Golpes de rins

14-12-2004
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Golpes de Rins

Por MANUEL CARVALHO

Quarta-feira, 17 de Novembro de 2004 pequena história do debate parlamentar sobre o orçamento que hoje se inicia vai ter como ingrediente principal o contorcionismo. Vai ser, no mínimo, interessante saber como é que o Governo e a maioria que o apoia conseguem explicar o golpe de rins que os leva a defender uma proposta que, em grande medida, contradiz os orçamentos que aprovaram nos dois últimos anos; e será, no mínimo, curioso observar como é que a oposição, com destaque para o PS, vai encarar um orçamento que se apropria de muitas das medidas que o partido apresentou como alternativas à "obsessão do défice" de Ferreira Leite. Enquanto o Estado continuar a viver como um aristocrata falido, sem receitas para pagar o faisão e a criadagem, os debates sobre o orçamento serão sempre dominados pelo abate das parcelas da despesa. Mas, como originalidade, desta vez vai haver momentos em que Santana Lopes ou Bagão Félix defenderão teses que se ouviram a Ferro Rodrigues ou a João Cravinho, enquanto que José Sócrates e Joel Hasse Ferreira poderão invocar o drama das contas públicas com termos e números que nos hão-de fazer lembrar Durão Barroso ou Ferreira Leite. O Governo apresenta-se no plenário com uma proposta de crescimento do investimento público de 15 por cento, uma baixa do IRS meio verdade, meio propaganda, a travagem da descida do IRC das empresas, a fixação uma colecta mínima à banca de 15 por cento deste imposto, a redução da margem dos lucros tributáveis no "offshore" da Madeira, uma proposta de redução do défice estrutural (o que não contabiliza os efeitos do ciclo económico) de 0,4 por cento e um pacote de dez medidas de combate à fraude fiscal que contempla a inversão do ónus da prova ou a devassa das contas dos contribuintes suspeitos. Quem conhecesse a tradição dos orçamentos de Guterres e de Durão e regressasse ao país de uma viagem à lua, poderia pensar que estas propostas são de uma aliança PS/CDU. Não são, como se sabe; são de uma coligação que, apesar do "fantasma" de Ferreira Leite, já assumiu que vivemos "um tempo novo" - há até que proclame o fim da austeridade. Logo, dá-se folga ao aperto com a justificação de que a retoma vem aí, mesmo que as organizações internacionais (o exemplo paradigmático vem do FMI) comecem a pedir calma, porque, na Europa, continua tudo muito volátil. No PS, e na restante oposição, o problema é, apesar de tudo, mais difícil de encarar. O novo porta-voz dos socialistas para os assuntos económicos, Manuel Pinho, diz, por exemplo, que a prioridade para o partido "é a consolidação orçamental" e acrescenta que se deveria aproveitar a "ligeira retoma" para se evitar "o recurso a medidas extraordinárias". O PS, que secundariza agora o "crescimento", o "emprego" ou o "investimento", não estabelece metas para a consolidação, nem pode. Se o objectivo da redução do défice estrutural fosse de 0,9 por cento do produto, como em 2003/2004, em vez dos 0,4 por cento propostos, o Estado não poderia, por exemplo, reforçar o investimento ou aumentar a função pública, para além de ter de poupar nas Scut, no IRC ou nos benefícios fiscais. Em vez de reclamar os louros por ter tido razão antes do tempo (embora o tempo fosse outro...), o PS dedica-se ao contorcionismo e prefere correr o risco de ser vítima das suas próprias contradições. O orçamento de Bagão Félix não é perfeito. Tem até inscrito no seu código genético pulsões eleitoralistas - caso da baixa das taxas de IRS -, que o descredibilizam. Peca por, subliminarmente, instigar o consumo privado. Foi feito à pressa e está sujeito a remendos, como o proposto para os benefícios fiscais às empresas do Interior. No essencial, sob a capa do tempo novo, tergiversa, adia, omite e dispara para tudo o que mexe, sem apontar para o problema orçamental do país: a urgência em avançar com reformas profundas no Estado. Mas, no plano das intenções, tem uma característica singular: é um orçamento com uma identidade própria, o que o separa da linhagem dos que foram aprovados pela actual maioria. Se há alguém com razões profundas para o criticar e para o chumbar, procure-se algures nas bancadas do PSD e do PP. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Maioria PSD-CDS admite "várias incertezas" no Orçamento

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