A GUERRA E A DEMOCRACIA

04-07-2002
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A GUERRA E A DEMOCRACIA

Quando, no pleno tédio de uma cinzenta tarde de domingo, começava a escrever esta crónica, com o propósito de abordar questões políticas bem domésticas, fui subitamente abalado pelas novas do ataque ao Afeganistão, promovido pela coligação internacional antiterrorista, liderada pelos Estados Unidos da América. Assumindo o dramatismo do momento, quem, como o subscritor destas linhas, no começo da crise, apelou a Kant contra os instintos de Rambo, porque não queria alinhar com os miméticos discursos dos nossos “pombas” e “falcões”, tem, agora, de proclamar que a justiça não pode ficar impotente perante a força terrorista e que importa apoiar os que estão com os valores universais da democracia. “Alea jacta est...”

Quem assume os valores universais do Estado de Direito Democrático, assentes na legitimidade racional, tanto da racionalidade finalística como da racionalidade axiológica, não pode ceder perante os que pretendem o regresso às legitimidades carismáticas e tradicionais, para utilizarmos as categorias weberianas.

Mas não se iludam, portugueses, com as estupefaciantes balelas que nos qualificam como um Portugal dos Pequeninos, situado na periferia do mundo e povoado por brandos costumes! Estamos no pleno centro do caminho que vai de Nova Iorque a Cabul. Somos também membros fundadores, com plenos direitos e máximos deveres, de uma aliança político-militar que nos dá um escudo global de segurança. Participamos activamente na construção de unidade supra-estadual europeia, que se pretende dotada de comuns políticas de segurança, de defesa e de negócios estrangeiros. Acresce que também somos uma democracia. E que não o deixamos de ser porque o mundo está à beira da guerra. Antes pelo contrário.

As últimas declarações de Bin Laden, ao retomarem as antiquadas categorias da sociedade fechada, falando numa luta da cidade de Deus contra a cidade do Diabo, repetem a ideologia de um agostinianismo político, gerador da teocracia, mas sem acederem em directo ao próprio Santo Agostinho, para quem o bem e o mal nunca viveram em sítios diversos, mas antes interior de cada homem. Porque, como dizia Jean Lartéguy, cada um de nós é sempre uma guerra civil.

Foi há vinte e cinco séculos que Péricles fez o discurso fundador da democracia, proclamando a igualdade do género humano e a necessidade da cidadania como participação, ao mesmo tempo que homenageava os soldados mortos pela pátria. Por outras palavras, desde há vinte e cinco séculos que não há democracia sem o sentido cívico dos militares. Porque se uma comunidade de cidadãos não tiver a coragem de se unir em torno das coisas que se amam e, consequentemente, não estiver disposta a morrer por essas mesmas causas, pode ser derrubada por um qualquer comando terrorista.

Esta guerra só pode ser vencida se não perdermos no combate de ideias e conseguirmos universalizar os valores fundamentais da democracia, dando uma resposta de sociedade aberta à questão das relações entre a política e a religião. Para tanto, temos que dizer aos actuais crentes do fundamentalismo islâmico que também entre nós tem sido bem difícil dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Se nos primeiros tempos da democracia, a política dominava a religião, eis que, com o constantinismo, passámos para o outro extremo, da religião dominar a política. Contudo, nos séculos XII e XIII, nos últimos tempos da Europa medieval, as nascentes universidades ocidentais, graças aos mestres, companheiros e discípulos de São Tomás de Aquino, conseguiram regressar à concepção racional da política, expressa por Aristóteles, quando fizeram a recepção dos autores e escolas da civilização islâmica.

Por isso é que, face ao discurso justificador de Bin Laden, não podemos repetir Clemenceau, o inspirador do nosso Afonso Costa, para quem a ideia de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, só poderia ser levada a cabo, se a César pertencesse tudo. Só venceremos esta guerra se a democracia não perder universalidade e responder às angústias identitárias do mundo islâmico.

Aconselho todos os incautos à leitura de um livro dito maldito, publicado em Paris, no ano de 1985, na pequena editora Togui. Chama-se « Biographie du XXème Siècle. Le Testament Philosophique de Roger Garaudy ». Qualquer « intelectual » português da geração Maio-68 conhece esse filósofo e pensador político francês, comunista desde 1933, inspirador dos cristãos ditos progressistas e pioneiro dos ecologistas. Seria conveniente que meditássemos nas razões justificadoras da conversão de tal autor ao islamismo, em 1975.

Concluindo, de forma elíptica, direi que a democracia só vencerá esta guerra se, “expatriando-se nas suas próprias origens” (Heidegger), reconhecer “a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações” (Toynbee). Isto é, se tiver a humildade de voltar a adoptar uma noção de saber que vá além daquele pretenso cientismo dos tempos modernos, dessa ilusão da “morte de Deus” que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial (a mesma que determinou que só existe aquilo que se pode medir ou experimentar intencionalmente). Esse vício que tem destruído a imaginação, o símbolo e a procura do transcendente, reduzindo a razão à respectiva caricatura positivista.

Direi até, de forma ainda mais metafísica, que a democracia só será universal se respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada homem concreto como um homem completo; que cada homem é um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. Porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens, que temos e somos, é que podemos salvar a humanidade.

Bem Comum da Semana

A revisão constitucional

Apesar da guerra, não podemos deixar de saudar a recente revisão constitucional, que permite a entrada, na esfera da soberania portuguesa, dos valores do Estado de Direito Universal, mesmo que se abalem algumas ilusões construtivistas dos que pretendiam um código constitucional que rigidamente nos algemasse às concepções do mundo e da vida dos anos setenta. Não posso, pois, deixar de manifestar a minha solidariedade e comunhão de valores com as nobres e combativas intervenções dos deputados Pedro Roseta e Jorge Lacão, sem deixar de compreender e louvar a dissidência de Medeiros Ferreira, que, paradoxalmente, se aproxima de todos os que, como eu, preferem democracias com constituições históricas, à maneira do modelo britânico e do que poderíamos ter mantido em 1820, se as propostas moderadas de D. João VI, assumidas pela Academia das Ciências, Palmela e Silvestre Pinheiro Ferreira, tivessem conseguido resistir à pressão das grandes potências de então.

Mal Comum da Semana

A queda das máscaras

Continuando no âmbito da política doméstica, tenho que lamentar a oportunidade perdida que a revisão constitucional representou para o Bloco de Esquerda, os comunistas e os populares. Os primeiros, entre o trotskismo e o carbonário maoísta, continuaram a distinguir terroristas maus e terroristas bons. Os segundos não conseguiram eliminar do discurso certos vírus que ainda afectam a respectiva “cassette” originária da “guerra fria”. Os terceiros persistiram no politiqueirismo dos discursos de fazer chorar as pedras da calçada e, apesar de quererem parecer cristianíssimos, com muitas citações catedráticas, acabaram desmentidos pelo Papa e pelo mestre. Afinal o direitista Bush está aliado a esquerdistas como Javier Solana e Tony Blair, e António Guterres não se distingue de Aznar e Chirac. Em tempo de coragem, a direita e a esquerda só dividem os que sofrem de hemiplegia mental.

A GUERRA E A DEMOCRACIA

Quando, no pleno tédio de uma cinzenta tarde de domingo, começava a escrever esta crónica, com o propósito de abordar questões políticas bem domésticas, fui subitamente abalado pelas novas do ataque ao Afeganistão, promovido pela coligação internacional antiterrorista, liderada pelos Estados Unidos da América. Assumindo o dramatismo do momento, quem, como o subscritor destas linhas, no começo da crise, apelou a Kant contra os instintos de Rambo, porque não queria alinhar com os miméticos discursos dos nossos “pombas” e “falcões”, tem, agora, de proclamar que a justiça não pode ficar impotente perante a força terrorista e que importa apoiar os que estão com os valores universais da democracia. “Alea jacta est...”

Quem assume os valores universais do Estado de Direito Democrático, assentes na legitimidade racional, tanto da racionalidade finalística como da racionalidade axiológica, não pode ceder perante os que pretendem o regresso às legitimidades carismáticas e tradicionais, para utilizarmos as categorias weberianas.

Mas não se iludam, portugueses, com as estupefaciantes balelas que nos qualificam como um Portugal dos Pequeninos, situado na periferia do mundo e povoado por brandos costumes! Estamos no pleno centro do caminho que vai de Nova Iorque a Cabul. Somos também membros fundadores, com plenos direitos e máximos deveres, de uma aliança político-militar que nos dá um escudo global de segurança. Participamos activamente na construção de unidade supra-estadual europeia, que se pretende dotada de comuns políticas de segurança, de defesa e de negócios estrangeiros. Acresce que também somos uma democracia. E que não o deixamos de ser porque o mundo está à beira da guerra. Antes pelo contrário.

As últimas declarações de Bin Laden, ao retomarem as antiquadas categorias da sociedade fechada, falando numa luta da cidade de Deus contra a cidade do Diabo, repetem a ideologia de um agostinianismo político, gerador da teocracia, mas sem acederem em directo ao próprio Santo Agostinho, para quem o bem e o mal nunca viveram em sítios diversos, mas antes interior de cada homem. Porque, como dizia Jean Lartéguy, cada um de nós é sempre uma guerra civil.

Foi há vinte e cinco séculos que Péricles fez o discurso fundador da democracia, proclamando a igualdade do género humano e a necessidade da cidadania como participação, ao mesmo tempo que homenageava os soldados mortos pela pátria. Por outras palavras, desde há vinte e cinco séculos que não há democracia sem o sentido cívico dos militares. Porque se uma comunidade de cidadãos não tiver a coragem de se unir em torno das coisas que se amam e, consequentemente, não estiver disposta a morrer por essas mesmas causas, pode ser derrubada por um qualquer comando terrorista.

Esta guerra só pode ser vencida se não perdermos no combate de ideias e conseguirmos universalizar os valores fundamentais da democracia, dando uma resposta de sociedade aberta à questão das relações entre a política e a religião. Para tanto, temos que dizer aos actuais crentes do fundamentalismo islâmico que também entre nós tem sido bem difícil dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Se nos primeiros tempos da democracia, a política dominava a religião, eis que, com o constantinismo, passámos para o outro extremo, da religião dominar a política. Contudo, nos séculos XII e XIII, nos últimos tempos da Europa medieval, as nascentes universidades ocidentais, graças aos mestres, companheiros e discípulos de São Tomás de Aquino, conseguiram regressar à concepção racional da política, expressa por Aristóteles, quando fizeram a recepção dos autores e escolas da civilização islâmica.

Por isso é que, face ao discurso justificador de Bin Laden, não podemos repetir Clemenceau, o inspirador do nosso Afonso Costa, para quem a ideia de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, só poderia ser levada a cabo, se a César pertencesse tudo. Só venceremos esta guerra se a democracia não perder universalidade e responder às angústias identitárias do mundo islâmico.

Aconselho todos os incautos à leitura de um livro dito maldito, publicado em Paris, no ano de 1985, na pequena editora Togui. Chama-se « Biographie du XXème Siècle. Le Testament Philosophique de Roger Garaudy ». Qualquer « intelectual » português da geração Maio-68 conhece esse filósofo e pensador político francês, comunista desde 1933, inspirador dos cristãos ditos progressistas e pioneiro dos ecologistas. Seria conveniente que meditássemos nas razões justificadoras da conversão de tal autor ao islamismo, em 1975.

Concluindo, de forma elíptica, direi que a democracia só vencerá esta guerra se, “expatriando-se nas suas próprias origens” (Heidegger), reconhecer “a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações” (Toynbee). Isto é, se tiver a humildade de voltar a adoptar uma noção de saber que vá além daquele pretenso cientismo dos tempos modernos, dessa ilusão da “morte de Deus” que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial (a mesma que determinou que só existe aquilo que se pode medir ou experimentar intencionalmente). Esse vício que tem destruído a imaginação, o símbolo e a procura do transcendente, reduzindo a razão à respectiva caricatura positivista.

Direi até, de forma ainda mais metafísica, que a democracia só será universal se respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada homem concreto como um homem completo; que cada homem é um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. Porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens, que temos e somos, é que podemos salvar a humanidade.

Bem Comum da Semana

A revisão constitucional

Apesar da guerra, não podemos deixar de saudar a recente revisão constitucional, que permite a entrada, na esfera da soberania portuguesa, dos valores do Estado de Direito Universal, mesmo que se abalem algumas ilusões construtivistas dos que pretendiam um código constitucional que rigidamente nos algemasse às concepções do mundo e da vida dos anos setenta. Não posso, pois, deixar de manifestar a minha solidariedade e comunhão de valores com as nobres e combativas intervenções dos deputados Pedro Roseta e Jorge Lacão, sem deixar de compreender e louvar a dissidência de Medeiros Ferreira, que, paradoxalmente, se aproxima de todos os que, como eu, preferem democracias com constituições históricas, à maneira do modelo britânico e do que poderíamos ter mantido em 1820, se as propostas moderadas de D. João VI, assumidas pela Academia das Ciências, Palmela e Silvestre Pinheiro Ferreira, tivessem conseguido resistir à pressão das grandes potências de então.

Mal Comum da Semana

A queda das máscaras

Continuando no âmbito da política doméstica, tenho que lamentar a oportunidade perdida que a revisão constitucional representou para o Bloco de Esquerda, os comunistas e os populares. Os primeiros, entre o trotskismo e o carbonário maoísta, continuaram a distinguir terroristas maus e terroristas bons. Os segundos não conseguiram eliminar do discurso certos vírus que ainda afectam a respectiva “cassette” originária da “guerra fria”. Os terceiros persistiram no politiqueirismo dos discursos de fazer chorar as pedras da calçada e, apesar de quererem parecer cristianíssimos, com muitas citações catedráticas, acabaram desmentidos pelo Papa e pelo mestre. Afinal o direitista Bush está aliado a esquerdistas como Javier Solana e Tony Blair, e António Guterres não se distingue de Aznar e Chirac. Em tempo de coragem, a direita e a esquerda só dividem os que sofrem de hemiplegia mental.

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