpa possa continuar a ficar solteira.

Na Dinamarca houve um ministro que se demitiu por uma pequena omissão numa audição parlamentar. Ninguém o acusou. Nem foi preciso. A cultura de responsabilidade no exercício de cargos públicos levou-o a concluir que mesmo esse pequeno deslize era incompatível com a sua condição de ministro. Em Portugal vigora outra tradição: lavar as mãos, encontrar bodes expiatórios, nomear comissões de inquérito, dar tempo ao tempo para o tempo fazer esquecer. Por isso a demissão de Jorge Coelho, até pelo seu peso no Governo e no partido, constitui uma ruptura com essa tradição de desleixo e passa-culpas.

Não adianta queimar etapas com a revolução da Internet se não se resolvem os problemas básicos e não se fomenta, a todos os níveis, o espírito de serviço público e a ética de responsabilidade política. A reforma da mentalidade e uma outra concepção do Estado são a mãe de todas as reformas. Sem elas, haverá sempre o risco de uma ponte cair ou, como diria Eça, do próprio Estado aluir. Que é o que acontece quando os cidadãos deixam de acreditar nas instituições.

2. A tragédia da ponte relegou para segundo plano o sequestro do advogado Jorge Neto Valente. Algo vai mal quando um país, ou os seus «media», pareceram acomodar-se à ideia de que a mais destacada figura da comunidade portuguesa em Macau estava condenada. Parafraseando o outro, a notícia antecipada da morte de Neto Valente foi um tanto exagerada. Houve quem não se resignasse. O presidente Sampaio, o MNE, Mário Soares, as autoridades chinesas de Macau, a Polícia e o Grupo de Operações Especiais (GOE), que são um legado português ali deixado pelo patriotismo e a competência de um grande militar, o brigadeiro Manuel Monge. Eu tive ocasião de apreciar em Macau o aprumo, o rigor e o profissionalismo das forças de polícia. Por isso nunca perdi a esperança. Independentemente das motivações do rapto, é óbvio que as suas consequências seriam e serão sempre políticas. Se as coisas tivessem corrido mal, a comunidade portuguesa sentir-se-ia fragilizada e começaria por certo a abandonar o território. Com o êxito da operação de salvamento de Neto Valente, saem reforçados Edmundo Ho e as autoridades chinesas de Macau. Mas também aqui é necessária uma reflexão sobre a protecção e a defesa de cidadãos portugueses em situação de risco no estrangeiro. É uma responsabilidade de todos, do Governo, dos meios de comunicação, da própria oposição. Algo em que Durão Barroso deveria meditar, já que me pareceu muito infeliz a sua intervenção a propósito do rapto de Neto Valente, quando aproveitou a circunstância para uma desajustada e demagógica alusão ao caso dos portugueses sequestrados em Cabinda. Não que não seja igualmente grave e urgente. Mas não era o momento nem o modo. O eleitoralismo tem limites. É também um problema de sentido de Estado e de responsabilidade política.

E-mail: alegre@ar.parlamento.pt

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