Intervenção do Deputado António Filipe

30-03-2004
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Adaptação da legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário.

Intervenção de António Filipe

17 de Setembro de 2003

Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado,

Srs. Deputados

Este debate é inteiramente pertinente, mas quero dizer-lhe que fiquei um pouco surpreendido com a proposta de lei do Governo, não pelo seu conteúdo mas, sobretudo, pela sua necessidade, pois creio que os projectos de lei que foram aqui discutidos em Março eram suficientes para se conseguir o efeito útil pretendido pela proposta de lei.

Assim, quando os partidos da maioria disseram, no debate de Março, que o Governo estava a preparar uma iniciativa legislativa e que seria prudente os projectos de lei, então discutidos, baixarem à Comissão sem votação, nós concordámos com isso, naturalmente, e aguardámos a proposta de lei do Governo; e criou-se a expectativa de que essa proposta de lei trouxesse algo de substancialmente novo a este debate. Agora, verificamos, porém, que a proposta de lei do Governo, afinal, fez-nos perder seis meses! É porque se tivéssemos começado a discutir, na especialidade, os projectos de lei do PSD e do PCP que aqui foram discutidos seguramente que conseguiríamos o efeito útil que é pretendido pela proposta de lei.

Efectivamente, aquilo que encontramos aqui de novo é o desanexar do nosso Código Penal matérias que também estão criminalizadas no Estatuto do Tribunal Penal Internacional e no Código Penal. Esta, de facto, parece-nos uma técnica, no mínimo, discutível, enquanto que a técnica seguida nos projectos de lei aqui apresentados pelo PSD e pelo PCP, de incorporar no Código Penal tipos de crimes que não estão lá previstos, embora o estejam no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, parecia-nos mais curial.

Não que esta seja uma questão decisiva — nós não somos fundamentalistas relativamente à necessidade de colocar todas as normas com natureza penal no Código Penal, até admitimos a necessidade, em algumas matérias, de legislação penal extravagante, mas também não nos parece que seja um bom princípio tornar o Código Penal numa espécie de «queijo Gruyere» em que, qualquer dia, são mais os «buracos» do que propriamente a matéria regulada…

Agora, estamos a discutir a questão de revogar uma série de artigos do Código Penal e passá-los para legislação extravagante; amanhã, iremos votar, aqui, a justiça militar que vai fazer o mesmo relativamente a mais uma meia dúzia de artigos do Código Penal… E por este princípio, qualquer dia, o Código Penal começa a ser, efectivamente, uma «manta», porque são mais os buracos do que as matérias que nele estão realmente reguladas.

Esta é, por certo, uma opção do ponto de vista técnico que não nos agrada, mas, repito, não é esta, verdadeiramente, a questão substancial.

A questão substancial é a de que, de facto, tem todo o sentido — e, naturalmente que esta proposta de lei terá o nosso voto favorável — que todos os tipos de crime previstos e punidos no Estatuto de Roma do TPI sejam previstos e punidos pelo Direito interno português. Sempre considerámos isto! Considerámo-lo, desde a primeira hora, e aliás, apresentámos o nosso projecto de lei neste sentido, precisamente na altura em que aqui se discutia a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. E, na altura, o projecto foi recusado pela maioria desta Câmara!

Mas, dizia eu, sempre nos pareceu isto, e por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, uma delas, que já foi aqui assinalada: é que há molduras penais, designadamente, a prisão perpétua, que está prevista no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, e não está prevista no Direito português — e ainda bem! Sempre entendemos que somos nós que estamos certos, que é o Direito português que está certo, e contestámos também a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional por esse facto.

Por isso, entendemos que não nos deve ser feita a acusação de pretender, pelo facto de não aceitarmos a prisão perpétua, que alguém pudesse ser encontrado em Portugal, tendo cometido crimes contra a Humanidade, e que ficasse impune pelo facto de sermos contra a prisão perpétua. Portanto, defendemos que todos esses crimes deveriam ser previstos e punidos, de acordo com as molduras penais que devem existir no Direito português, segundo a nossa tradição jurídica e os princípios em que acreditamos.

Em suma, julgamos que Portugal não deveria servir para garantir a impunidade fosse a quem fosse, e, portanto, deveríamos prever essa extensão, em termos materiais, da criminalização de determinadas matérias. E nem estamos muito preocupados com a questão que o Sr. Deputado Jorge Lacão aqui colocou, há pouco, isto é, não nos preocupada, em nada, que um cidadão estrangeiro que seja perseguido por ter cometido crimes contra a Humanidade, e crimes previstos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, seja julgado em Portugal, caso não possa ser extraditado. Se ele puder ser extraditado, sê-lo-á; se não puder ser extraditado, designadamente, por correr o risco de se lhe aplicar a pena de prisão perpétua, ele deve ser julgado em Portugal e os tribunais portugueses devem ter essa competência para que, de facto, não se crie, aqui, um espaço de impunidade para uma pessoa que esteja nessas circunstâncias.

Portanto, a nossa resposta, quanto à extensão da competência dos tribunais portugueses a esses cidadãos, é afirmativa: essa competência deve ser, de facto, estendida.

Uma segunda razão que fez com que propuséssemos este alargamento, digamos, dos tipos de crime previstos no Código Penal português prende-se com o nosso cepticismo relativamente a este Tribunal Penal Internacional. Sempre dissemos que a ideia que preside à criação de uma instituição judiciária internacional que possa julgar com garantias de imparcialidade, de independência, todos os autores de crimes contra a Humanidade é uma ideia generosa; sempre o dissemos, e reafirmamo-lo. Mas também sempre manifestámos o nosso cepticismo relativamente a este concreto Tribunal Penal Internacional, por consideramos que ele muito dificilmente teria condições, dada a correlação de forças existente, a nível internacional, para se impor, enquanto jurisdição independente.

E efectivamente é preciso reconhecer que a vida tem vindo, infelizmente, a dar-nos razão. Alguns acontecimentos, designadamente, as pressões internacionais feitas pelos Estados Unidos da América para garantir a sua impunidade perante o Tribunal Penal Internacional, com algum sucesso e mesmo perante uma posição, no mínimo, equívoca, por parte da União Europeia, infelizmente, parecem dar-nos razão.

Por conseguinte, este é mais um elemento que nos faz considerar que o importante é Portugal poder assegurar, perante o mundo inteiro, que ninguém ficaria impune em Portugal desde que sobre si recaísse a suspeita de ter sido autor de crimes contra a Humanidade, de quaisquer crimes previstos e punidos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Porque pensamos que, deste modo, damos o exemplo perante todo o mundo, e fazêmo-lo de acordo com critérios e princípios de Direito Penal que perfilhamos e que cremos estarem correctos, e relativamente aos quais gostaríamos que fosse, não o nosso país a aproximar-se de princípios que nos são estranhos e repudiamos, mas, pelo contrário, poderíamos dar um exemplo e procurar que sejam os outros países a adoptar os princípios, que julgamos serem justos, nos quais acreditamos e que adoptámos no nosso Direito interno.

Concluindo, votaremos favoravelmente a proposta do Governo; pensamos ser o momento adequado, aliás, para podermos votar na generalidade todas as iniciativas apresentadas; por isso, todas contarão com o nosso voto favorável, na generalidade.

Pensamos que vale a pena fazer este trabalho, na especialidade, para, de facto, concluirmos este procedimento legislativo, e podermos dar um exemplo de que Portugal está seriamente empenhado em acabar com a impunidade dos autores de todo e qualquer crime — contra a Humanidade, crime de guerra, crime de agressão, ou qualquer crime que repudia à consciência universal.

Era isto que eu tinha dizer, Sr. Presidente.

Adaptação da legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário.

Intervenção de António Filipe

17 de Setembro de 2003

Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado,

Srs. Deputados

Este debate é inteiramente pertinente, mas quero dizer-lhe que fiquei um pouco surpreendido com a proposta de lei do Governo, não pelo seu conteúdo mas, sobretudo, pela sua necessidade, pois creio que os projectos de lei que foram aqui discutidos em Março eram suficientes para se conseguir o efeito útil pretendido pela proposta de lei.

Assim, quando os partidos da maioria disseram, no debate de Março, que o Governo estava a preparar uma iniciativa legislativa e que seria prudente os projectos de lei, então discutidos, baixarem à Comissão sem votação, nós concordámos com isso, naturalmente, e aguardámos a proposta de lei do Governo; e criou-se a expectativa de que essa proposta de lei trouxesse algo de substancialmente novo a este debate. Agora, verificamos, porém, que a proposta de lei do Governo, afinal, fez-nos perder seis meses! É porque se tivéssemos começado a discutir, na especialidade, os projectos de lei do PSD e do PCP que aqui foram discutidos seguramente que conseguiríamos o efeito útil que é pretendido pela proposta de lei.

Efectivamente, aquilo que encontramos aqui de novo é o desanexar do nosso Código Penal matérias que também estão criminalizadas no Estatuto do Tribunal Penal Internacional e no Código Penal. Esta, de facto, parece-nos uma técnica, no mínimo, discutível, enquanto que a técnica seguida nos projectos de lei aqui apresentados pelo PSD e pelo PCP, de incorporar no Código Penal tipos de crimes que não estão lá previstos, embora o estejam no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, parecia-nos mais curial.

Não que esta seja uma questão decisiva — nós não somos fundamentalistas relativamente à necessidade de colocar todas as normas com natureza penal no Código Penal, até admitimos a necessidade, em algumas matérias, de legislação penal extravagante, mas também não nos parece que seja um bom princípio tornar o Código Penal numa espécie de «queijo Gruyere» em que, qualquer dia, são mais os «buracos» do que propriamente a matéria regulada…

Agora, estamos a discutir a questão de revogar uma série de artigos do Código Penal e passá-los para legislação extravagante; amanhã, iremos votar, aqui, a justiça militar que vai fazer o mesmo relativamente a mais uma meia dúzia de artigos do Código Penal… E por este princípio, qualquer dia, o Código Penal começa a ser, efectivamente, uma «manta», porque são mais os buracos do que as matérias que nele estão realmente reguladas.

Esta é, por certo, uma opção do ponto de vista técnico que não nos agrada, mas, repito, não é esta, verdadeiramente, a questão substancial.

A questão substancial é a de que, de facto, tem todo o sentido — e, naturalmente que esta proposta de lei terá o nosso voto favorável — que todos os tipos de crime previstos e punidos no Estatuto de Roma do TPI sejam previstos e punidos pelo Direito interno português. Sempre considerámos isto! Considerámo-lo, desde a primeira hora, e aliás, apresentámos o nosso projecto de lei neste sentido, precisamente na altura em que aqui se discutia a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. E, na altura, o projecto foi recusado pela maioria desta Câmara!

Mas, dizia eu, sempre nos pareceu isto, e por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, uma delas, que já foi aqui assinalada: é que há molduras penais, designadamente, a prisão perpétua, que está prevista no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, e não está prevista no Direito português — e ainda bem! Sempre entendemos que somos nós que estamos certos, que é o Direito português que está certo, e contestámos também a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional por esse facto.

Por isso, entendemos que não nos deve ser feita a acusação de pretender, pelo facto de não aceitarmos a prisão perpétua, que alguém pudesse ser encontrado em Portugal, tendo cometido crimes contra a Humanidade, e que ficasse impune pelo facto de sermos contra a prisão perpétua. Portanto, defendemos que todos esses crimes deveriam ser previstos e punidos, de acordo com as molduras penais que devem existir no Direito português, segundo a nossa tradição jurídica e os princípios em que acreditamos.

Em suma, julgamos que Portugal não deveria servir para garantir a impunidade fosse a quem fosse, e, portanto, deveríamos prever essa extensão, em termos materiais, da criminalização de determinadas matérias. E nem estamos muito preocupados com a questão que o Sr. Deputado Jorge Lacão aqui colocou, há pouco, isto é, não nos preocupada, em nada, que um cidadão estrangeiro que seja perseguido por ter cometido crimes contra a Humanidade, e crimes previstos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, seja julgado em Portugal, caso não possa ser extraditado. Se ele puder ser extraditado, sê-lo-á; se não puder ser extraditado, designadamente, por correr o risco de se lhe aplicar a pena de prisão perpétua, ele deve ser julgado em Portugal e os tribunais portugueses devem ter essa competência para que, de facto, não se crie, aqui, um espaço de impunidade para uma pessoa que esteja nessas circunstâncias.

Portanto, a nossa resposta, quanto à extensão da competência dos tribunais portugueses a esses cidadãos, é afirmativa: essa competência deve ser, de facto, estendida.

Uma segunda razão que fez com que propuséssemos este alargamento, digamos, dos tipos de crime previstos no Código Penal português prende-se com o nosso cepticismo relativamente a este Tribunal Penal Internacional. Sempre dissemos que a ideia que preside à criação de uma instituição judiciária internacional que possa julgar com garantias de imparcialidade, de independência, todos os autores de crimes contra a Humanidade é uma ideia generosa; sempre o dissemos, e reafirmamo-lo. Mas também sempre manifestámos o nosso cepticismo relativamente a este concreto Tribunal Penal Internacional, por consideramos que ele muito dificilmente teria condições, dada a correlação de forças existente, a nível internacional, para se impor, enquanto jurisdição independente.

E efectivamente é preciso reconhecer que a vida tem vindo, infelizmente, a dar-nos razão. Alguns acontecimentos, designadamente, as pressões internacionais feitas pelos Estados Unidos da América para garantir a sua impunidade perante o Tribunal Penal Internacional, com algum sucesso e mesmo perante uma posição, no mínimo, equívoca, por parte da União Europeia, infelizmente, parecem dar-nos razão.

Por conseguinte, este é mais um elemento que nos faz considerar que o importante é Portugal poder assegurar, perante o mundo inteiro, que ninguém ficaria impune em Portugal desde que sobre si recaísse a suspeita de ter sido autor de crimes contra a Humanidade, de quaisquer crimes previstos e punidos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Porque pensamos que, deste modo, damos o exemplo perante todo o mundo, e fazêmo-lo de acordo com critérios e princípios de Direito Penal que perfilhamos e que cremos estarem correctos, e relativamente aos quais gostaríamos que fosse, não o nosso país a aproximar-se de princípios que nos são estranhos e repudiamos, mas, pelo contrário, poderíamos dar um exemplo e procurar que sejam os outros países a adoptar os princípios, que julgamos serem justos, nos quais acreditamos e que adoptámos no nosso Direito interno.

Concluindo, votaremos favoravelmente a proposta do Governo; pensamos ser o momento adequado, aliás, para podermos votar na generalidade todas as iniciativas apresentadas; por isso, todas contarão com o nosso voto favorável, na generalidade.

Pensamos que vale a pena fazer este trabalho, na especialidade, para, de facto, concluirmos este procedimento legislativo, e podermos dar um exemplo de que Portugal está seriamente empenhado em acabar com a impunidade dos autores de todo e qualquer crime — contra a Humanidade, crime de guerra, crime de agressão, ou qualquer crime que repudia à consciência universal.

Era isto que eu tinha dizer, Sr. Presidente.

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